Nos primeiros minutos de The Mule (Correio de Droga, 2018), o horticultor nonagenário e futuro narcotraficante Earl Stone (Clint Eastwood) está tão obstinado em comparecer com as suas flores numa convenção que acaba por faltar ao casamento da filha. Tal será o catalisador principal do afastamento inexorável entre um e o outro, o qual definirá a relação filial daí por diante. É a primeira vez em The Mule que outro filme de Eastwood parece ser invocado, neste caso Million Dollar Baby (Sonhos Vencidos, 2004), quase a levantar a questão se não seria por um motivo similar que a filha do treinador de boxe (este também interpretado por Eastwood) rejeitava as inúmeras tentativas de reconciliação paternas (motivo que, recorde-se, o cineasta deixava em aberto), devolvendo-lhe as cartas por ele enviadas sempre com aquela nota desoladora, “Return to the sender”. Poderemos partir desta pequena associação para estabelecer dois pontos sobre o mais recente trabalho do realizador americano, o primeiro o de que, de uma maneira ou outra, filmes anteriores seus são aqui reunidos numa obra que acarreta toda a aura de um filme-testamento, e o segundo, que o tráfico de drogas tem tanta importância em The Mule como o boxe tinha em Million Dollar Baby: quase nenhuma, antes o de ser um mero pretexto para falar sobre dois temas pessoais que são o que interessam verdadeiramente a Eastwood, a família e a redenção.
Comecemos pelo primeiro, logo no género road movie e com a perseguição de um criminoso por um polícia complacente, onde habita um olhar comovente sobre a paternidade caracterizada pelas suas responsabilidades e fracassos, elementos de A Perfect World (Um Mundo Perfeito, 1993); o próprio protagonista que, como o Walt Kowalski de Gran Torino (2008), é um veterano da Guerra da Coreia, dono um veículo marca Ford (ali um carro, aqui uma pick-up) e sem pudor de recorrer a um vocabulário visto hoje (sobretudo hoje) como politicamente incorrecto; a forma como o realizador vê o ex-casal formado entre a sua personagem e a de Dianne Wiest com aquela solenidade agridoce onde cada frase e gesto, cada tentativa de aproximação e rejeição, acarretam um peso emocionalmente honesto (por exemplo, a cena belíssima onde ela lhe pergunta, “O que é que te faz pensar que te podes apenas sentar aqui, esperar que esqueça o passado e me ponha a recordar velhos tempos?”, ao que ele lhe responde, “Tivemos 10 bons anos, ainda podemos ser civilizados.”) reminiscente da gravitas de The Bridges of Madison County (As Pontes de Madison County, 1995); e a importância, o detalhe, a intimidade das cenas de vida familiar que dão uma dimensão mais densa e autêntica à personagem, como acontecia em True Crime (Um Crime Real, 1999).
(…) como alguns dos cowboys que Eastwood interpretou, é no percurso ladeado pela extensão das paisagens americanas que [Earl] procura uma pacificação consigo e com o mundo.
Earl, como tantas outras personagens de Eastwood, é um dinossauro à beira da extinção, um reaccionário exposto aos progressos do seu tempo (Dirty Harry frente-a-frente com a contra-cultura da década de 60, por exemplo), progressos esses aqui tecnológicos, representados pelas figuras dos telemóveis e da internet (esta última a principal responsável de o ter levado a perder o negócio e a casa, algo resolvido numa das elipses com mais tempo elidido – os 12 anos que vão de 2005 a 2017 – num filme do cineasta). E se algumas das personagens que interpretou eram impelidas a um comportamento contra-corrente por instituições defeituosas (o aparelho burocrático inepto da polícia de São Francisco a acicatar indirectamente os métodos inortodoxos de Dirty Harry), levando-as a provarem o seu mérito pessoal e social, aqui, mais do que uma instituição, o fracasso está num país, a América como um todo e em como deixou para trás os seus veteranos e aqueles a quem as necessidades económicas obstruem a chegada do sonho americano. Daí que Earl use os lucros obtidos com o tráfico altruisticamente na reestruturação do centro de veteranos local e na progressão académica da neta.
O que poderá ser singular neste seu filme é a forma humorística como aborda o material mais socialmente crítico, como aquela cena inteiramente secundária onde a polícia manda parar um condutor latino e ele sai do carro amedrontado enquanto diz “estes são os 5 minutos mais perigosos da minha vida”. Apesar da sua irrelevância para a progressão narrativa, trata-se de um momento fundamental onde o filme aponta o dedo à brutalidade policial e ao racial profiling exercido pelas autoridades, uma prova, se tal era necessário, da imprudência que há em rotular Eastwood e a sua obra como parte de uma ideologia conservadora e patriótica (aponta Richard Schickel na biografia que dedicou ao realizador que, embora ele vote no partido republicano, é praticamente um libertário: é a favor do aborto e de outras causas feministas, do controlo de armas, é praticamente um absolutista da Primeira Emenda e repudia qualquer coisa que se aproxime do racismo). A habilidade artesanal de The Mule passa também por isto, por expor estes pormenores liberais de maneira discreta, ao invés de fazê-los tema central numa abordagem paternalista de um moralismo fatigante.
E depois é bonito ver o rosto crispado de Eastwood e em como este assume a idade avançada, usando-a graciosamente numa variação adicional da sua persona cinematográfica, alguém isolado, calmo, que na sua auto-ironia e experiência do mundo tenta lidar com o peso dos pecados que acarreta sobre os ombros. Trata-se provavelmente do actor mais carismático actualmente em Hollywood, um dos últimos que nos recorda dos tempos onde a palavra-chave que definia as estrelas cinematográficas era “personalidade” ao invés de “versatilidade”. Não por acaso, os actores que mais admira não são os do método, como Brando ou Clift, mas sim os dos clássicos das décadas de 30 e 40 que marcaram a sua infância, como Cagney (o seu predilecto), Bogart ou James Stewart (com quem o comparam um par de vezes neste filme). Se Eastwood trabalha a sua personalidade sem comprometer a lealdade da sua audiência é porque soube, no seu envelhecimento, reavaliá-la de maneira sincera e subtil, garantido a veracidade e continuidade do seu papel com as anteriores incarnações fílmicas. Tal ajuda a fazer de The Mule um trabalho crepuscular, onde se sente ao de leve a presença vizinha da morte, algo metaforicamente representado pelas plantas que Earl cultiva, hemerocallis, também designadas lírios-de-um-dia, cujas flores desabrocham pela manhã e murcham à noite, portanto, botanicamente recordadas pela senescência e efemeridade da sua natureza.
Finalmente, é um filme que não está isento de culpa pessoal. Earl escolheu colocar sempre o trabalho diante da família e, como alguns dos cowboys que Eastwood interpretou, é no percurso ladeado pela extensão das paisagens americanas que procura uma pacificação consigo e com o mundo. E se a estrada que percorre é um caminho para a redenção (vejam-se os planos em contraluz com ele algemado no banco traseiro do carro policial, algo sugestivo de qualquer coisa como a proximidade de uma serenidade interna até ali adiada), então o destino é alcançado por aquele guilty admitido com secura. “Culpado” do tráfico, mas principalmente “culpado” de toda a negligência que mostrou enquanto pai de família. A única maneira de Earl se libertar da culpa é assumi-la, exteriorizá-la e abraçar pacificamente a penitência incumbida. É por isso que a derradeira cena é das mais bonitas que o cineasta já filmou. “Só espero que ele tenha encontrado um lugar que lhe dê um pouco de paz. Um sítio entre os cedros e os carvalhos, algures entre nenhures e coisa alguma.”, dizia-se da personagem de Eastwood no fim de Million Dollar Baby. Substituam-se os “cedros e carvalhos” por “lírios-de-um-dia” e a cena final de The Mule não quererá dizer outra coisa.