Numa altura em que ainda não nos habituámos à ideia de um mundo sem um dos seus mais carismáticos actores, quatro walshianos escolhem “o seu” mais inesquecível Bruno Ganz. Errando pelas ruas de Lisboa ou por paisagens gregas ou voando sobre a Berlim dividida pelo Muro ou fugindo à sua própria morte nos Estados Unidos, esta é uma pequena amostra das diferentes facetas do actor suíço, verdadeiro príncipe do cinema de autor europeu.
Vi-o só uma vez e ficou-me, talvez porque o filme seguia por uma Lisboa deliciosa e perigosa, romanesca, talvez porque estava fora de Portugal, e porque, claro, tinha o Bruno Ganz. O Ganz deambulava, naquela errância de errar de um solitário, de um flâneur a esvaziar. Desertor numa cidade despida, oferecida a alguém que “tem vontade de dormir, de caminhar, de sonho… de não se mexer”. Isto era muito e o filme seguia por aqui, com o vazio de Ganz, uma super 8, uma cidade, um rio, as pessoas, uma mulher (e mais uma), e o tempo lento e esticado. Isto não se esquece.
Carlota Gonçalves
Na hora de fazer uma vénia a Bruno Ganz, pico, sem hesitar, o título mais óbvio. A verdade é que não sei qual foi o primeiro filme em que o vi, ou sequer se tenho um “favorito”, mas parece-me que o inefável Der Himmel über Berlin (As Asas do Desejo, 1987) ilustra como poucos o jogo da sua presença de actor: entre a invisibilidade tranquila do anjo e a personificação idílica do desejo humano. É muito fácil ver nesta sua conjuntura específica dentro do filme de Wim Wenders a imagem bipartida cujas partes confirmamos noutros. Por exemplo, a discrição europeia do marinheiro flâneur de Dans la ville blanche (A Cidade Branca, 1983) e do picture framer de Der amerikanische Freund (O Amigo Americano, 1977), a conviver com a melancolia do homem de Die linkshändige Frau(A Mulher Canhota, 1978) ou do escritor de Mia aioniotita kai mia mera (A Eternidade e Um Dia, 1998). E é sobretudo esta característica da melancolia disfarçada num sorriso meigo – esse que se desenha primeiro nas rugas dos olhos – que guardo com espanto memorialista (o still escolhido capta bem os traços dessa expressão pacífica).
No livro A Lógica das Imagens, em que Wenders reúne vários textos relacionados com a sua filmografia e não só, há um capítulo com os apontamentos do que viria a ser Der Himmel über Berlin. O capítulo chama-se espirituosamente “Primeira Descrição de um Filme Verdadeiramente Indescritível”, e nas últimas páginas lê-se isto acerca da personagem que seria atribuída a Ganz: “Este será o mais ilustre de entre eles, o mais poderoso outrora, um ‘arcanjo’ que, porém, desde o desterro, é tão importante como os outros. Ele é aquele anjo que ‘vive na paz dos anjos’”. Não diria melhor. É-o agora mais do que nunca.
Inês N. Lourenço
De anjo em Der Himmel über Berlin (As Asas do Desejo, 1987) até à sua transformação em ícone máximo de Mal personificado em Der Untergang (A Queda: Hitler e o Fim do Terceiro Reich, 2004), a filmografia de Bruno Ganz foi reveladora de um talento natural, maleável e de superior imprevisibilidade. Contudo, a principal recordação que manterei do actor é a sua serenidade, sendo Mia aioniotita kai mia mera (A Eternidade e um Dia, 1998) de Theodoros Angelopoulos uma das melhores demonstrações dessa qualidade.
No retrato dos últimos dias de um escritor exilado que se arroga à possibilidade de “sentir todas as emoções humanas num só dia” e, nesse caminho, ainda auxilia um jovem albanês a escapar à deportação, conserva-se a imagem — do actor e das suas personificações — de Bruno Ganz enquanto bastião de contenção emocional, de uma presença simultaneamente clássica e de vanguarda, com o olhar em eterno sentido para o futuro. Bruno Ganz: teremos sempre aquele horizonte.
Samuel Andrade
Soube da notícia e ainda tinha a sua imagem na retina. A sua imagem vezes dois: primeiro, no último e aborrecido filme de Lars von Trier, como cicerone da morte, Virgílio acompanhando o psicopata Jack pelos círculos do Inferno; segundo, no recentemente revisto Der amerikanische Freund (O Amigo Americano, 1977), um dos meus Wenders favoritos que, mesmo não aguentando muito bem, pelo menos aos meus olhos, a revisita, reúne dois dos meus actores favoritos, Dennis Hopper e Bruno Ganz.
Quando revia O Amigo Americano, não conseguia deixar de me interrogar sobre como Ganz circula entre fantasmas no ecrã. Naturalmente que os velhos mestres Nicholas Ray e Samuel Fuller já não estão connosco, mas Dennis Hopper também partiu, demasiado cedo, e Gérard Blain idem. Nesta história de um homem que procura desesperadamente agarrar-se à vida enquanto luta contra um anunciado fim, não conseguia deixar de ver a marca da morte nessa presença de Ganz. Por isso, foi com um sentimento de assombro acompanhado de um idiota “lá está” que recebo a notícia do seu desaparecimento. Ganz foi – ainda é, está nos filmes, sempre no presente – um actor de mão cheia, um dos grandes príncipes do cinema de autor europeu. Em O Amigo Americano o que sobressai é a sua gélida batalha contra a sua própria morte, que depois se transforma num tango sedutor, porque para não morrer ele tem de matar, e matar dá uma pica do caraças. Não há como fugir: a morte é intoxicante.
Luís Mendonça