“Penser avec les mains”. A expressão de Denis de Rougemont tem acompanhado Godard, que a interpreta como uma defesa do cinema enquanto arte que pensa e cuja potência, por estar ligada a inúmeros gestos de mãos, em particular aos gestos delicados necessários durante a montagem, ultrapassa o pensamento lógico tradicional – abrindo a um pensamento plástico, estético, feito de paradoxos e faíscas, atravessado por essas constelações a que apelava Walter Benjamin. Funciona neste aspecto como pedra de toque a belíssima sequência de JLG/JLG – autoportrait de décembre (J.L.G. por J.L.G., 1994), em que uma jovem rapariga cega escolhida para fazer a montagem do filme reaprende ao cineasta misantropo interpretado pelo próprio Godard a sentir, a tocar, a ver, a pensar com as mãos.

Com o seu último filme, JLG produz novas variações a partir da expressão de Rougemont. O título Le livre d’image, [O Livro de Imagem(ns)], convida o espectador a entrar na obra godardiana como se lê um livro, virando as páginas com os dedos; além disso, o filme é do princípio ao fim um filme de montagem que procura mais uma vez dar a perceber a singularidade e a força do pensamento cinematográfico manual de Godard. Le livre d’image foi sobretudo comparado pelo realizador a um filme-mão, quando explicou que as cinco partes que o compõem – “Remakes”, “Les Soirées de Saint-Pétersbourg”, “Ces fleurs entre les rails, dans le vent confus des voyages”, “L’Esprit des lois” e “La Région Centrale” – funcionam como cinco dedos.
A imagem escolhida por JLG, voluntariamente infantil, traquinas até, leva a considerar que uma parte importante da estética e das reflexões do filme vai desenvolver-se nas articulações entre as partes-dedos reunidas pela montagem, e nomeadamente na articulação entre as quatro primeiras partes e a última que serve de contraponto – isto é, se considerarmos que a quinta parte engloba todo o fim do filme e não simplesmente o curto prólogo ao movimento final, Godard deixando em aberto as duas possibilidades de leitura. A última parte é a mais longa e destaca-se ao abandonar geográfica e culturalmente o Ocidente, maioritário nas outras, e partir à descoberta do “mundo árabe”. Inspirado no famoso filme experimental de Michael Snow, o título “La Région Centrale” [A Região Central] problematiza e inverte as relações entre Ocidente e (Médio) Oriente tais como elas são habitualmente pensadas na Europa ou nos Estados Unidos, transformando o Ocidente em periferia do Oriente, e garante em paralelo um estatuto particular à quinta parte, ao mesmo tempo último dedo e região central, ou seja palma da mão constituída pelo filme no seu conjunto.
Talvez ainda mais que Film socialisme (Filme Socialismo, 2010) ou Les trois désastres (2012), Le livre d’image dialoga com a obra-prima godardiana Histoire(s) du cinéma, filme-ensaio e “film somme” realizado pelo cineasta entre 1988 e 1998, em que pretendeu pensar de forma especificamente cinematográfica a própria história do cinema, servindo-se da montagem e de efeitos de non-raccords – e servindo-se paradoxalmente da tecnologia vídeo. Vários momentos de Histoire(s) du cinéma são reutilizados em Le livre d’image, especialmente aqueles que vêem ilustrar nas partes 2 e 4 a forma como os séculos e a história da humanidade foram marcados por perpétuas guerras, massacres e violentas repressões.

Neste aspecto, duas figuras mitológicas em contraponto, opostas nas dinâmicas que simbolizam, eram convocadas em Histoire(s): a figura de Saturno, deus da melancolia e monstro temporal que devora tudo e todos, e a figura da Fénix, que renasce das suas cinzas e resiste assim à devoração saturniana. Ao explicar no filme de 1988-1998 que disse uma vez a Henri Langlois que “Il faut brûler les films – mais attention, avec le feu intérieur!” [“É preciso queimar os filmes – mas atenção, com um fogo interior!”], Godard associa o cinema, seja ele feito com película, em vídeo ou hoje com a ajuda do numérico e dos computadores, a uma Fénix que sempre encontra meios de adiar a sua própria morte – essa “Mort du cinéma” que tanto obcecou Daney – e a uma Fénix que, ao contrário das leituras habituais de Histoire(s) du cinéma que reduzem o filme a um mórbido requiem, procura desarmar e ultrapassar a melancolia.
Ao mesmo tempo galeria de horrores e flip-book, semelhante aos flip-books a que Peter Szendy compara a Sétima Arte, em que figuras ficcionais e cineastas vêem em acelerado as suas próprias vidas para melhor se contraporem ao desaparecimento das suas existências, Le livre d’image confronta-se de maneira subtil e irreverente com a questão da melancolia. O título da segunda parte, “Les Soirées de Saint-Pétersbourg”, vem de um livro de Joseph De Maistre, filósofo político reaccionário do final do século XVIII, e as partes 2 e 4 parecem ilustrar uma leitura sombria e desesperada das teorias de De Maistre. Enquanto o filósofo consegue dar um sentido metafísico aos massacres e às guerras, que segundo ele fazem parte de um vasto plano do Deus cristão para pôr em prática o seu projecto de “Governo Temporal”, qualquer justificação, a começar pelas justificações do próprio De Maistre, é sistematicamente desacreditada por JLG – mergulhando aparentemente o filme em águas ainda mais frias, negras, absurdas e melancólicas que as águas austeras da Neva de Les Soirées de Saint-Pétersbourg.
Contudo, é necessário lembrar que Joseph De Maistre tinha um irmão, Xavier De Maistre, escritor e pintor, que teve um papel importante na escrita de Les Soirées de Saint-Pétersbourg, porque foi ele quem imaginou o cenário e os primeiros temas abordados pelas figuras centrais. Não só Godard, cujos filmes tendem a maioria das vezes a distanciarem-se do dogmatismo da filosofia, e sobretudo da filosofia política [veja-se La chinoise (O Maoísta, 1967)], deve ter encontrado em Xavier, por ser escritor de ficções e pintor, uma espécie de alter ego, mas JLG não se deve ter esquecido que o irmão de Joseph De Maistre é conhecido pelo livro delirante que escreveu em 1794: Voyage autour de ma chambre. Monumento da literatura pre-romântica, Voyage autour de ma chambre descreve as viagens e visões oníricas de Xavier de Maistre quando estava imobilizado em consequência de uma ferida, graças às quais conseguiu falar com personagens famosas da Antiguidade e que lhe permitiram escapar ao tédio e à melancolia da sua situação.
Apesar de citar directamente Joseph De Maistre, Le livre d’image é animado pelo espírito e pelas visões de Xavier, lançando-se em diversas viagens que deixam para trás o corpo moribundo da melancolia tipicamente ocidental. Por um lado, o filme embarca nas viagens cinematográficas da terceira parte, composta por diversos excertos em que intervêm comboios, herdeiros do “train de la Ciotat” dos irmãos Lumière, e depois da quinta parte, que vai ao encontro das formas cinematográficas sensuais e poéticas da “Região Central” árabe. Por outro lado, essas deslocações simbólicas operadas pela montagem acompanham-se de uma viagem no sentido literal: aquela que fez o próprio Godard à Tunísia para filmar as únicas sequências inéditas do filme, cujas paisagens e cenas do quotidiano juntam-se ao álbum realista e fabuloso do último movimento dedicado ao mundo árabe.

Os excertos da terceira parte tendem a evidenciar a forma como o Ocidente e a cultura ocidental serviram-se dos comboios para cartografar, marcar certos territórios e escrever assim a sua própria versão da História – foi por exemplo graças ao caminho de ferro que foi escrita a lenda da Conquista do Oeste nos Estados Unidos ou que as principais potências ocidentais ocuparam uma grande parte do continente africano. Para lutar contra essas tendências históricas e cartográficas, e até lutar contra o seu próprio orientalismo problematizado no filme pelas referências a textos do pensador palestiniano Edward Saïd, JLG dinamita os carris que seguem habitualmente os comboios turísticos e cinematográficos vindos da Europa ou dos EUA, brutaliza a montagem e as representações, para conseguir viajar e movimentar-se fora dos caminhos balizados e direitos, pelas “veredas” de João César Monteiro, e conseguir até que enfim viajar torto, ou seja, viajar de forma livre.
Ao escolherem viajar torto, Godard e o seu espectador têm de aceitar abandonar a possibilidade de uma representação totalizante, denunciada em off como uma violência essencial feita às figuras ou aos objectos retratados, e deixar-se exaltar por uma viagem fílmica e poética que leva à sua potência máxima e fraternal a beleza singela de rostos, gestos, paisagens, cantos e gritos do mundo inteiro.
Inesquecível nos planos da La passion de Jeanne d’Arc (A Paixão de Joana d’Arc, 1928) de Dreyer que provocam as lágrimas de Anna Karina em Vivre sa vie (Viver a Sua Vida, 1962), Antonin Artaud aparece cada vez mais nitidamente como uma referência capital para JLG. Era a voz de Artaud a vociferar em off a canção militar francesa Malbrough s’en va-t-en guerre – gravação sonora tirada de um ensaio do escritor-actor para La fin du monde (1931) de Abel Gance – que acompanhava em 2013 a conclusão de Adieu au langage (Adeus à Linguagem, 2014). São as suas exclamações escatológicas [“pour ne pas faire caca” (para não fazer cócó)] que se ouvem pouco depois do início do Livre d’image.
Verdadeira força de desterritorialização para Deleuze e Guattari, modelo do artista cuja loucura soube descompartimentar os registos e aniquilar todas as fronteiras, e autor a partir do qual os dois filósofos teorizam essa “schizo-analyse”, que pretendiam pôr em prática, Artaud esventra Le livre d’image, abrindo o filme para o múltiplo, o não raccord, a disparidade, para um pensar e um viajar torto que destroem a lógica aristotélica. Através dos gritos poéticos do escritor, em resistência às instituições hospitalares e à “sociedade de controlo” de Foucault, Godard transforma o seu último filme numa derradeira tentativa de dar a palavra àqueles que nunca são ouvidos e que a sociedade no seu conjunto sempre oprimiu: os loucos (Artaud, mas também uma das figuras principais do romance Une Ambition dans le désert d’Albert Cossery utilizado no movimento final), as crianças que aparecem ao longo do filme, os animais dos excertos de Le sang des bêtes (1949) de Franju, ou ainda os povos da “Região Central” reduzidos ao silêncio por mais de dois mil anos de História “ocidentalocentrada”.

Não é por acaso que JLG utiliza em Adieu au langage e Le livre d’image gravações sonoras de Artaud. Com o seu subtítulo “Images et paroles”, a última obra do cineasta procura sair de forma radical do culto e da obsessão pelo texto. Uma passagem, quase que monstruosa pelo egocentrismo que implica da parte de Godard, tende até a fazer do Livre d’image o filme que consegue ultrapassar as religiões do livro, operando uma transmutação do Livre d’image num novo Evangelho, novo Corão ou nova Torá, superior aos três livros por não procurar fanatizar e prender a um texto, por ser apenas composto de “imagens e palavras”, e por ter sido pensado por e para os pobres, os simples de espírito, os loucos, as crianças, os animais e os povos mudos.
Além de Artaud e do louco Tarek de Une Ambition dans le désert, uma terceira figura surge no filme enquanto profeta de uma religião por vir: a figura de Bécassine, famosíssima empregada de uma série de bandas desenhadas francesas, considerada pelos habitantes da Bretanha como um estereótipo desprezável. Em Le livre d’image, Bécassine é transformada numa resistente a todas as simplificações, numa personagem que os poderosos devem temer porque ela sabe manter o silêncio quando é necessário, e numa figura cujo gesto de levantar o dedo produz um eco com o gesto de São João Batista representado por Leonardo Da Vinci. O quadro convocado pela montagem, o San Giovanni Battista de Da Vinci, serviu entre outras coisas de capa ao livro de Paul Valéry Introduction à la méthode de Léonard de Vinci, associando assim Bécassine a uma profetiza que consegue ver o mundo de maneira diferente e múltipla, tal como o escritor francês o vê graças às telas do pintor da Renascença.
Valéry escreve que em Da Vinci os “pontos fortes parecerão mais fáceis de reter, mais suaves de ver. É a partir daí que o espectador se eleva ao devaneio, e doravante poderá estender a objectos cada vez mais numerosos características particulares provenientes dos primeiros e dos mais conhecidos. Ele aperfeiçoa o espaço dado ao lembrar-se de um anterior. Depois, a seu belo-prazer, organiza e desfaz as suas impressões sucessivas. Pode apreciar estranhas combinações: olha como um ser total e sólido um grupo de flores ou de homens, uma mão, uma face que ele isola, uma mancha de claridade numa parede, um agrupamento de animais, misturados ao acaso. Põe-se a desejar figurar conjuntos invisíveis cujas partes lhe são dadas. (…) Das formas nascidas do movimento, há uma passagem para os movimentos em que as formas se transformam, com a ajuda de uma simples variação de tempo e de duração.”
Em Histoire(s) du cinéma, Godard comparava a experiência perceptiva de Valéry frente aos quadros de Da Vinci à experiência do espectador frente aos filmes de Alfred Hitchcock – numa passagem intitulada “Introduction à la méthode d’Alfred Hitchcock”. Com Le livre d’image, filme em forma de mão estendida e generosa, o cineasta oferece a titânica força perceptiva e expressiva do cinema a Bécassine e a todos aqueles que como ela – e como nós – precisam da arte inventada pelos irmãos Lumière, e aperfeiçoada por Hitchcock, Welles e Godard, para sobreviver e para dar a ouvir o clamor das suas vozes.
Guillaume Bourgois
Professor de Estudos fílmicos na universiade de Grenoble-Alpes
