Caro Mekas, quero escrever-te, mas não sei como, o que dizer e, acima de tudo, qual o tom certo. E mesmo qual o tempo verbal mais justo, porque tu nunca usaste pretéritos. Se o teu cinema é alguma coisa que se possa definir, “encaixar” ou classificar, a palavra “agora” vem-me ao espírito vezes sem conta. Mostraste “lampejos” da vida, abriste o teu mundo ao nosso, mas sem um pingo de saudosismo. O teu passado foi sempre como uma perpétua renovação de uma série de agoras. O teu cinema do eu desenrolou-se sempre no tempo do agora, imerso no fluxo da vida. Num cartão da tua obra-prima maior, Walden (1969), deixas a sugestão, que diz qualquer coisa como: “procurar coisas onde não haja nada”.

Neste encontro com o nada que é a vida, a vida de todos os dias, produziste um olhar sobre o tempo, um tempo que passa rápido de mais. Tão rápido que por vezes deixamos escapar os prazeres mais essenciais, aqueles que nos ligam ao mundo. Lembro-me bem quando foste ao poço da terra onde nasceste, na Lituânia, e disseste que era a água mais saborosa do mundo, mais saborosa que os vinhos mais caros. Foi em Reminiscences of a Journey to Lithuania (1972). Com o teu cinema aconteceu-me, por mais do que uma vez, ter a sensação de estares a sorver o néctar da vida. Essa profusão de imagens da tua vida, do teu mundo, teve sempre em mim o efeito de um embalo. Essa musicalidade estava no sangue da tua montagem, no como ela fluía e fazia de pequenos flashes quotidianos uma espécie de mundo uterino para onde regressávamos. Neste cinema do útero davas uma grande lição: é bom estar vivo, dançar, cantar, beber água como vinho, vinho como água… ver os pássaros a voar, cheirar as flores do jardim, conversar com os amigos, ver (e ouvir) a chuva, rir e andar descalço. Tudo assim, mas não necessariamente nesta ordem. A tua ordem é a do acaso.
Em inglês, há aquela expressão: feeling. Não no sentido “sentimental”, mas no sentido sensitivo, sensual, táctil. E o teu cinema era o mais feeling de todos. Parecia que esse tempo do agora ganhava uma textura, uma palpabilidade, um “sabor na língua” qualquer. Ao som de um acordeão ou da tua voz, sempre à beira da pequena gargalhada de quem se ri perante a evidência da nossa mortalidade (da nossa vanitas), ouvíamos-te dizer que o que víamos era só o que víamos: a vida a ser desenrolada, ao sabor do tempo, do tal tempo do agora (montas os teus filmes consoante as bobines que guardavas te chegavam às mãos, seguindo a ordem do acaso). Tudo isto devia ser suficiente para o, chamemos-lhe assim, “espectador médio”. Mas… porque é que não é?

Quando descobri o teu cinema, eram exactamente estas as imagens de que precisava. Eu não sabia que precisava delas, das suas cores e do seu grão. Não sabia que precisava de um cinema que me reconciliasse com a vida e com essa muito intraduzível respiração do mundo que nos faz gostar de estarmos vivos. E nesse sentido a minha gratidão é infinita. Se houve momentos em que o cinema foi terapêutico e “salvou a minha vida”, este foi um deles. E ele tem um nome: Jonas Mekas. Depois do meu encontro contigo, com o teu cinema que és tu e que é todos nós, muitos outros se seguiram. Não só com as imagens, mas também com os textos que escreveste e disseste. Tu foste o pai do New American Cinema, do underground americano. O termo underground é estranho se pensarmos no quão soalheiro o teu cinema consegue ser – mesmo em dias de chuva. Nenhum cinema está mais à superfície da Terra que o teu.
Em 1954 fundaste com o teu irmão, Adolfas Mekas, a revista Film Culture. Esta serviria de laboratório de ideias para a acção política e artística que iria culminar com a criação da Film-Makers Cooperative e a Filmmakers Cinemathequete em 1964, que se iria transformar mais tarde na conhecida e ainda hoje muito activa Anthology Film Archives. O grupo de teóricos e realizadores documentais ou experimentais que se reúne em torno destes projectos ganharia um nome: New American Cinema. Farão parte do movimento realizadores como Andy Warhol, Allen Ginsberg, Robert Frank, John Cassavetes, Lionel Rogosin, Shirley Clarke ou Stan Brakhage. Que família!
Nas páginas da Film Culture, para além de realizadores, surgirão importantes teóricos e críticos do cinema experimental mas também do cinema clássico, como P. Adams Sitney, Annette Michelson e Andrew Sarris. Também nas suas páginas se traduziram muitos textos dos Cahiers du cinéma, sobretudo (e mais notavelmente) de André Bazin. Apadrinhaste um movimento, fizeste cinema e deste-o a ver. Formaste tantos olhares que não espanta que sejas, para muitos, “o padrinho do cinema underground“. Para muitos outros, és mais que um padrinho. Há quem te considere um santo dos nossos dias.

Sempre “lost, lost, lost”, viveste, filmaste o que viste e viveste. Mas também escreveste poesia e deste aulas. E deste aulas como quem escreve poesia. Lembro-me da tua masterclass na Culturgest, aquando do Doclisboa em 2009. Entraste e disseste que apenas tinhas uma coisa a ensinar: “go out and shoot!” A mensagem era simples. Mas para mim o teu cinema dizia-me qualquer coisa ainda mais importante: “go out and live!” Foi esse o embalo que o teu cinema me foi dando, a mim na minha vida, no meu cinema à Mekas que não registei com câmara alguma, mas que registei com os meus olhos e com as minhas mãos. Sim, é isso: “go out and shoot!”, mesmo sem câmara!
Vi-te pela última vez reflectido num vidro de uma janela. Naquele momento, perto do final das mais de oito horas de Empire (1964), em que te vemos a ti e a Andy Warhol a debruçarem-se sobre a câmara enquanto substituem a bobine. Quem esteve na Cinemateca Portuguesa, assistindo a parte ou na totalidade ao mais famoso filme do New American Cinema, poderá relatar a sensação de espanto que essa “cena” representa dentro da experiência, da extraordinária experiência, que é o filme. Depois de longas horas em que os únicos “sinais” no ecrã se resumiam a duas luzes na escuridão, quase saltei da cadeira, em êxtase, face à presença humana que se acendia ali, naquele instante, no grande ecrã. Empire foi co-realizado por ti, embora muita gente atribua a paternidade do filme unicamente a Warhol. Tu sempre foste esta figura subtil que em primeiro ou em segundo planos marcou presença, de modo decisivo, na história do cinema experimental do pós-guerra. Todo ele me parece ser uma grande dedicatória a ti e à tua visão do mundo. A ti e à tua visão do mundo, faço um brinde, aqui e agora, com a água do poço da tua infância. A água e a infância que tu partilhaste connosco, que tu também tornaste nossa.