Claro que Lars von Trier sabia que ia pisar terreno muito batido. Também sabia que este era um terreno minado para o seu próximo filme. Por um lado, a história do cinema está repleta de retratos de serial killers, de Anthony Perkins em Psycho (Psico, 1960) a Christian Bale em American Psycho (Psicopata Americano, 2000), passando por Henry: Portrait of a Serial Killer (Henry, Retrato de um Homicida, 1989) e C’est arrivé près de chez vous (Manual de Instruções para Crimes Banais, 1992). Por outro lado, Trier tem ganho uma tóxica reputação de vilão no meio do cinema, muito por culpa do próprio. Ele tornou-se persona non grata devido às entrevistas que tem concedido, mas em particular por causa da infame conferência de imprensa que deu no Festival de Cannes a propósito da estreia de Melancholia (Melancolia, 2011), quando se assumiu simpatizante do regime (ou da estética) nazi. Nada disto fica de fora de The House that Jack Built (The House that Jack Built – A Casa de Jack, 2018). Aliás, quase apetece dizer que pouco fica de fora, para esmagar até ficar em pedaços, nesta jornada longuíssima que é o retrato de um assassino psicopata que matou mais de 60 pessoas e que apelida os seus actos de “grande arte”.
Em Antichrist (Anticristo, 2009), Trier já havia erigido uma ficção, de um tema mil vezes esmiuçado pelo cinema (drama lutuoso sobre a morte de um filho), a partir de uma experiência muito pessoal por que passou: a de uma profunda depressão que, segundo o próprio, este precisava de curar realizando um novo filme que abrisse um novo capítulo no seu cinema. O que nasceu aqui foi um trabalho sobre composição (os tableaux vivants, os super slow motions, o pictorialismo e o “excesso” de ilustração depois da pobreza rude da estética Dogma) e uma contaminação assumida entre o universo interior do realizador e o universo interior das personagens, transformando o tecido do filme numa grande Subjectiva Indirecta Livre, para usar o famoso conceito de Pier Paolo Pasolini. Mas a experiência mais completa a este nível – ainda que Antichrist seja, quanto a mim, o filme mais poderoso de Trier deste século – acontece com os dois Nymphomaniac, na medida em que o tom confessional transforma-se em registo ensaístico, numa perambulação por ideias, como se por uma história muito reconhecível, de género bem identificado, e por um longo e derivativo scrapbook com imagens e reflexões soltas, Trier fizesse atravessar uma espécie de bala mágica – o mesmo tipo de bala que o protagonista, interpretado de modo algo confuso por Matt Dillon, procura usar para ceifar várias vidas com um só disparo.
A vontade de Trier de transcender a banalidade da sua proposta é de tal ordem que acaba por consumir dramaticamente a possibilidade de que neste seu filme haja personagens.
Claro que o gosto pelo ensaio introspectivo, derivativo e metareferencial sempre esteve presente na obra de Trier. Epidemic (Epidemia, 1987) e De fem benspænd (As Cinco Obstruções, 2003), filmes separados por 16 anos, são exercícios de cinema que misturam o metafílmico com a tentativa de tese sobre o gesto artístico. Agora, neste The House that Jack Built, o formato do ensaio é estruturante dentro de uma ficção filmada sem particular imaginação, criatividade ou interesse. O “elemento ensaístico”, chamemos-lhe assim, atravessa a narrativa como uma bala e fulmina o banal com golpes de uma perversa e, a espaços, provocadora inteligência. Nos intervalos da ficção, Trier mistura clipes do pianista Glenn Gould a tocar freneticamente com, por exemplo, imagens estilo National Geographic ou imagens fixas, sobretudo de quadros da grande História da Arte, ou reflexões sobre arquitectura, destacando aquela em que Trier, ou melhor, em que Jack fala de Albert Speer, o principal arquitecto do Estado nazi. Esta tessitura é habilidosa e atraente. Quase apetece dizer que é muito mais interessante que os acontecimentos que a ficção do filme narra. E sobretudo parece que acedemos mais ao universo da personagem por estas derivações ensaísticas do que durante o encadeamento de acções do filme novelizado, cuja linguagem de violência se tornará progressivamente repetitiva e enfadonha.
Ao mesmo tempo, The House that Jack Built sofre de um problema: se a figura do ensaio confere algum interesse a este exercício, a banalidade da acção e a “redução dramatúrgica” do seu protagonista a um conjunto de obsessões (a desordem obsessiva-compulsiva) e ideias-força (a tese, que não sairá do mero slogan filosófico, de que toda a arte é violência) vão progressivamente tornando este filme numa ficção exangue do ponto de vista do drama. A vontade de Trier de transcender a banalidade da sua proposta é de tal ordem que acaba por consumir dramaticamente a possibilidade de que neste seu filme haja personagens. Existem, antes, peões de um exercício de explanação, pontualmente inspirado, que suporta mal e debilmente o universo da história que aqui se conta. Portanto, se é verdade que o exercício ensaístico tem os seus momentos apelativos – como a ilustração de uma certa sede do mal dada pela pequena animação da figurinha que atravessa o passeio iluminado por dois candeeiros de rua – também não deixa de ser verdade que pouco mais resta desta experiência sem ser isso. De qualquer modo, nenhum outro filme feito assim, com tanto desprezo por si mesmo, resistiria dramaticamente às inúmeras derivações/variações ensaísticas. No entanto, fica a sensação de que o cinema de Trier podia ganhar um novo ímpeto a partir daqui, quiçá vindo a parir o seu, mesmo “muito seu”, Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018). Why not?