Uma das características mais interessantes das primeiras cenas dos filmes de Asghar Farhadi é a habilidade que têm de sintetizar o ponto fulcral, o assunto, enfim, aquilo que caracterizará resumidamente cada um deles. Jodaeiye Nader az Simin (Uma Separação, 2011) começava com um plano subjectivo de um juiz num tribunal de família e menores a olhar para o casal protagonista, à medida que os membros deste lhe apresentavam as razões para o divórcio. O cineasta explicitava assim que abordaria o afastamento de duas pessoas, e que o exercício de julgar racionalmente o conjunto de comportamentos destas e doutras personagens caberia totalmente à audiência. De igual modo, em Forushande (O Vendedor, 2016), a segunda cena apresentava a evacuação forçada de um prédio à medida que este era demolido na calada da noite, uma metáfora fria que antecipava a perturbação da estabilidade doméstica pela chegada inesperada de um intruso (o qual, recorde-se, era o agressor que atacava o elemento feminino de um casal). Ora, a primeira cena de Todos lo saben (Todos Sabem, 2018) decorre no interior da torre de uma igreja, com as várias partes que caracterizam o mecanismo de um relógio a serem pormenorizadamente filmadas. Com ela, Farhadi introduz de imediato o tema primordial do filme inteiro: o tempo.
O tempo com as várias mutações e riscos que alberga. O tempo que passou desde que Paco (Javier Bardem) e Laura (Penelope Cruz) foram amantes na adolescência, levando-os por caminhos díspares sem rancores e nostalgias (perdão e esquecimento); o tempo em contra-relógio para recuperar a filha de Laura, após esta ter sido raptada no casamento donde parte a intriga (destruição); o tempo que, como diz Paco enquanto espreme cachos de uvas para deles obter o mosto, permite a criação do carácter e da personalidade vinária (depuração); o tempo que, por mais que adiada, traz a verdade ao de cima (revelação)… mas também é o tempo que permite levantar, se não mesmo resolver, questões de propriedade (se o dono de um terreno é quem o herdou ou aquele que durante mais anos cuidou dele) e familiares (se um pai é definido pelo sangue ou pelo tempo despendido no acompanhamento do crescimento de uma criança) que percorrem o filme. É pela forma como as personagens encaram o tempo que vai até ao resgate que Todos lo saben constrói a sua dinâmica de grupo, seja pelo desespero materno na personagem de Laura, pela fé do seu actual marido, Alejandro (Ricardo Darín), ou pela afoiteza de Paco. E qual é a prioridade de todas elas? “Ganhar tempo.”
Referimos a dinâmica de grupo, mas é aqui que o filme encontra as suas debilidades. Se é verdade que está presente (como em quase todo o Farhadi) a discórdia, o medo e a suspeita entre várias personagens, em Todos lo saben o cineasta parece mais centrado na mecânica do thriller. Quase todos os seus filmes são influenciados pelo género policial, pela procura da verdade em torno de um incidente trágico [o desaparecimento de uma jovem em Darbareye Elly (About Elly, 2009), uma tentativa de suicídio em Le passé (O Passado, 2013)…] que mais não é que um mero pretexto, um MacGuffin, para um estudo anatómico do comportamento humano sob as várias perspectivas morais que caracterizam um conjunto de pessoas num cenário “panela de pressão”. Aqui, ao invés, o incidente parece sempre ocupar o primeiro plano (a sensação de contagem decrescente não ajuda), as personagens poderão entrar em conflitos, mas o que importa é que superem essas advertências para poderem prosseguir na recuperação da rapariga.
Esta é uma versão simplificada, previsível, mais comercial e menos ambígua do magnífico About Elly.
É principalmente notório este lado esquemático no súbito desinteresse que Laura passa a ter para a narrativa. Se no primeiro acto temos grande parte do seu ponto de vista, após o rapto da filha é praticamente minorada ao choro, aos gritos (quase um lembrete desnecessário que a rapariga está por ser encontrada) e para fornecer a reviravolta um tanto telenovelesca associada ao título. E na redução da densidade psicológica desta e doutras personagens, Farhadi aproxima-as da unidimensionalidade (algo verdadeiramente estranho de se acusar na obra do cineasta), um acumular de lugares-comuns que, por mais funcionalidades práticas ou lógicas que acarretem, tornam o filme cinematograficamente redundante. É, em suma, uma versão simplificada, previsível, mais comercial e menos ambígua do magnífico Darbareye Elly, com o qual partilha narrativamente o desaparecimento de uma personagem, a entrada tardia de outra intimamente ligada a ela, e um longo primeiro acto expositor de comportamentos comunais que criam uma ilusão de conforto no espectador a ser desafiada.
Apesar de tudo, visualmente, Todos lo saben não deixa de salientar o estilo de Farhadi, com um blocking enérgico na forma como as personagens percorrem as divisões de uma casa, trocando olhares por portas abertas e janelas em diversos enquadramentos dentro de enquadramentos, transmitindo uma sensação de distanciamento físico e/ou emocional; a tensão psicológica que percorre o cenário imageticamente coadjuvada pela agitação da câmara manual; ou os planos gerais exteriores com as personagens principais numa escala pequena e sem diálogo audível, com a câmara a assumir o lugar de um transeunte, dando a noção de como as tragédias, sejam individuais ou colectivas, passam despercebidas no quotidiano a olhares passageiros.
Finalmente, este é o filme do cineasta onde a fé, Deus e a religião têm maior destaque, aparecendo sob diferentes formas. Para além da já referida primeira cena decorrer numa igreja e de Alejandro ser um homem piamente crente, há o god’s eye view do drone que parece invocar uma entidade omnisciente ou até a última cena, com uma grande cruz de pedra no meio de uma praça a ser lavada por um jacto de água de grande pressão. Pegamos neste último ponto para dizer que é no desenrolar deste acto que surge o derradeiro plano, com a ilusão da queda desta água sobre outro casal relevante na obra, prestes a partilhar uma nova revelação. É o plano mais interessante dada a insistência do cineasta para que a água e o par sejam apanhados juntos e levados em sintonia ao fade to white, a sugerir que esta conversa terá para eles a mesma violência purificadora que esse jacto de água, removendo-lhes as ilusões criadas sobre a filha. Uma história fecha-se, outra abre-se, é levantada a questão: acabará em castigo ou indulgência, em contendas ou redenção? O tempo o dirá.