Com o seu mais recente filme Christian Petzold continua a afirmar-se como um dos mais distintos autores do cinema europeu contemporâneo. Que o consiga fazer ao mesmo tempo que faz um contundente comentário político e social é admirável. Petzold atreve-se a filmar uma manifestação do impensável, uma Europa de novo em guerra, França novamente ocupada por forças fascistas e a perseguição a minorias como os judeus e os imigrantes. Infelizmente, talvez esta última parte não seja tão inimaginável, e é a partir desse conceito de uma distopia realista, adaptando Transit de Anna Seghers, publicado 1944 e sobre a ocupação nazi, que Petzold cria uma obra de âmbito perfurante. Não é que isso seja algo de novo em Petzold, cujos filmes anteriores revelavam dramas preocupados com um humanismo profundo e personagens em ofuscamento sentimental, mas se, pelo menos nos filmes anteriores como Barbara (Bárbara, 2012) e Phoenix (2014) tudo confluía para um grande gesto final – a decisão na praia no primeiro, a revelação através de uma canção no segundo -, aqui parece jogar-se num campo diferente, mais imediato, onde todos os pequenos gestos ganham particular ressonância emocional.

Os primeiros momentos são de estranheza e incerteza. Pensamos reconhecer a acção, parece algo do passado: uma cidade ocupada, o medo de estar a ser observado, perceber em quem se pode confiar, o perigo de ser apanhado por uma rusga militar a qualquer momento sem os papéis necessários. Por outro lado, o cenário é diferente do que estaríamos à espera: as roupas são contemporâneas, a ambulância que vemos passar ao longe é parecida à que podemos ver hoje nas ruas, tal como os carros e o equipamento da polícia. O filme começa com um encontro entre dois jovens num café, que falam sobre um cerco a Paris e a obtenção de vistos. Um deles diz que vai partir de Marselha para a América, e que pode ajudar o outro, mais desconfiado e prático, se este entregar duas cartas a um hotel. Será o segundo, Georg (interpretado por um soberbo Franz Rogowski), que iremos acompanhar ao longo do filme nas suas tribulações.
Um dos temas centrais de Transit é a questão da identidade. Quem é Georg? Sem qualquer contexto, nunca sabemos realmente – é de notar que a principal alteração em relação ao livro é a mudança de narrador, de Georg para um observador externo, que aumenta o mistério em torno do nosso protagonista. Além de ser um sobrevivente pragmático, de rosto fechado e pouco expressivo, a soma dos seus sucessivos gestos revela alguém que quer parecer duro mas que acaba por tentar ajudar as pessoas à sua volta. Depois de uma viagem clandestina para Marselha, Georg chega à cidade portuária como um anónimo de passagem, sem identidade própria, quase como um fantasma que observa mas em quem ninguém repara (uma referência aos filmes anteriores de Petzold, da trilogia “Gespenster”). Georg acabará por envolver-se em duas linhas narrativas paralelas. Primeiro, visita a casa de um companheiro falecido para dar a triste notícia à sua família, e encontra uma criança e uma mãe na clandestinidade, desamparados. Depois, é momentaneamente confundido com o destinatário das cartas, um escritor desaparecido, pela mulher que espera pela chegada dele, e de seguida, pelas autoridades, que lhe concedem assim um visto para sair do país.
Petzold prepara-nos ao longo do filme para o dilema central do filme, muitas vezes repetindo planos que ganham diferentes significados com novo contexto, sobre a escolha impossível entre liberdade e amor, com as diferentes nuances de uma questão complexa.
Quando visita de novo a criança, esta está doente, e Georg recorre então à ajuda de um médico alemão, que tal como ele, se encontra à espera para partir. Ambos percebem que encontram-se em situações semelhantes: para partirem de viagem, para conseguirem escapar da guerra, só o conseguem se deixarem alguém para trás – Georg a criança, o médico uma mulher, Marie, essa mulher que o tinha tomado pelo escritor, que o assombra com pequenos clarões do que poderia ser uma outra vida, ela que recusa-se a partir enquanto o seu marido não aparecer. Georg, até aí uma figura em branco, que observava a tragédia à sua volta sem se envolver, acaba então por tentar ser o que desejam que ele seja: uma figura parental para a tal criança órfã, um amigo confidente para o médico, o escritor para as autoridades, alguém que pode ajudar a arranjar um bilhete de partida para a tal mulher. Georg, que se quer solitário e desligado, acaba por apaixonar-se. Porém, há uma única coisa que não consegue ser – o homem por quem espera Marie.
Ainda no início do filme, quando Georg visita o consulado para devolver as cartas e acaba por ser confundido com o escritor, há uma troca de palavras premonitória. O cônsul pergunta a Georg: “quem esquece mais rápido, aquele que é deixado ou o que abandona?” É uma questão repetida mais tarde, por Marie a Georg, acrescentando esta sobre os que são deixados: “eles têm as canções mais doces e tristes. A compaixão fica com eles. Aos que partem, com esses ninguém fica. Esses não têm canções”. Petzold prepara-nos ao longo do filme para o dilema central do filme, muitas vezes repetindo planos que ganham diferentes significados com novo contexto, sobre a escolha impossível entre liberdade e amor, com as diferentes nuances de uma questão complexa. Sem moralismos, sem julgamentos, o filme mostra o lado de quem abandona e de quem é abandonado. É uma ideia central no legado dos filmes anteriores de Petzold: em Barbara (2012), a protagonista prepara uma fuga do exílio, mas vê-se perante a decisão de ceder o seu lugar a alguém necessitado e abandonar a ideia de regresso ao seu amado. Em Phoenix (2014), uma mulher que foi perseguida pelos nazis regressa depois da guerra com uma nova identidade, para ser confrontada com a descoberta da traição do marido, que a abandonou.
É importante notar sobre a adaptação de uma história que decorre em 1944 aos tempos modernos, além da comparação com o desespero dos refugiados e da imigração, que não faltam alguns sinais anacrónicos na ausência de tecnologia como telemóveis ou computadores, e que, numa imensa burocracia, até as velhas máquinas de escrever ganham importância. Se para o espectador é assim difícil situar a acção, esta espécie de desorientação e indefinição temporal ajuda a fortalecer o sentimento de desamparo e deslocamento das personagens, que muitas vezes nem sabem que dia é. Será um dos traços dos tempos vividos no filme: se Sartre escreveu que o inferno são os outros, o julgamento do olhar dos outros, isso aqui dissipa-se para dar lugar a uma espécie de purgatório que eterniza-se, onde os dias repetem-se e onde a passagem do tempo que erode a esperança de salvação é o problema.
Uma sequência sensivelmente a meio do filme reforça essa ideia: uma rusga num hotel acaba com uma mãe a ser separada da sua filha, enquanto Georg e os outros hóspedes observam sem protestar – uma breve troca de olhares, e depois um desviar, dizem muito sobre o que sentem: mais do que o medo, é a vergonha de aceitarem aquilo como normal e de escaparem ilesos desta vez, pelo menos por mais um dia. A certa altura, Georg regressa a um café onde encontrou refúgio para esperar sentado, ainda assombrado pela presença fantasmagórica da mulher por quem se apaixonou. Resta-lhe o tempo, que mesmo que nefasto, afinal é a única coisa que ainda tem.