Na primeira cena de Who’s That Knocking at My Door? (Quem Bate
à Minha Porta?, 1968), a primeira longa-metragem de Martin Scorsese, sob o olhar de uma madonna, uma senhora amassa o pão, que servirá a um grupo de crianças, num contexto familiar. A senhora é Catherine Scorsese, mãe do cineasta, e se é abusivo dizer que é um plano síntese, esta entrada na obra do italo-americano sugere vários elementos que serão explorados de forma persistente e intencional ao longo da sua filmografia.
Who’s That Knocking at My Door? passou por várias fases de produção, durante mais de três anos, após Scorsese acabar a universidade, o que é notório na liberdade de estilos que apresenta, no tom jazzístico e no preto e branco, na grande diversidade na escala de planos com prevalência dos close-ups de rostos, aproximável ao que Cassavetes estava a fazer nesta altura, com Shadows (Sombras, 1959) e Faces (Rostos, 1968), ele que se tornou num tutor, uma espécie de irmão mais velho do jovem Scorsese. Filme construído na montagem, que surge bem vincada e estabelece o encontro com Thelma Schoonmaker (que Scorsese conheceu através do marido, o cineasta Michael Powell) e que irá voltar ao Cinema dele em Raging Bull (Touro Enraivecido, 1980) para não mais sair; uma estrutura muito livre, então, como uma jam session, claramente influenciada pelas novas vagas que chegavam da Europa e também vingavam na América, em que, por vezes, os personagens se movem freneticamente dentro do plano e as imagens e as figuras resultam quase indefinidas.
A narrativa é bastante omissa – JR (Harvey Keitel) e uns amigos partilham negócios obscuros e que se supõe ilegais, divididos entre Little Italy e Chinatown, entre copos em pequenos bares familiares –, cortada por um longo flashback, mostrado aos pedaços, que atravessa todo o filme, no estudo da relação de JR com uma rapariga, interpretada por Zina Bethune. Diálogos intermináveis, circulares, muitas deles em carros, que permitem que os personagens se agridam, que se tornarão numa marca de Scorsese, são já aflorados na primeira longa; em algumas das cenas, com os três amigos nos bares, por entre copos, enuncia-se o improviso dos actores, numa permanente digressão, antecipando Husbands (Maridos, 1970) que Cassavetes faria dois anos depois. Tal como em Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973), Keitel divide a atenção entre a rapariga e as conexões com o seu gang, com um vaivém que alimenta a narrativa e a problematiza. A ideia de que estamos perante um ensaio para Mean Streets é manifesta quando é sugerido o dispositivo da dívida dentro do gang de JR, disposta aqui de forma fugaz, e que no filme que estreará cinco anos depois constituirá o centro da narrativa, com a entrada em cena do insolente Johnny Boy (De Niro), relegando a relação com a namorada, Theresa, para um plano inferior, mas mantendo-se o tema da mácula na rapariga, aqui uma doença, a epilepsia.
Sente-se em Keitel uma espécie de possessão, com as pequenas cenas apresentadas como um cerimonial performativo, um elogio ao vício, ao corpóreo.
O boy meets girl acontece à sombra de The Searchers (A Desaparecida, 1956) de Ford, da figura de John Wayne numa revista francesa, que servirá tanto para Scorsese assumir a sua filiação no cinema clássico, como para construir o seu protagonista, um reaccionário, na sua relação com as mulheres, frequentador de prostitutas, mas que valoriza a virgindade da namorada. O Cinema, as sessões, são um esconderijo da realidade, algo que se prolongará noutros filmes do cineasta, e que serve de ligação entre os vários personagens e de pontuação da narrativa, com diálogos motivados pelo Cinema, pelo trabalho dos actores, para chegar aos temas pretendidos: falam de Jeffrey Hunter, pelo papel em The Searchers, mas JR refere entusiasmado que ele interpretou Cristo noutro filme – King of Kings (Rei dos Reis, 1961) de Nicholas Ray. “Todos os problemas se resolvem se gostarmos de westerns”, afirma JR: há um vaivém no discorrer das referências, uma procura da transmissão de memória associado à história do Cinema (que todo o percurso de Scorsese intensificou), com a construção de personagens, em especial de JR, e de preparação para os passos seguintes da narrativa. JR e a namorada à saída do cinema depois te terem assistido a Rio Bravo (1959) de Howard Hawks: Zina Bethune diz que gostou de Angie Dickinson, ao que Keitel responde que o personagem dela “é uma galdéria, pois há as raparigas e há as galdérias; (…) uma galdéria não é uma virgem, brinca-se com ela mas não se casa com ela”. Scorsese referencia para nos indicar os seus modelos, um manual de onde iria retirar muitas das suas personagens: nas conversas com a rapariga, JR afirma que Lee Marvin, exemplificando com The Man Who Shot Liberty Valance (O Homem Que Matou Liberty Valance, 1962) de John Ford (mais uma vez) é um vilão a sério, “não interpreta apenas o rufia, faz tudo – veste-se de preto, rosna, destrói coisas, agride, morde (…) se pegar numa bebida tem de parecer que a vai esmagar”.
Keitel e outro dos membros do grupo vão passar uns dias a Copake, no estado de Nova Iorque, o que para eles se revela uma excentricidade, um pequeno interlúdio, como ir para o campo, pois parece que nunca saíram da cidade; o completo desinteresse deles pela natureza, por espaços que desconhecem, que culmina com a subida interminável de um bosque, é evidente, completando a construção dos personagens, o seu conservadorismo, atracado aos bairros, confinado às ruas de Little Italy, uma extrema dificuldade em lidar com outros mundos, que se revelará crucial na relação de JR com a rapariga.
A rua está muito presente, o que fica explicito na segunda cena, com o salto da dimensão familiar para o Cinema: vários combates e disputas entre rapazes (rock n’ roll em fundo, já lá vamos), nos passeios, na rua, com a câmara muito móvel, como um musical, numa vénia a Minnelli, outra das grandes referências de Scorsese. A autenticidade do lugar, dos edifícios, surge como uma preocupação evidente do italo-americano: na cena em que JR leva a rapariga a casa dos pais, os espaços, pontuados pela presença de ícones religiosos, lembram uma cena de Raging Bull, com De Niro e Cathy Moriarty, onde a casa, a compartimentação, os vários espaços, parecem idênticos. Ainda nesta cena, JR e a rapariga namoriscam, e é ele quem resiste a consumar o sexo, para que a rapariga chegue virgem ao casamento, corporizando John Wayne, ele justifica-se: “chama-lhe o que quiseres, antiquado”, numa cena mediada por vários espelhos, induzindo as tonalidades do personagem JR, dividido entre o vício e o tradicionalismo, que Scorsese reforça quando JR a corrige no uso dos símbolos cristãos, como quando ela coloca uma vela sagrada na mesa.
São cerca de cinco minutos que terminam com Keitel a lançar um baralho de cartas sobre o corpo de uma mulher: The End dos Doors em fundo, Keitel salta entre parceiras, as suas galdérias, com uma montagem delirante, que alterna planos abertos com close-ups de partes dos corpos, sente-se em Keitel uma espécie de possessão, com as pequenas cenas apresentadas como um cerimonial performativo, um elogio ao vício, ao corpóreo. Este uso libidinoso do corpo, será em parte prolongado em Mean Streets, mas irá perder o fulgor ao longo da obra do italo-americano, presume-se que vencido pelo pudor.
O extenso flashbackculmina na cena em que Zina Bethune descreve a Keitel a noite em que foi violada por um amigo, dando corpo à preparação consumada nas cenas anteriores, com JR a transferir as culpas (católicas) para ela, a tal mácula que a impregnou. A rapariga conta-lhe, então, que se recorda da música que tocava no carro naquela noite, que serve vários propósitos: estabelecer o rock n’ roll como uma equivalência selvática da violação e introduzir a importância da tapeçaria sonora, composta aqui por exemplares de rock, rhythm and bluese doo wop, e que Scorsese replicará em toda a sua obra. Apesar da resistência dela, o amigo acabou por consumar a violação, numa cena quase tão performativa como as de sexo com as galdérias de Keitel, com o doo wopdos The Dubs em fundo. Ele diz que não acredita na história dela, se ele fosse outra pessoa… ele acreditaria. Ele atribui-lhe a culpa, pois ela deixou-se levar para aquela ruela, naquele carro.
O filme apresenta, então, Keitel ao Cinema, num teste do personagem para Mean Streets, ele que parecia o eleito para dar corpo ao Cinema de Scorsese. Nessa terceira longa, após Boxcar Bertha(1972), dá-se a disputa de protagonismo entre o católico Keitel e o punk De Niro e em Taxi Driver(1976) opera-se a troca, o Travis de De Niro contra o (secundário) Sport de Keitel, o chulo de Jodie Foster. Keitel ainda foi Judas em The Last Temptation of Christ (1988), mas só recuperou o protagonismo, quase 20 anos depois, com o LT de Bad Lieutenant (1992), quando Abel Ferrara, outro italo-americano, já mordia as canelas de Scorsese, antes do canto do cisne de Casino(1995). Há uma cena de Mean Streets que projecta esses 20 anos: Keitel dança com uma rapariga embalado pelos blues pungentes de Johnny Ace em Pledging My Love; em Bad Lieutenant, o mesmo tema, LT entre duas mulheres e o vício.
O epílogo enuncia o mandamento que atravessará grande parte da obra do italo-americano, na contextualização de mundos violentos necessitados de uma redenção católica. A confissão do protagonista, JR afetuoso com a namorada, a violação desta e Keitel com as galdérias: ritmado por Who’s That Knocking?dos Genies, Scorsese serve um caleidoscópio de fragmentos, com a câmara a percorrer as figuras bíblicas da igreja, com paragem em vários ícones de Cristo. Keitel confessa-se para a evitar os antros de pecado, beija um crucifixo e da sua boca solta-se o sangue. Enquanto nos lembramos de Keitel na igreja de Bad Lieutenant, ouvimos as primeiras linhas de Mean Streets: “Tu não te penitencias na igreja. Fazes isso nas ruas. Fazes isso em casa”.