A versão original do presente texto foi publicada no suplemento ípsilon do jornal Público de dia 28 de Dezembro de 2018.
“L’image viendra au temps de la résurrection”, enunciou Jean-Luc Godard (JLG) em Histoire(s) du cinema (1989-1999). Corria o ano de 1988, pouco tempo antes da queda do Muro de Berlim. No ano em que estreia Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018), último filme de JLG, uma sequência particular de um dos seus primeiros filmes não me tem largado: Week End (Fim-de-Semana, 1967), o do famoso travelling do engarrafamento. Em rigor, trata-se da sequência de um dos seus primeiros filmes que é, simultaneamente, o último da sua “fase Nouvelle Vague”, objecto paradigmático no corte-ponte – paradoxo impossível em todas as obras menos na de Jean-Luc – que faz entre os seus filmes “pop” e cinéfilos (e, com todas as idiossincrasias, “narrativos”, ou, pelo menos, com uma ideia de) e a “fase Dziga Vertov” (com Jean-Pierre Gorin).
É justamente depois desse admirável exercício de mise-en-scène que JLG monta uma sequência – à primeira vista confusa ou críptica, como tantas outras suas – sobre a qual importa, nos dias que correm, relançar o olhar (até porque, não raras vezes, aqueles que acusam Godard de “esquematismo” ou “simplismo” nas suas análises ou manifestos são os primeiros que, perante os seus filmes, não vão para além de uma leitura imediatista, isto quando não se recusam, simplesmente, a tentar compreendê-los). Conseguindo finalmente escapar do bíblico engarrafamento, o casal protagonista estaciona o carro num vilarejo para descansar por uns minutos, momento em que presencia um acidente entre um Triumph e um tractor e a violenta discussão que, nos mesmos caricaturais termos (e cómicos, não fosse o humor um dos atributos que alguns dos mais abespinhados críticos de JLG parecem não alcançar), se lhe segue entre uma “burguesa” e um “camponês” (donos dos respectivos veículos). O confronto vai sendo decupado por planos do namorado morto da “burguesa” (o sangue, de um vermelho tão pop quanto o azul-céu dos seu Ray-Ban, borrando a pintura do homem “bonito, jovem e rico”, como se lamenta a namorada) e grandes planos dos rostos de outros “burgueses” e “camponeses”, que, ora seríssimos, ora gargalhando, assistem à altercação. Rostos enquadrados – nunca no mesmo quadro, note-se – num garrido décor donde sobressai o logótipo da marca “Esso” (também nesta palavra avultando, com relevância para o que a seguir apontamos, ou não fosse JLG um obsessivo da cine-grafia, dois “S”), combustível maldito de uns e outros rumo, apetece dizer, ao “acidente (solução) final” (segundos depois, ver-se-á outro cartaz da gasolineira expressamente com a palavra “FUEL”). Não é preciso dizer de que luta aqui se trata [no seu pitoresco lembrando a célebre “cena da enxada” de Torre Bela (1975)] e JLG também não o diz; antes desdiz, desconstrói, enfim, des-monta. De facto, segundos antes de se ver o par “inter-classista” a discutir na rua (lugar primordial da dita luta, pois claro), as seguintes inscrições vão aparecendo, acompanhadas pela erupção das cordas na banda de som, no mesmo plano por esta ordem: “SS” – “LUTTE SS” – “LA LUTTE DES CLASSES”.
É uma sucessão (deliberadamente) rápida e que, num primeiro visionamento, pode naturalmente escapar ao espectador; também se poderia tratar, de outro prisma, de uma sucessão relativamente aleatória, não terminasse esta sequência de Week End da forma que termina. Depois do conflito, pedindo por ajuda, o par dirige-se ao casal, que o ignora e se põe novamente em marcha (desconsiderando o apelo cristão “Somos todos irmãos, como Marx disse!”, exortado pelo camponês), atarefado que está com o “plano de morte” que ainda tem por cumprir nesse dia – nada mais, nada menos do que “acelerar” a grande transferência hereditária, ou seja, “acumular capital” (não fosse o instituto jurídico sucessório um dos mecanismos que sempre desempenhou – noutras épocas mais do que na nossa, é certo – papel fulcral na manutenção, perpetuação, do capital nas mesmíssimas mãos, havendo mesmo quem se tenha batido, e se continue a bater, pela sua absoluta isenção fiscal). Perante a indiferença, burguesa e camponês, aos gritos, vão insultando o casal, eis senão quando, finalmente, coincidem: “Judeus! Porcos Judeus!”. Momento em que, lentamente, hesitantemente, vão colocando o braço um em volta do outro e abandonando, desolados, a rua.
No abraço da serpente, burgueses e proletários, enfim, juntos (como juntos aparecerão agora no enquadramento de há pouco, na “faux-to-graphie” que JLG “dactilografa” na imagem): é na infâmia obscurantista, no criminoso preconceito, no derradeiro ódio, que uns e outros se reconciliam e assumem o inimigo comum (“Anti-semitas de todo o mundo, uni-vos!”). Logo, também um comum objectivo, o mesmíssimo que presidia à acção das… “SS” (Schutzstaffel). Aquilo que se inicia como uma luta de classes termina, portanto, com essas mesmas “classes” unidas (“O povo, unido…”) na luta contra os “porcos”: a luta das claSSes e a luta das SS entoadas, inesperadamente, a uma só voz. Tese (burguesia), antítese (proletariado), síntese (anti-semitismo): esta última, ela mesma, enquanto demonstração – ou nova-tese – de como os pressupostos da própria dialéctica são frágeis, de que esta se revela insuficiente para analisar o fenómeno social. Contra os que acusam JLG de superficialismo, o que esta sequência – que, não por acaso, precede o estilhaçar da narrativa do filme e a entrada numa distopia pós-apocalíptica (o filme ele próprio precedendo o Maio de 68) – insinua é que a luta de classes, por si só, se constitui num instrumento de análise curto para compreender e interpretar o mundo, que muito mais pedra há a partir para além dessa rígida visão da realidade – nomeadamente, enraizados preconceitos e ressentimentos, ódios recalcados que não escolhem barricadas (no caso, um que, ainda poucos anos antes, havia propiciado nada mais, nada menos do que o Holocausto).
Aqueles que se digladiam de morte num dado momento bem podem ser os mesmos que, alimentados com os ingredientes certos [falámos acima em gasolina, pois não nos esqueçamos do fogo, também abundante em Week End, que a turba de “homens normais” deita à delegacia no Fury (Fúria, 1936) de Fritz Lang], fumam o cachimbo da paz no instante seguinte e declaram guerra ao inimigo: o diferente, o estranho, o “outro”. Aquilo de que fala essa paradigmática des-montagem godardiana é também, por isso, do nosso mundo em 2018: um em que, erodidos os valores básicos da vida em democracia, indivíduos outrora afastados pelas mais elementares razões de decência se reaproximam e, estrategicamente estimulados pelos abutres do costume, batalham juntos contra uma difusa e nublada ameaça comum (os “políticos”, as “elites”, os imigrantes, refugiados, muçulmanos, negros, índios, LGBT, etc.). Foi assim nos EUA, foi assim no Brasil e é, independentemente das mais que legítimas razões de fundo que urge discutir, aquilo que também corremos o risco de ver acontecer em França, Espanha, Portugal.
Em Blue Collar (1978), Paul Schrader começava o filme com brancos e negros em amena cavaqueira, partilhando as agruras e os escapes da vida, para terminar depois num violento, fatal, frente-a-frente – impressionista, delacroixeano mesmo, freeze frame final – entre dois bons amigos que, até então apenas isso mesmo, se volvem agora em “white”, “nigger”, “polish”. Em off, a voz de Smokey, o bom gigante que, num aparente descuido fabril, havia sido estrategicamente morto para assegurar que tudo continua na mesma: “They pit the lifers against the new boy, the young against the old, the black against the white. Everything they do is to keep us in our place”. Vivemos tempos obscuros em que a esperança deve – tem de ser –, como se ouve em Le Livre d’image, ardente. “E mesmo que nada tivesse sido cumprido como nós havíamos esperado, isso em nada alteraria as nossas esperanças”. Que os saibamos derrotar a tempo de mais tarde podermos dizer, como JLG em Histoire(s) du cinéma, “Obscurité: Oh! Ma Lumière!”.