“Uma noite, voltei ao meu quarto e encontrei umas malas que não eram minhas, mas que tinham uma etiqueta que dizia ‘Rocha’. Fiquei assustado com esta invasão e, de repente, a porta abriu-se e apareceu o Glauber”. O relato é de Paulo Rocha e este episódio passou-se em Acapulco, durante a edição do festival de cinema de 1965. Paulo e Glauber tinham-se conhecido no ano anterior, em Cannes, mas os dez dias que passaram juntos no México seriam marcantes para o jovem cineasta portuense.
“Ele não tinha um tostão e, não sei como, arranjou um lugar numa avioneta e um convite oficial para participar no festival de Acapulco. Tinham-no metido no meu quarto por causa de uma confusão de nomes. Ainda bem que havia duas camas…” “Estava em plena elaboração do seu segundo grande filme, Terra em Transe, tinha a cabeça em ebulição. À noite, não conseguia dormir e não se calava, todo nu, contando-me cenas inteiras do filme, muito exaltado e fazendo grande gestos.”
“A vinda do Geraldo del Rey para fazer o papel de Adelino vinha da minha amizade com o Glauber Rocha, o chefe de fila do cinema novo brasileiro. Tínhamos muitas preocupações comuns, e volta e meia encontrávamo-nos, ora em Paris, ora em festivais. (…) Precisava de um actor com um físico muito especial, de pescador calejado, e ele insistia com o Geraldo, um baiano que ele tinha lançado no Deus e Diabo na Terra do Sol. Usando um teco-teco (um avião-táxi), o meu irmão Jorge foi desencantá-lo em pleno sertão, onde ele estava a filmar, e lá o convenceu a deixar tudo e vir à conquista da Europa. O Geraldo, mal chegou ao Furadouro e se vestiu de pescador, foi como um milagre. Como tinha algum sangue índio, a pele dele era um bocado bronzeada, e movia-se com uma milagrosa agilidade. Entendeu-se logo às mil maravilhas com os remos e as cordas.”
Antes de Mudar de Vida, Paulo Rocha pensara em rodar um filme na Bahia, aproveitando os contactos de Glauber e as condições de produção mais favoráveis do que as que tinha na Europa. Glauber seria o seu produtor: “Queria que o Cinema Novo brasileiro fosse fraterno, expansionista”.
Glauber Rocha chegaria a Portugal no dia 26 de Abril de 1974. Nos dias 28 e 29 esteve presente numa importante reunião que teve lugar no anterior Sindicato Nacional dos Profissionais de Cinema, onde apoiou o plano de acção da Comissão de Cineastas Anti-Fascistas.
Glauber Rocha foi o único estrangeiro convidado a colaborar no filme coletivo As Armas e o Povo (1975), um documentário assinado por um coletivo de “Trabalhadores da Atividade Cinematográfica”, que registrava os primeiros dias de liberdade de um povo a viver os primeiros dias de processo revolucionário.
Aproveitando a sua presença em Portugal, a Animatógrafo de Cunha Telles estreia no Estúdio, em Lisboa, o proibidíssimo Terra em Transe, sete anos após a sua estreia mundial.
Glauber voltaria a Portugal em Fevereiro de 1981, após uma viagem a Itália para apresentar A Idade da Terra em Veneza. Glauber não aceitou a má recepção crítica ao filme no Brasil e decidiu exilar-se em Portugal. Instalou-se em Sintra, cidade especial pela ligação ao universo metafísico de Eça de Queiroz.
Em Abril de 1981, a Cinemateca Portuguesa dedicou-lhe uma retrospectiva, a Kynoperszpektyva 81:
No dia 23 de Abril, durante a sua retrospectiva, um trágico incêndio que deflagrou na Cinemateca Portuguesa destruiu a principal sala de projecção, inaugurada no ano anterior, e as sete cópias em película dos filmes de Glauber que estavam a ser exibidos.
Mas o objetivo principal da escolha de Portugal para local de exílio terá sido o projecto da criação de uma produtora cinematográfica tricontinental de língua portuguesa, numa altura em que Portugal e Brasil assinavam o protocolo luso-brasileiro de cooperação cinematográfica, que foi assinado a 3 de Fevereiro de 1981, mas que só seria publicado em Portugal em 21 de abril seguinte (decreto regulamentar 48/81), e no Brasil apenas em 14 de junho de 1985 (decreto 91.332/85).
Muitos dos projectos envolveriam cineastas portugueses, com quem os laços de amizade entretanto se fortaleciam. Fernando Lopes foi um deles: “O Belarmino [1964] chegou a passar no festival de Pesaro clandestinamente. O primeiro festival de cinema novo… quando o Glauber Rocha ganhou o prémio com o Barravento [1962] e o prémio de crítica ficou para mim com o Belarmino. E aí ficamos muito amigos, tivemos imensas relações, eu e o Glauber, sobretudo em Paris, e depois aqui em Lisboa já na fase final dele, quando eu era diretor de co-produções, já muito depois do 25 de Abril, do serviço público de televisão. E aí tínhamos a ideia de fazer um filme, que se chamava Uma Cidade Qualquer, mas depois ele morreu e eu dei à mãe dele…”
A correspondência de Glauber com diversas pessoas no período em que viveu em Sintra refere muitos projectos com parceiros portugueses:
“Sintra, 26 de abril de 1981 / Querido Cacá [Diegues] / (…) Escrevo diante de uma panavisão sobre o Atlântico camoniano e sebastianista do alto de uma montanha antes habitada por [Lord] Byron numa linda casa onde viveu Ferreira de Castro (…) as coisas vão bem, estou feliz no meu feudo à beira-mar plantado vendo todos os dias naves partindo na construção do V Império de Sebastião Ressuscitado… vou fazer com a RAI aqui em coprodução com os portugueses o NASCIMENTO DOS DEUSES (…) é possível realizar o Ciro e Alexandre aqui, há muita cultura árabe castelos etc.(…) / PS – o cinema português está prometendo… sinto-me mais ou menos em casa, boa cama, boa mesa, bom clima, transromantismo…”
“Sintra, 16 de julho de 1981 / Caro Tom [Luddy, produtor americano] / Estou escrevendo um novo roteiro: O destino da humanidade. Vou acabar no dia 20 de agosto. Meu produtor francês, Claude-Antoine, quer fazer o filme aqui. Portugal é bonito e poderei ter dinheiro em Setembro do Instituto de Cinema Português. Embrafilme co-produz. Acho que posso fazer o filme em Outubro. Aqui, no Sul, tenho sol durante Novembro e Dezembro. Preciso de 2 milhões de dólares e acho que Toscan du Plantier está interessado. Se não for possível aqui irei para Paris. O cenário do filme é uma grande cidade. (…) / Estou bem – ok. Posso trabalhar. Portugal é o Paraíso… / (…) Agora é 17 de Julho. O Presidente do Instituto Português de Cinema, Sr. Sá da Bandeira, saiu! Crise com a secretaria de Cultura. Minha produção está parada… Mas eu escrevo roteiro. Talvez a crise esteja acabada em Setembro…”
Glauber Rocha adoeceria gravemente e seria hospitalizado a 3 de Agosto, no Hospital da CUF, como doente externo, com as despesas pagas pela Embaixada brasileira em Lisboa e por Jorge Amado, então de férias em Portugal. Ao fim de 18 dias de internamento, e perante a iminência da morte, João Ubaldo Ribeiro, Jorge Amado e funcionários da embaixada, com autorização dos médicos, decidiram levá-lo para o Rio de Janeiro. Glauber faleceria numa clínica em Botafogo, na madrugada de 22 de Agosto de 1981, aos 42 anos de idade, poucas horas após ter aterrado no aeroporto internacional carioca.