Stanley Donen entra no mundo do cinema pela mão de Gene Kelly, mas não façamos o que habitualmente a Donen se faz, porque este foi um realizador muito além dos seus parceiros. Se é justo recordar Kelly, Abbott ou Fosse, é igualmente justo recordar simplesmente Donen que mesmo numa carreira bastante irregular, foi um mestre na sua arte.
Donen começa a sua carreira nos palcos da Broadway no musical Pal Joey ao lado de Gene Kelly, marco de uma relação que até It’s Always Fair Weather (Dançando nas Nuvens, 1955) dará inúmeros frutos e que será responsável pela ascensão de ambos à categoria de realizadores. O nome de Donen surge após um convite de Freed lançado a Kelly para a realização de On the Town (Um Dia em Nova Iorque, 1949). Esta dupla era já particularmente famosa pelos corredores da Metro, onde se poderiam somar os sucessos de Anchors Aweigh (Paixão de Marinheiro, 1945) de George Sidney, Take Me Out to the Ball Game (A Bela Ditadora, 1949) de Busby Berkeley ou Cover Girl (Modelos, 1944) de Charles Vidor, onde Donen teve um papel crucial na mais bela cena do filme em que Kelly dança com o seu próprio reflexo.
O primeiro projecto de ambos na realização foi de tal forma radical que On the Town é considerado um marco fundamental na história do musical. São inúmeros os historiadores que afirmam a existência de um tipo de musical antes e depois deste filme. No entanto, a atmosfera livre e criativa que transparece enfrentou as habituais pressões do sistema hollywoodesco, no qual o próprio Mayer (presidente da Metro) temia o logro deste projecto. Mas On the Town foi um autêntico sucesso de bilheteira e isto deve-se em muito às opções inovadoras do filme e que irão marcar profundamente o cinema de Donen. O primeiro e o mais evidente de todos é o recurso ao exterior, ao uso da própria cidade de Nova Iorque, algo de absolutamente novo no género, habitualmente encerrado em estúdios. O segundo é a continuidade entre a acção e os números musicais e de dança, porque ao contrário do que até então era feito, On the Town é extraordinariamente fluído.
Tanto Donen como Kelly afirmaram mais tarde que à época não estavam cientes da revolução que este filme operava, mas cabe ao próprio Kelly a afortunada expressão de film dance para caracterizar On the Town, o que logo o distingue das ademais produções à época.
Depois do imenso sucesso de On the Town, Donen lança-se em nome individual com o belíssimo Royal Wedding (Casamento Real, 1951), comprovando desde logo as inúmeras capacidades deste enquanto realizador. É certo que o filme retorna a um tom mais clássico do género, mas há dois aspectos cruciais que gostaria de salientar. O primeiro e o mais evidente de todos é a presença de Fred Astaire, aquele a quem Donen nas suas memórias descreve como o seu ídolo; em segundo lugar, destacar um dos mais belos momentos cinematográficos na obra de Donen, onde Astaire dança no tecto inflamado pelo amor. Independentemente da autoria da ideia, que tanto é reclamada por Astaire como por Arthur Lener, o facto é que sem a mestria de Donen este número não existiria.
Donen voltará ainda a trabalhar com Astaire, naquele que é hoje um clássico, mas que à época foi um total fracasso de bilheteira. Só anos mais tarde é que Funny Face (Cinderella em Paris, 1957) dará os seus frutos, graças ao relançamento do filme por parte da Paramount, no seguimento das críticas entusiásticas ao papel de Hepburn em My Fair Lady (Minha Linda Senhora, 1964) de George Cukor. Mas importa ainda nos determos mais um pouco sobre Funny Face, porque este, à semelhança de On The Town, também é um filme de exteriores. Tal como a cidade de Nova Iorque serviu para a execução de extraordinários travellings sobre os seus arranha-céus, a cidade Paris dará a sofisticação necessária que a dupla assim o exigia. Nenhum outro lugar poderia ser tão adequado à realização daquele sonho, como mais tarde Hepburn confessou, como o de contracenar com Astaire.
Funny Face é também ele um bom exemplo de algo muito característico nos musicais de Donen e que este levará para as suas comédias românticas, a presença do realismo. Enquanto Minnelli transporta a acção do quotidiano para a esfera do sonho, sendo Brigadoon (1954) o melhor exemplo disso, Donen sabe que o musical é por natureza irreal e portanto inscreve-o no real para o tornar mais palpável. A presença da cidade, a verosimilhança das situações, até um certo amargor que este ganha ao longo da obra e do qual It’s Always a Fair Weather (Dançando nas Nuvens,1955) é o mais nítido exemplo, são tudo mecanismos que transformam a natureza fantasiosa do género em ficção tangível. Não é por acaso que Singin’ in the Rain (Serenata à Chuva, 1952), naquela que é a segunda obra da dupla Donen-Kelly, além de musical, é também ele um film on films, onde a natureza concreta de um género refreia a natureza delirante do outro género.
A junção de dois géneros muito em voga à época pode explicar em parte o seu estrondoso sucesso, contudo o empenho que cada um depositou nesta obra é de tal forma visível que Singin’ in the Rain faz parte dessa rara constelação de filmes em absoluto estado de graça. Singin’ in the Rain não conta apenas um episódio da história do cinema (a transição do mudo para o sonoro); este é também um testemunho autobiográfico de cada um dos seus intervenientes e, talvez por isso, nenhum outro musical esteja tão próximo da vida como na cena em que Gene, Donald e Debbie cantam a famosa canção “Good Morning”. É através deste equilíbrio difícil que Donen sempre foi tecendo o seu filão, um estilo que desmonta o artifício e nos devolve por vezes algo que nem por isso é menos fantástico.
Basta recordar a cena em que Gene Kelly e Debbie Reynolds se encontram no estúdio e onde à medida que Kelly liga as máquinas para produzir o artifício, este gesto revela simultaneamente a natureza enganadora do género, transportando a cena para um lugar tensional difícil de descrever. Talvez Singin’in the Rain esteja algures situado numa zona de vigília, porque este filme tanto partilha da natureza onírica, onde o episódio de Cyd Charisse é o exemplo máximo (mais um episódio que alude à história do cinema, através do universo burlesco tão característico dos anos 20), como se manifesta na concretude da vida com Debbie, sobretudo na extraordinária cena final em que o pano do palco levanta e, por fim, corpo e voz se reúnem.
Mas se Singin’ in the Rain foi testemunho do entusiasmo sentido, o terceiro e último filme da dupla Donen-Kelly atesta o estado crispado da relação entre ambos. It’s Always a Fair Weather é também ele, em certa parte, um filme autobiográfico e se anteriormente o encantamento serviu de pulsão criadora, podemos concluir que com a mesma dose de ódio estes espíritos são capazes de feitos extraordinários. Nenhum outro filme de Donen contém tamanha vitalidade e energia, sendo a magnifíca cena de Charisse em “Baby You Knock Me Out” o culminar mais frenético de todo o seu cinema. Saímos derreados de It’s Always a Fair Weather, quer pela sua intensidade, quer pelo próprio retrato devastador que este revela sobre o futuro. A cadência do filme é consequência da premonição da cadência social; uma sociedade devorada pela actualidade e pela permanente sensação do presente que os media iriam imprimir sobre o quotidiano.
Este é talvez o primeiro adeus consciente e definitivo ao musical, um género que pouco anos mais tarde revelava os últimos clarões do seu esplendor. Donen e Cukor no mesmo ano lançam The Pajama Game (Negócios de Pijamas, 1957) e Les Girls (As Girls, 1957), respectivamente, e poucos anos mais tarde Minnelli encerra o género de forma sublime com o seu Bells are Ringing (A Menina dos Telefones, 1960). Para trás ficam obras como Seven Brides for Seven Brothers (Sete Noivas para Sete Irmãos, 1954), talvez o filme de Donen que mais escapa às categorias onde o tentámos arrumar e que nem mesmo por isso deixa de ser um dos exemplos mais fulgurantes de toda a sua carreira.
É certo que Donen mais tarde lamentou a impossibilidade de Seven Brides for Seven Brothers não ser filmado em locais reais e que o próprio filme acompanhasse a passagem das estações. Donen queria o florir da Primavera e a neve do Inverno, mas o produtor não consentiu que este projecto demora-se um ano a ser filmado. Se os cenários de Gibbons e McCleary fazem do projecto original de Donen um objecto ainda mais irreal, não é por isso menos encantatório este filme. Relembro apenas a cena dos setes irmãos na canção “Lonesome Polecat”, que enquanto realizam as suas tarefas domésticas, aliam números de dança e musical, algo de absolutamente inovador e que comprova o quão interligadas estavam estas duas dimensões no cinema de Donen. Também este filme faz parte dessa rara constelação, e que pelo seu irrealismo penso na semelhante proeza de Minnelli em The Band Wagon (A Roda da Fortuna, 1953), que um ano antes junto a umas escadas num parque também ele tão irreal quanto a neve e as montanhas de Seven Brides for Seven Brothers, prodigalizava aquela que é, na minha opinião, a mais bela cena de toda a história do cinema entre Charisse e Astaire.
Indiscreet (Indiscreto, 1958) marca de certa forma a viragem de Donen para o segundo género pelo qual este é conhecido, a comédia romântica. Se no período musical os rostos masculinos que dão forma ao cinema de Donen são Kelly e Astaire, na comédia romântica pensamos inevitavelmente em Cary Grant. São três as obras em que Grant participa, além de Indiscreet, contamos ainda como The Grass is Greener (Ele, Ela e o Marido, 1960) e Charade (Charada, 1963), três exemplos que assentam como nem uma luva à imagem de sedutor sem idade e de homem sofisticado que Grant sempre quis. No entanto, há um outro aspecto crucial na presença de Grant, a alusão ao universo hitchcockiano. São diversas as revisitações, desde Notorious (1946), a Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958), passando por To Catch a Tief (Ladrão de Casaca, 1955) e claro, North by Northwest (O Homem que Sabia de Mais, 1956), sem que no entanto este seja discípulo ou faça do universo de Hitchcock um mero pastiche.
Contudo, se estas comédias indevidamente caíram em esquecimento, não se deve ao trabalho de Donen e à elegância de Cary, mas ao texto que à época era já um requentado da comédia de bons costumes tão popular na década de 30 e da qual Grant era já mestre [basta pensar em The Philadelphia Story (Casamento Escandaloso, 1940), de George Cukor]. O melhor filme de Donen deste período é, no entanto, sem Grant e sem Hitchcock no horizonte, Arabasque (Arabesco, 1966), filme em que Gregory Peck ocupa o lugar Grant e ao lado de Sophie Loren são a dupla responsável pelo enorme sucesso de bilheteira (sucesso a que Donen foi indiferente, porque este confessou que “desejava nunca o ter feito”).
Mas o cinema de Donen não é somente reconhecível através dos rostos masculinos, há um rosto feminino emblemático. Refiro-me, é claro, a Audrey Hepburn, e penso sobretudo no papel desta em Two For the Road (Caminho Para Dois, 1967), filme que assenta como nem uma luva à actriz, porque Hepburn simbolizava a sofisticação e a inteligência, características que no sistema americano estavam reservadas unicamente às mulheres de estirpe europeia. Mas o filme vai em muito além do seu elenco e sofisticação, porque a espantosa ruptura para com o cânone clássico da narrativa linear, leva Donen a optar por um sistema disruptivo através do qual os acontecimentos vão surgindo de modo anacrónico e se conjugando de forma quase proustiana. À época este filme foi comparado a Hiroshima Mon Amour (Hiroshima, Meu Amor, 1959) de Alain Resnais, o que não é de todo descabido porque a Resnais era central a concepção de tempo de Bergson e Proust.
Donen irá filmar até 1999, mas as obras que do final da década de 60 até Love Letters (1999) pouco há a recordar. Talvez reste apenas assinalar que por entre o olvidável Blame it on Rio (Romance no Rio, 1984) e o infelizmente inesquecível Saturn 3 (Saturno Três, o Robot Assasino, 1980), houve um curioso filme que entra para a história do cinema como um dos primeiros a abordar abertamente o tema da homossexualidade. Contudo, Staircase (1969), quer pela sua excessiva estereotipização, quer pela decepção que este projecto representou para Donen, é caso para dizer que de boas intenções está o cinema cheio.
Espaço ainda para recordar, e porque este é um texto celebratório sobre um extraordinário cineasta que não deve ter como último parágrafo um remate um tanto depreciativo, deixo alguns dos momentos mais brilhantes do cinema de Donen. É certamente assim que eu o recordarei e espero fazer todos vós assim o recordarem.