A tarefa dos nossos walshianos não era fácil: escolher o seu Albert Finney favorito. O nosso mais recente walshiano, Samuel Andrade, estreia-se no burgo com a escolha mais recuada das três, da fase inglesa “angry” do grande actor inglês. Depois, Inês N. Lourenço celebra a vivacidade, mordacidade e garra de um romântico Finney. Por fim, Luís Mendonça fala da maneira como Finney enfrenta a morte bons anos mais tarde.
Versatilidade poderia ser o nome do meio de Albert Finney. Ao longo de meio século de carreira, o seu talento abrangeu a mais completa multiplicidade de géneros e registos. Num breve exercício de memória, podemos recordar como Finney foi um amargurado operário fabril em Saturday Night and Sunday Morning (Sábado à Noite, Domingo de Manhã, 1960), galã romântico em Tom Jones (Tom Jones, Romântico e Aventureiro, 1963), Hercule Poirot para Murder on the Orient Express (Um Crime no Expresso do Oriente, 1974), diplomata alcoólico em Under the Volcano (Debaixo do Vulcão, 1984), mafioso irlandês em Miller’s Crossing (História de Gangsters, 1990) ou manipulador operacional da CIA em The Bourne Ultimatum (Ultimato, 2007).
Desta filmografia tão diversa, invoco com enfática admiração o seu retrato de psicopatia em Night Must Fall(Ao Cair da Noite, 1964), thriller de Karel Reisz, obra absolutamente hitchcockiana que não só se distingue pela sua fenomenal direcção de fotografia, como – e sobretudo – pelo protagonismo de Finney. Ao seu “rosto de anjo”, contrapõe-se a atitude do jovem adulto, um rebel without a cause dos anos 60, detentor de um puro instinto homicida que, desde a primeira sequência, é apresentado sem rodriguinhos, culminando na frieza do olhar e na premeditação de movimentos dos últimos momentos (aos quais se referem a imagem destacada) do filme. Albert Finney encarnou o psicopata como se essa condição lhe estivesse impregnada no coração. Da “desditosa” Mona Washbourne ao espectador, ninguém escapou a tão magnético talento.
Samuel Andrade
Paul Newman chegou a ser contactado, mas declinou o papel depois de ler o guião. Alguém acabou por sugerir o britânico Albert Finney, cujo êxito internacional da personagem Tom Jones, no filme de Tony Richardson, ainda ressoava. Nada mau: um actor de formação clássica, seis anos mais novo que Audrey Hepburn e, claro, bem-parecido. Two for the Road (Caminho para Dois, 1967) é então o título de Stanley Donen que os junta e que nos faz apreciar um jovem Finney em pleno domínio das suas capacidades performativas. Isto porque não se trata de um filme simples, apesar da sugestão ligeira da sinopse, a saber, os altos e baixos de uma relação que conta doze anos de casamento. O modo como Donen nos dá a ver essa relação, quebrando a lógica formal da cronologia, é aquilo que permite apreciar melhor a totalidade das nuances deste par. O filme anda para trás e para frente no tempo, como os diferentes carros que sinalizam a história, mas o sentido da estrada aponta sempre para o crescimento – dentro das repetições da vida – daquele casal. Um crescimento em amargura, entenda-se, apesar de todo o feitiço da juventude.
Vale a pena lembrar que este foi um trabalho comercialmente arriscado para Audrey Hepburn, numa altura em que a sua imagem estava muito ligada a determinados papéis de glamour, como aqueles em que o próprio Stanley Donen a dirigiu antes [Funny Face (Cinderela em Paris, 1957) e e Charade (Charada, 1963)]. Por isso Albert Finney, alheio a esse universo, teve aqui uma importante influência secreta… Durante a rodagem eles mantiveram um discreto romance e esse romance desbloquearia em Audrey uma franqueza especial. Ela era ao mesmo tempo a mulher-criança que a definia e a mulher endurecida pelo caminho do casamento. Algo que encontra verdadeira correspondência em Finney, que consegue ser o mais vivaço e divertido dos homens, mas igualmente o mais ácido e arrogante. É nessa duplicidade que está a plenitude da sua interpretação em Two for the Road, tal como se vê, de modo exemplar, naquele momento (das imagens acima) em que ele abraça Audrey numa intensa e comovente reconciliação, e de repente lhe lança a frase explosiva “Are you sure you remember which one I am?”, fazendo tudo desmoronar para o tom mais negro, que logo se inverte de novo quando ele corre atrás dela, arrependido. Finney é aqui um artista das emoções desordenadas, um operário do mecanismo dramático (não por acaso, qual metáfora, o vemos duas vezes deitado debaixo de carros a consertar alguma coisa) e um corpo com uma vibração a meio caminho entre a centelha dos clássicos e a garra moderna dos angry young men.
Inês N. Lourenço
Recebo a notícia da morte de Albert Finney com surpresa. Confesso que na minha cabeça Finney tinha morrido pouco tempo depois daquele pungente final do derradeiro filme de Sidney Lumet, Before the Devil Knows You’re Dead (Antes que o Diabo Saiba que Morreste, 2007). Lembro-me de escrever sobre o fade final em que vemos um envelhecido Finney a afastar-se de nós, solitário e quebradiço. Escrevi: “Os seus passos finais, em direcção ‘à luz’, são a mais difícil admissão no Paraíso.” Vi nessa imagem o fim de Lumet, que naquele filme encontrava um alter ego na personagem de Finney. Lumet morreria pouco depois. Ora, na minha cabeça Finney tinha partido também.
A grande actuação de Finney? A escolha não é propriamente fácil, sobretudo porque me ficou para sempre na retina o seu angry young man de Saturday Night and Sunday Morning (Sábado à Noite, Domingo de Manhã, 1960), um dos primeiros grandes papéis da sua carreira. Não sei bem o que faz um grande actor, mas em Finney, pelo menos para mim, talvez seja esta energia que está sempre pronta a irromper. O filme de John Huston que aqui trago, Under the Volcano (Debaixo do Vulcão, 1984), está cheio dessa energia, mas, desta feita, sem a vitalidade ou frescura daquele filme de Karel Reisz. Um consul inglês numa localidade do México passa os dias a perambular e a beber, num venenoso e infernal fare niente que neste filme anda de mãos dadas com as celebrações do Dia dos Mortos. Em transe, cheio de suor na pele e álcool no sangue, “dançando sobre o precipício”, Finney pisa o risco do profano e lança uma gargalhada à cara da Morte.
Luís Mendonça