No primeiro plano de Climax (Clímax, 2018) é-nos oferecido um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar nevado, caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É um plano god’s eye view, um enquadramento da visão divina, que observa as minúsculas romagens humanas lá de cima, com indiferença (formando com o solo um preciso ângulo de 90º). Essa vista torce-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que dá a ver o horizonte, este está orientado de tal modo que coloca a mulher no céu e logo, por um simples silogismo, deus na terra. O re-enquadramento é frontal (leia-se, horizontal, feito ao nível dos olhos). Aqui, nos primeiros segundos do filme, inauguram-se os dois modos fundamentais que dominarão o olhar de Noé sobre o mundo que nos quer apresentar: no intervalo entre a visão de deus (terreno) e a lógica frontal de um avaliador humano perfeccionista (com tiques de sacralizador).
Se dúvidas ainda restassem, uma das primeiras inscrições do filme afirma “être est une illusion fugitive” [“ser/existir é uma ilusão fugitiva”] e pouco depois ouvimos, da boca da encenadora, depois da cativante coreografia de abertura o grito “Dieu est avec nous” [“Deus está no meio de nós”]. Isto para dizer que em Climax o divino é questão essencial. Na acção, na mise en scène, no enquadramento, na moral. Um deus que não é definitivamente cristão, antes algo próximo do paganismo esotérico de Aleister Crowley e os seus thelemitas. Noé irá, progressivamente, desequilibrar os eixos do enquadramento e destruir os pontos de fuga (literal e simbolicamente) com vista a retratar o desligamento da realidade de uma pessoa sob o efeito de alucinógenos [operação que além do seu virtuosismo técnico pouco mais é que uma literalização um pouco óbvia do estado de espírito dos personagens, um pouco como o “quadrado” de Xavier Dolan que se abria aquando da “expansão” do protagonista, em Mommy (Mamã, 2014)].
Mas mais do que me debruçar sobre esses complexos de deus que Noé procura afirmar com o seu cinema, parece-me importante observar a primeira sequência pós-genérico. Nela um televisor antigo (o filme diz basear-se em acontecimentos reais, ocorridos no ano de 1996) exibe gravações do casting de uma série de bailarinos que protagonizarão a coreografia que dá o mote à tormenta que se avizinha. São-lhes feitas várias perguntas que anunciam as suas discrepâncias e as respectivas possíveis fontes de conflito, algo que será sublinhado mais adiante numa sequência de vários diálogos entre os elementos do grupo em que as tensões sexuais, raciais, de género e de classe são postas a nu – para aqueles que não as haviam conseguido antecipá-las por debaixo do coçado vestido de organdi.
Mas, mais importante, essa televisão está apoiada (literal e simbolicamente) por uma série de livros (à esquerda) e uma série de cassetes de VHS (à direita). Noé parece colocar, à vista de todos, de onde vem, o que leu e viu, afirmando por isso que o que nos irá apresentar é uma construção que assenta nessas referências. Quais são? Nos livros os títulos são de difícil leitura, mas consigo destacar alguns como: L’aventure hippie; Mon dernier soupir; Suicide – mode d’emploi; Moulinier, une vie d’enfer (de Pierre Petit); De Profundis (de Wilde) e depois alguns livros sobre cinema, nomeadamente sobre Lang e Buñuel. Portanto: cinema, suicídio e a libertação dos códigos da moral são os temas mais presentes.
Nos filmes encontramos Fassbinder [Querelle (Querelle – Um Pacto com o diabo, 1982) e Faustrecht der Freiheit (O Direito do Mais Forte à Liberdade, 1975)], Pasolini [Salò o le 120 giornate di Sodoma (Salò ou Os 120 Dias de Sodoma, 1975)], Argento [Suspiria (1977)], Buñuel [Un chien andalou (Um Cão Andaluz, 1929)], Fulci [Zombi 2 (Zombi 2 – A Invasão dos Mortos Vivos, 1979)], Eustache [La maman et la putain (A Mãe e a Puta, 1973)], Anger [Inauguration of the Pleasure Dome (1954)], Lynch [Eraserhead (No Céu Tudo É Perfeito, 1977), com o título francês “Labyrinth Man”], alguns títulos mais obscuros [Angst (1983) de Gerald Kargl – filme que Noé admite ter visto mais de 40 vezes – e a curta-metragem Vibroboy (1994) do holandês Jan Kounen] e, mais importante de todos, Andrzej Zulawski, com a sua única incursão pela língua inglesa, Possession (Possessão, 1981). Climax é, da parte do seu realizador, uma grande homenagem a Zulawski e ao seu cinema de travellings evanescentes e do excesso sobre-humano dos actores (que se desfazem perante a lente, em carne viva, sangue, vómito, mijo e merda). O desempenho de Sofia Boutella (que aqui interpreta Selva) faz muito lembrar a performance grotesca de Isabelle Adjani nesse filme de Zulawski (os mesmo gritos, os mesmos estertores, os mesmos corredores mal iluminados, o mesmo corpo dominado por forças exteriores/interiores).
O problema não é necessariamente o determinismo, mas a total ausência de humor, de kitsch, de ironia, de wit, de meta-linguagem, enfim, qualquer coisa que eleve o retrato do horror a algo mais do que uma habilidosa punheta estética.
Portanto este é o “background” de Noé (de novo, literal e simbólico): a contra-cultura ou cultura underground, a alta cultura de algum cinema de autor e a “baixa” cultura do trash e do gore dos mestres italianos. Coisa eclética, está visto, como já nos havia habituado. Recordo, por exemplo, que no seu anterior filme, Love (2015), também me dediquei a elencar as várias referências cinéfilas que o realizador havia deixado, de forma dispersa, pelas paredes das divisões onde decorriam os amores e desamores (mais ou menos softcore) desse filme – universo que, note-se, não era muito diferente deste. Mas também em Love a dimensão material do filme enquanto cassete de VHS não era coisa de somenos, não fosse exactamente dentro de uma dessas caixas que o protagonista conserva um saquinho de ópio: o fetichismo do VHS como uma droga sentimental. Em Climax a droga (LSD), mais do que sentimental, tem efeitos melodramáticos, para não dizer operáticos. A trip de ácidos transforma-se em modesto circo de horrores, no interior de um barracão. Nele existirão homicídios, incesto, suicídios, filicídios, violações, espancamentos… Todo um pot-pourri de coisas bem desagradáveis. Mas aquilo que se queria que fosse uma descida aos infernos (acentuada, caso o espectador não houvesse percebido ainda pela iluminação que, a partir de certo momento, pinta tudo de vermelho) nunca se liberta da sensação de exercício cinéfilo entre o moralista (que os “mestres” nunca foram) e o postiço.
Climax parece um longo reclame contra o consumo de drogas – coisa inaudita de um cineasta que as vinha louvando tanto, e forma ostensiva em Enter the Void (Enter the Void – Viagem Alucinante, 2009) –, como quem diz “olha filho, tem cuidado, vê o que as drogas fazem às pessoas, ficam todas chalupas”. E, pior que isso, a sensação de que todos aqueles vinte e quatro actores estão ali, em roda viva, para a delícia do realizador. Porque a nenhum deles é dada a chance de uma brecha de profundidade. Todos eles são pequenas marionetas que Noé manipula consoante o seu gosto [achando, certamente, que a sua câmara que saltita de personagem em personagem está domada do espírito de Le fantôme de la liberté (O Fantasma da Liberdade, 1974)].
Nenhuma salvação é permitida porque tudo está decidido desde o momento em que o realizador grita acção (e começa o seu filme com uma série de “literatura”, qual nota de intenções). O problema não é necessariamente o determinismo, mas a total ausência de humor, de kitsch, de ironia, de wit, de meta-linguagem, enfim, qualquer coisa que eleve o retrato do horror a algo mais do que uma habilidosa punheta estética. “Vais morrer e será belo, e terrível, e profundo, e chocante. Por isso grita cabra, que as pessoas querem ver-te sofrer, especialmente eu. Grita!”, diz Gaspar “Deus na Terra” Noé.