Visitamos ou revisitamos o (bom) cinema de Janeiro pelas penas de Bernardo Vaz de Castro (sobre “a cara” de Robert Redford), João Araújo (sobre a paleta de Willem Dafoe) e Luís Mendonça. Este último procura complementar o olhar de Duarte Mata sobre os mais recentes filmes de M. Night Shyamalan e Clint Eastwood, dois cineasta cá de casa que nos presentearam com duas obras para a eternidade.
Este texto não é sobre o filme, mas antes sobre a cara de Robert Redford, porque há qualquer coisa de perturbadoramente antitética na sua imagem. Todos os actores que sobrevivem à ditadura do sistema americano, prolongando-se além da charneira de James Dean, são castigados pelo largo ecrã que de ano para ano revela o efeito nefasto do tempo. O tempo cinematográfico é diferente do tempo real, porque a juventude, a beleza e por vezes até a própria subtileza são engolidas por um deus tanatológico que impera sobre todos os outros deuses que povoam o olimpo da tela. Melhor que ninguém, Marlene Dietrich soube morrer para o mundo das imagens a tempo de reinar sobre o mundo das coisas, sem que nenhuma imagem posterior se sobrepusesse à imagem polida e cristalizada do seu apogeu. Quem não respeita este trato faustiano, fica sujeito à natureza vampírica das luzes e do close-up, tal como Bette Davis ficou.
Contudo, não é sobre a “escrava da indústria” de que vos quero falar, até porque Redford se distancia desta sujeição por dois motivos. Em primeiro lugar, não é por acaso que referi o nome de duas actrizes, na medida em que a ditadura da juventude sempre foi mais implacável com o sexo feminino; em segundo lugar, e ao contrário do rosto encovado de Clint Eastwood, que revela o seu próprio esqueleto, o rosto de Redford sustenta toda a sua juventude. O tempo limitou-se a desenhar sobre uma folha de acetato inúmeras rugas e sulcos que esculpem contornos incapazes de perturbar a imagem original, aquela que guardo sobretudo dos extraordinários filmes de Sydney Pollack. Com 82 anos, a imperturbável aura de Redford despede-se do grande ecrã, num filme que a ele e a Sissy Spacek (outro rosto a quem o tempo é incapaz de destronar a sua beleza) é bastante devedor. All Is Lost (Até ao Fim, 2013) não foi afinal o meu último encontro com a juventude de Redford e não fossem as notícias da sua aposentadoria e apostaria o dobro dos anos até que o tempo se atrevesse por fim a tocar na sua carne.
Bernardo Vaz de Castro
Como capturar a vida e obra de um dos mais singulares e importantes artistas dos últimos séculos, ainda por cima quando esse nome já foi objecto de vários filmes [desde Alain Resnais, Vincente Minnelli, Robert Altman, Maurice Pialat e até ao mais recente Loving Vincent (A Paixão de Van Gogh (2017)]? De forma poética, tentando fazer justiça à obsessão de Van Gogh pela luz e pela procura de um significado maior através da expressão artística, com uma câmara irrequieta e divagante que tenta registar de forma sensorial e expressiva a forma como o pintor encontrava inspiração criativa na natureza e uma sublimação que lhe escapava numa realidade deprimente e perturbada. Se o filme assumisse apenas esse registo sensorial, quase abstracto e experimentalista, seria notável pela quebra com convenções narrativas e uma escolha arriscada mas corajosa. Porém, Julian Schnabel sente a necessidade de contextualizar os períodos de suplícios e angústias de Van Gogh, de explicar um desligar em relação à vida à sua volta, o insucesso perante o olhar dos seus contemporâneos e o escárnio de estranhos que não o compreendem, efectivamente dividindo o filme em dois. O resultado é algo desequilibrado, com uma sucessão de episódios que alternam entre os momentos sublimes de criação e os momentos de dúvidas e pesadelos interiores que afectavam a vida de Van Gogh, mais rotineiros e desinspirados.
A comparação com o soberbo Le scaphandre et le papillon (O Escafandro e a Borboleta, 2007) é inevitável, quer pela semelhança no estilo visual próximo do tal registo sensorial, quer pelo retrato de alguém, que mesmo que as circunstâncias sejam diferentes, encontra-se preso a um modo de ver o mundo, a uma obsessão natural com a sua condição: aqui, Van Gogh e a sua solidão incapacitante que o levam a procurar refúgio no único propósito que encontra, a expressão artística – uma comparação que é reforçada pelo uso recorrente dos planos de ponto de vista, em que a realidade surge ligeiramente ofuscada. Schnabel consegue criar um retrato psicológico de Van Gogh eficiente, pleno de empatia, no qual é ajudado pela interpretação do sempre complexo Willem Dafoe (que, ao emprestar os seus 62 anos ao retrato de uma figura de 37, cria um efeito estranho de antecipação temporal e contraria alguma da infantilização a que a personagem é sujeita). Schnabel, ele próprio um pintor, regressa aqui ao fascínio pela criação artística que já tinha abordado em Basquiat (1996) e Before Night Falls (Antes que Anoiteça, 2000) – se neste último a certo ponto o escritor retratado respondia que escrevia por “vingança”, aqui Van Gogh responde “pela luz”. Para Schnabel, Van Gogh é um dos grandes artistas, mas o filme não explica porquê, a não ser afirmando o excepcionalismo do artista pela fé cega na sua arte. Apesar de alguns momentos de brilhantismo, já vimos Schnabel fazer melhor.
João Araújo
Começamos por pensar que este é um filme sobre pessoas a tentarem “desmascarar” super-heróis. Só que Shyamalan reservou para perto do fim a exposição de uma brilhante teia dramatúrgica e de um prazer lúdico por reviravoltas tão narrativas quanto teóricas que impressiona pela sua fulgurância. Descobriremos, com o passar deste “filme de cerco” de pulsão metafísica, que Glass (2019) é uma ficção que vai sendo desmascarada por um tratado filosófico estilhaçante sobre os ossos quebradiços da nossa noção de super-heroísmo. O filme dá-nos um lado e logo a seguir vira o universo para nos dar um olhar “de fora”, que relativiza até à loucura (ou, tocando extremos, até à mais radical lucidez) o balizamento de conceitos, tal como usados e abusados pela “vigilante” política norte-americana no mundo, de “bem e mal”, “heróis e vilões”. No final, tudo o que resta são pessoas numa desesperante luta em favor ou desfavor de um dado tipo de sociedade.
Portanto, estamos no domínio do filme mais político (uma espécie de agit-prop por uma nova Kulturkritik) e densamente filosófico de Shyamalan desde The Village (A Vila, 2004). Raramente se trabalhou assim no mainstream, indo até ao tutano das ideias e autorizando uma notável liberdade formal, de câmara e interpretativa (um filme de super-heróis verdadeiramente “concretista” ou eminentemente teatral? É isso!). Neste ponto, queria sublinhar: não acho que se tenham despendido adjectivos suficientes para caracterizar a composição proteiforme de James McAvoy, que está ainda mais espantoso que em Split (Fragmentado, 2016), elevando a sua personagem “do animal” de mil faces a persona shakespereana. Sem perder o pé no melodrama e no sentimentalismo soap de ascendência spielberguiana, Shyamalan dinamita retoricamente questões relacionadas com o poder, a própria retórica, o seu papel na construção de diferentes “discursos de verdade” e a criação de mitos no espaço público/mediático. Glass é um exercício de inteligência, uma inteligência arrojada e penetrante, e é um showcase de mestria formal como há poucos – temos aqui um Shyamalan mais contido, mas não menos inspirado. Acima de tudo, tenho a convicção de que este filme será um óptimo descodificador dos nossos dias – em certa medida, como que os põe “num divã” – e, nesse sentido, é um luminoso documento cultural e histórico, apto a nos devolver, sobre vidro estilhaçado, a nossa verdadeira imagem como comunidade e como cultura.
Luís Mendonça
Este The Mule (Correio de Droga, 2018) tem o crepúsculo dos melhores filmes clássicos, sobretudo os de John Ford. Tem o sentido trágico e cómico de alguns dos seus filmes finais, sobretudo The Sun Shines Bright (O Sol Nasce para Todos, 1953), The Man Who Shot Liberty Valance (O Homem Que Matou Liberty Valance, 1962) e The Last Hurrah (O Último Hurrah, 1958). A personagem interpretada por Eastwood, homem que sempre pôs o trabalho (o cultivo de flores) à frente da família, convoca no seu andar, no movimento do corpo e na microfisionomia do seu rosto envelhecido, a tensão, feita à sua medida, de uma história em que um nonagenário protagoniza um “filme de acção da vida real”, com vista a compensar o tempo perdido: “eu não tinha tempo, por isso restava-me ‘comprá-lo de volta'” – confessará perto do fim este velho homem em busca de redenção.
Fez bem a Eastwood voltar às narrativas rectilíneas, claras e simples. Depois da sua série não inteiramente conseguida de super-heróis da vida real, que deu origem a uma trilogia composta por American Sniper (O Sniper Americano, 2014), Sully (Milagre no Rio Hudson, 2016) e 15:17 to Paris (15:17 Destino Paris, 2018), Eastwood regressa à linha clássica – de que filme? Por exemplo, de uma das suas obras-primas maiores, Million Dollar Baby (Million Dollar Baby – Sonhos Vencidos, 2004) – consubstanciada num retrato de um homem fragilizado pela idade e por uma vida desenrolada numa espécie de exílio sentimental. The Mule tem o fulgor dos clássicos mais profundos – falei de Ford, mas também me apetece falar de Ozu, da serenidade metafísica com que nos faz contemplar a existência e da clareza com que nos dá uma lição ou outra sobre a vida, sem, com isso, pregar sobre o que quer que seja. É um filme sereno e telúrico – o tempo da estrada, da paisagem americana, das flores e dos “late bloomers” – de grande mestre, de grande sábio, que já contém, em si mesmo, o mais terno elogio ao cinema de Eastwood: o da nossa saudade, que ainda mal começou e que já é tão eterna quanto inconsolável.
Luís Mendonça