Um tanto em ricochete do terminal e “adeus até ao meu regresso” The Old Man & the Gun (O Cavalheiro com Arma, 2018), quis o destino que o ano de 2019 começasse por me fazer chegar aos olhos um outro filme de Robert Redford, Inside Daisy Clover (O Estranho Mundo de Daisy Clover, 1965) de Robert Mulligan. Belo filme, com toques de A Star is Born (Assim Nasce Uma Estrela, 1954), recuperando o prestigio próprio do grande actor que foi e a mitologia hollywoodiana de uma estrela atormentada como era Natalie Wood. A beleza dos ricochetes e das incertezas da cinefilia é que estava longe de me saber a encontrar um prelúdio para um dos filmes de que tinha contado ocupar-me nesta nova edição do Raccords do Algoritmo. O filme é A Cry in the Night (Um Grito na Escuridão, 1956) de Frank Tuttle, um filme menor na carreira “menor” do realizador. E também “terminal”, embora num sentido apenas cronológico do termo, uma vez que se tratou do penúltimo filme do cineasta americano.

E que prelúdio é este? No filme de Mulligan, Natalie Wood, a Daisy do título, é uma jovem pobre, com boa voz, que entra de rompante nos meandros de showbiz cinematográfico. Com todas as quedas e desgostos que isso irá comportar. Aí, acaba por se apaixonar pela figura irrequieta, o contratipo de lead star masculina, Wade Lewis (Redford). Casam e o casamento dura um dia, ficando esta a saber pouco depois que ele a abandonou pois que é, afinal, homossexual. Isto em 1965. Máquina do tempo e recuamos nove anos até A Cry in the Night. Este é um produto da época, os anos 50, um filme-caução contra os perigos da altura. Eram as catástrofes naturais, as drogas, as bombas atómicas, os aliens e aqui… os perigos da libertação sexual [ainda faltavam uns aninhos até ao deboche (!) dos anos 60]. Baseado num romance de Whit Masterson sobre um predador sexual que raptava uma adolescente, Tuttle, com a produtora que tinha com Alan Ladd, a Jaguar Productions, procurava adaptar o livro em dimensão B e em modo noir dirigido a um novo segmento — que James Dean e Natalie Wood tinham “descoberto” para o cinema no ano anterior, com Nicholas Ray ao leme, em Rebel Without a Cause (Fúria de Viver, 1955) — a incompreendida cultura adolescente americana.
No centro do filme acaba por estar a relação entre vítima e agressor, uma espécie de bela e o monstro mas sem tempo para grandes desenvolvimentos. Segundo se conta, Natalie Wood agarrou-se com unhas e dentes ao papel da jovem vítima, Elizabeth. O que era era estranho, pois tratava-se de um papel secundário num filme de série B, quando comparado com os holofotes que sobre si incidiam depois do filme de Ray, no ano anterior. As opiniões divergem sobre a sua vontade: uns fazem-na de vítima verdadeira, querendo exorcizar no ecrã o facto de ter sido vítima de violação um tempo antes; outros preferem-na sabida, querendo a todo o custo subir ao panteão das mulheres adultas, menina que muitas vezes vezes acabava na cama de homens mais velhos. E talvez por isso A Cry in the Night seja, como de resto muitos outros filmes moralistas da época, maravilhosamente hipócrita e dual.
E depois há o “monstro”, Harold Loftus, que, ao contrário do que sucedia no livro, no qual era casado, é aqui um psicopata menino da mamã, virgem e ameaçadoramente trintão. O papel foi para Raymond Burr, actor de “grande porte” que procurava também ele ascender na escala de vilões ou dos heróis de Hollywood, sobretudo depois de uma passagem quase desapercebida pela janela de James Stewart em Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954) no ano anterior. O filme acaba por ser seu, através de uns olhos enormes, tresloucados, a passearem pelos planos, prefaciando Norman Bates uns anos depois. Mas o facto insólito — para não se esquecerem do que vinha contar como prelúdio — é que, tal como acontecia no romance falhado em Inside Daisy Clover também aqui Wood acabou por se enamorar. Correram rumores que se iria casar com Burr, algo que não viria a acontecer por uma simples razão. Já adivinharam, Burr era homossexual. Raccords insólitos e divertidos, com a arte a imitar a vida.

De resto, A Cry é bastante didáctico (diálogos expositivos, planos frontais com “lições” ao espectador), com imperfeições demasiadas para ser um grande filme. Isto mesmo no interior da obra de Tuttle, quando comparado com This Gun for Hire (Aluga-se Esta Arma, 1942) ou The Glass Key (A Chave de Cristal, 1935). Contudo, o interessante é que o filme não se limita a dar-nos a mensagem de que é perigoso ir para sítios escuros com a/o nossa/o namorada/o. Há também um trabalho sobre os espaços fechados ligados à repressão sexual: a casa de Elizabeth e sua família sobre-protegida, a cabana do raptor, a casa da mãe do agressor, do qual este “escapou”, ou o loop hole dos namoradinhos com que começa o filme. Repressão essa que pode degenerar em perturbações violentas, em amargura (a irmã do capitão da polícia, pai de Elizabeth), ou simplesmente em situações de “risco”. Não é por acaso que Tuttle dá ênfase à figura da mãe protectora do agressor que, como ele, quer reter o seu filho como objecto de cuidado. Ou ainda que o pai de Elizabeth, polícia protector (Edmond O’Brien), seja também ele um duplo do agressor e que a maior aprendizagem ao longo do filme seja a sua, o que implicará uma mudança de postura: de vigilante a pai.

A Cry in the Night (Um Grito na Escuridão, 1956) de Frank Tuttle
Sugiro este mês um raccord maternal. Passar da mãe de Harold Loftus — ansiosa que o seu menino chegue a casa com o pedaço de tarte de alperce com que sempre a brindava — à mãe do escultor cego, vilão-artista do surreal Môjû (1969) de Yasuzô Masumura. Apesar de tudo são mães distintas, cada qual compondo o seu covil de forma diferente. A mãe do filme de Tuttle é uma personagem tresloucadamente inocente. Ela não admite que o seu filho, que é um doce, possa ser culpado de rapto e violação de uma menor. Afinal de contas, trata-se de uma criança aos seus olhos. Já a mãe de Michio (Noriko Sengoku) não pactua dessa inocência. Ela dorme com o seu filho adulto na mesma casa, ajuda-o a raptar Aki (Mako Midori), pois crê que se ele encontrar a modelo adequada poderá mesmo criar uma “cópia perfeita” da figura feminina (isto porque a única figura feminina real com a qual ele pode lidar é ela mesma, a sua mãe). Crendo ainda que, ao mesmo tempo, essa obra possa ser precursora de uma nova forma de arte em função do tacto, adequada à condição dos que não vêem.
A diferença entre a mãe no filme de Tuttle e a de Masumura está então na natureza da sobre-protecção: enquanto a primeira vê o filho como uma eterna criança, a segunda vê-o como como substituição do seu amante. É por isso que esta última é tida como obstáculo por parte da modelo raptada para que consiga escapar do lugar onde a mantêm cativa: o estúdio-prisão-palco-mais tarde sepultura. Assim Aki far-lhe-á ciúmes, dizendo-se apaixonada pelo seu filho, ciúmes que levarão à morte daquela. O filme de Masumura é adaptado de um romance devedor do imaginário de Edgar Allan Poe no qual o escultor vai buscando partes de modelos para compor a sua obra perfeita. Aqui há apenas um rapto e tudo se passa de forma teatral e literária nesta prisão de olhos, narizes, bocas — no fundo, o imaginário de Michio que nunca pôde ver uma mulher de carne e osso — e se vai concentrando ainda mais, a obsessão a apertar para aquele promontório de formas femininas, mamilos, curvas, pernas, no qual o nosso trágico herói vai conhecer, simbólica e literalmente, a carne.
Trata-se de um terceiro acto que começa com a morte da mãe — finalmente substituída por uma amante real — e que vai perturbando a natureza do estatuto da relação original/cópia. A carne devém material para esculpir, a escultura devém real. Isso só é possível quando o corpo da mãe vai apodrecendo e nisso Masumura é exímio. Ele sabe que tudo se passa demasiado rápido para ser credível — da perda da virgindade até à morte como extremo da dor e do prazer — mas vai inserindo a neve, o fogo, a sepultura putrefacta do “lá fora”, como que nos dizendo que estamos a falar de dois tempos diferentes, talvez inconciliáveis.
A Cry in the Night e Môjû são duas obras distintas que se tocam pela forma como constroem um discurso sobre a relação maternal, como algo que pode ser potencialmente aprisionante. E sobre essa relação têm coisas diferentes a dizer. Harold Loftus — quando é apanhado com o “original nas mãos”, Natalie Wood, quando deixa o estatuto de voyeur de mulheres de substituição (a mãe e as que espia no seu pleasure loop) — é poupado pelo polícia-pai, gritando pela sua mãe: o seu cry in the night. Talvez se presuma ainda um fim a prolongar a ironia do filme: todos regressam às suas casinhas, aprendida que foi a lição. Só que na casa de Loftus ainda está a sua única mulher possível, a cópia do amor sexual. Ao contrário, o escultor do filme de Yasuzô Masumura não é poupado a nada. Quando o único modelo de mulher real, com o qual convivera, morre, a única coisa que conseguirá fazer é destruir o real, transformando-o em cópia. Ele que só sabe tocar em partes de mulheres-cópia, transforma a mulher real em pedaços inertes e mortos, adicionando-os como mais um elemento da sua horripilante e suprema obra.
