Aretha Franklin no Spotify (Young, Gifted and Black), descafeinado do Aldi na caneca lascada, manta aos quadrados nos joelhos e sobre eles a Luna, a nossa gatinha, uma mão no teclado, outra no rato e Se esta rua falasse de James Baldwin todo sublinhado em cima da secretária, à espera que uns dedos húmidos o voltem a folhear. Comecemos.
O que mais surpreende no livro de Baldwin, além do efeito de denúncia das condições de vida da população negra nos EUA nos anos 1970 (denúncia essa que é ainda muito válida nos dias de hoje, sobre as condições de vida, sobre o racismo institucionalizado ou sobre a flagrante desproporção racial da população reclusa), é o modo como protagonista, narrador e autor se fundem. Tish conta-nos tudo, mas esse tudo é muito maior que ela. O acesso dela à acção, à interioridade dos outros personagens e ao estado do mundo é marcado por um conhecimento que só pode vir do autor. No entanto, a sua subjectividade condiciona-nos e condiciona a linha narrativa do romance. Este dá-se a ler numa constante flutuação entre presente e passado, com as lembranças a interromperem longamente a linearidade dos momentos. Um zig-zag de associações livres que nos fazem viajar à infância do casal protagonista contextualizando e dando corpo aos personagens presentes. E nessas romagens surgem perfeitas cápsulas da clarividência do escritor sobre o seu país e o seu tempo.
Aqui ficam alguns dos destaques que reencontro nas páginas moles do livro sobre o que é ser negro na América, segundo Baldwin: “É preciso dizer que não acho que a América seja o lugar ideal, ou uma oferta de Deus, para ninguém. (…) Esse Deus que as pessoas dizem servir (…) tem um sentido de humor muito mauzinho. Ao ponto de dar vontade de O espancar, se Ele fosse um homem. Ou antes: se nós fôssemos”; “Ele não era o preto de ninguém. E isso é crime nesta porcaria de país livre. Devemos ser o preto de alguém. E, se não formos o preto de alguém, somos um mau preto (…)”; “Não acredito que exista um homem branco neste país que seja capaz de se excitar, de ficar com a pila dura, se não ouvir um preto a gemer”; e a lista podia continuar. Claro que Baldwin/Tish também nos oferecem considerações sobre o amor, a amizade, o que é ser homem e o que é ser mulher, sobre ser-se pai, mãe e irmão, ou sobre a inter-ajuda entre os desfavorecidos.
Barry Jenkins é um pudico. A sua linguagem é a da publicidade e Baldwin merecia melhor.
Aliás, um dos momentos mais belos do livro é a sequência da compra dos tomates. Aí, momento dramático e marcante na descrição do desfecho (por inaugurar a perseguição do agente Bell), tudo é posto em acção ao mesmo tempo: o papel da mulher que compra legumes e o papel do homem que compra cigarros, o assédio de uma mulher negra e sozinha à vista de todos, a violência do marialva (sobre o rapaz e sobre o saco de tomates), a condenação a priori do polícia de um homem negro, a autoridade da idade (e da cor da pele) da senhora italiana que trata da mercearia e protege o casal. Diferentes comunidades, diferentes papéis de género, diferentes gerações, diferentes tons de pele, e diferentes funções sociais tudo posto em turbilhão numa passagem de apenas cinco ou seis páginas que funciona como centro nevrálgico da história (e símbolo de tudo aquilo que Baldwin procura desenvolver).
As coisas são complexas em Se esta rua falasse, a começar pelo amor. Numa das primeiras páginas do romance Tish descreve o momento em que Fonny lhe cuspiu na cara, numa zaragata de crianças (que Barry Jenkins obviamente omitiu): “Se calhar a minha vida mudou nesse preciso momento em que o cuspo do Fonny antigiu a minha boca”. E adiante diz-nos coisas como “Acho que deve ser raro duas pessoas conseguirem rir e fazer amor ao mesmo tempo, fazer amor porque riem, rirem porque estão a fazer amor. O amor e o riso vêm do mesmo lugar: mas poucas pessoas lá chegam” e exactamente quando Tish e Fonny fodem pela primeira vez ela explica-lhe “Foi um bocado como ser atropelada por um camião (…), mas foi a coisa mais bela que alguma vez me aconteceu.” Nessa “primeira vez” a descrição de Baldwin/Tish fala de sangue e esperma, de suor, de dor e prazer, fala de medo e adrenalina, fala, no fundo, do que é o sexo. Essa mesma cena, em If Beale Street Could Talk (Se Esta Rua Falasse, 2018), é descrita numa elipse, sobre um gira-discos, que nos leva dos primeiros beijos ao suspiro do cansaço (com uma suave melodia jazz a tocar no fundo).
Barry Jenkins é um pudico. A sua linguagem é a da publicidade e Baldwin merecia melhor. Melhor que um longo anúncio que ora parece ser de uma marca de roupa retro, ora de uma perfumaria, ora do Ikea. Onde está a crueza? Apenas nas fotografias de Roy DeCarava, Gordon Parks e outros, que preenchem duas curtas cenas do filme. Aí, numa montagem acelerada, acedemos a relances da realidade que Baldwin descrevia. Mas para Jenkins tudo é doce, tudo está revestido por uma película de caramelo peganhento, que faz brilhar de nostalgia as roupas e os papéis de parede. Na contra-capa do livro, na edição da Alfaguara, lê-se uma passagem da eulogia da escritora Toni Morrison a Baldwin em que esta afirma o seguinte sobre o uso da palavra pelo escritor: “nem sem sangue, nem sangrenta, mas viva.” No cinema de Jenkins tudo está morto e empalhado.
Veja-se logo a primeira sequência do filme (da imagem), em que o casal desce uma escadaria com um ligeiro travelling para a direita (sem qualquer função – mero automatismo da ideologia da máxima dinâmica visual). Ele de ganga e camisola amarela, ela de casaco gema e camisa com debruado azul – tudo a fazer pandã, como fica bonito. Sem qualquer profundidade de campo e com uma paleta de cores pastel, somos instalados num photo shoot de duas horas para revista Vogue. Pior ainda quando o cinema – e em especial um certo cinema americano – é atacado no livro: a irmã “Deixou de ir ao cinema. ‘Não quero mais saber das mentiras merdosas do homem branco. Já me lixou suficientemente a cabeça’.” e a descrição do agente Bell recorre, nem mais nem menos, às passadas largas de John Wayne, “como quem conquista o universo, e acreditava naquelas merdas todas: enfim, um sacana infantil, estúpido e malvado.”
O pior de If Beale Street Could Talk não é ser um pastelão aborrecido, nem se deixar levar num “registo de quixotesca autocomiseração” – como Baldwin advertia quando se referiria à campanha do advogado –, nem mesmo o academismo bacoco. O pior é reduzir as nuances de um grande livro (o pormenor da fotografia que a mãe mostra à rapariga violada que no livro apresenta um Fonny com a camisa aberta até ao umbigo e no filme nos oferece um casal sorridente e muito apresentável…) a um cinema de pacotilha onde o fervor, a revolta e a dor (o livro acaba a repetição da palavra “cry” nove vezes, que significa simultaneamente choro e grito) se desfazem na simplicidade televisiva do melo-drama fofinho. “Nem o amor nem o terror nos tornam cegos: é a indiferença que nos cega”, lê-se a certa altura no livro. O cinema de Barry Jenkins é indiferente.