Importa nos determos sobre esta frase: “E quando se aguarda durante muito, muito tempo, também pode acontecer aquilo que só raramente acontece”. Transcrevo tal como Agustina Bessa-Luís assim o fez para este guião, a partir do conto A Portuguesa de Robert Musil, título do mais recente filme de Rita Azevedo Gomes. A citação que acabo de evocar pode em muito extrapolar o sentido que esta frase encontra no filme, porque é igualmente capaz de conter a chave tanto do fazer cinema em Portugal, como da própria obra da realizadora. Desde tempos imemoriais que debatemos as condições precárias em que o cinema e os cineastas neste país vivem, mas no entanto a realização por parte de Oliveira de uma obra além de Francisca (1984) ou onde José Álvaro Morais tenha conseguido filmar O Bobo (1987), mesmo passados dez anos, de certo modo tranquiliza a consciência de todos os agentes culturais porque, por portas travessas, as coisas vão continuando a ser feitas.
Não importa se sangramos uma geração, se tornamos permanentemente precária a condição de fazer cinema neste país, não importa sequer que se debata os financiamentos à produção ou os critérios das instituições responsáveis pela atribuição dos subsídios, porque a resiliência é tal que os filmes continuam a ser feitos e no momento em que algum ganha um prémio, há sempre vários que aparecem para colher os louros e saudar a saúde da pungente máquina de produção lusitana. Infelizmente a máquina é oleada a menos de um por cento. Mas isso pouco interessa pensar, não fosse o nosso orgulho pela nomeação contrastar tão profundamente com a nossa atitude perante o cinema português, assim como para com toda a nossa cultura no geral, que teríamos motivos para rejubilar com as elogiosas manifestações de procura e não perante o eterno escárnio ao qual a cultura se encontra eternamente exposta.
Mas quando nem mesmo a crítica é capaz de se debruçar para o cumprimento de duas elogiosas linhas, preferindo a tática tão em voga desde Oliveira do bota abaixo, é natural que uma obra como a de Rita Azevedo Gomes atraia poucas atenções e exista subjugada à efemeridade da exibição e da circunspeção dos espaços. E esta é a única relação que deve ser estabelecida entre ambos, porque o percurso de Rita Azevedo Gomes é suficientemente sólido e autónomo para que se sustente por si só.
Não há nada acessório em A Portuguesa, porque cada plano é a decantação de um momento que requereu ele mesmo tempo para se constituir.
Por norma só os idiotas tolhidos de vaidade se julgam originais, enquanto de câmara em riste apregoam ser homens sem referências. Pelo contrário, se Rita Azevedo Gomes povoou o seu horizonte com Oliveira, assim como Jean-Marie Straub e Danièle Huillet ou mesmo Werner Schroeter, é resultado da sua imensa cultura e não de uma façanha de “copista” ou “discípula” porque só a iliteracia visual que grassa em Portugal é incapaz de distinguir o apontamento do decalque. Como se não bastasse os doze anos que separam O Som da Terra a Tremer (1990) de Frágil Como o Mundo (2002), gap que revela a dificuldade de criar em Portugal, ainda existe o posterior vitupério de determinados agentes que condenam as obras logo à sua nascença.
Não é meu intento canonizar a obra de Rita Azevedo Gomes ou mesmo ignorar alguns aspectos menos positivos, mas posso asseverar que esta é indubitavelmente uma das mais importantes cineastas da nossa cinematografia. Se é certo que A Portuguesa não representa em pleno o lugar que a ela reservo, bastaria A Vingança de uma Mulher (2011) para assegurar a solidez das bases do pedestal por mim erigido. Contudo, é A Portuguesa de que agora falamos e portanto, é fundamental abandonar as ademais quezílias e ruído circundante para nos centrarmos sobre o filme.
O primeiro e mais importante aspecto deste título, assim como de toda a obra de Rita Azevedo Gomes, é a noção de contemporâneo. Tal como em Correspondências (2016), o texto é actualizado sobre o tempo em que é inscrito. As cartas entre Sophia e Sena não se prendem somente a um Portugal fascista, estas reflectem igualmente a presente circunstância vivida em Portugal durante a última crise financeira e seus constrangimentos. O mesmo acontece com o texto de Musil, este não é uma recriação estanque sem que possamos transportar para a actualidade o âmago das suas questões. “As questões de poder, de religião, as relações humanas, de homem-mulher”, como relembra a realizadora em entrevista ao Jornal I, são matéria permanente do mundo.
No entanto, a mesma actualidade do mundo coloca sobre os filmes de Rita Azevedo Gomes a capa do feminismo, aspecto a que ela se desmarca. É certo que a figura feminina no cinema de Rita Azevedo Gomes é central, mas fazer dessa figura o símbolo de algo, é extrapolar o próprio sentido do filme. Tal como em A Vingança de uma Mulher, a figura de Clara não pressupõe outro engajamento se não o filão de mulheres que desde Antígona reclamam um sentido de justiça e o inabalável escopo da perseverança. É na própria mulher que os tempos confluem, porque a presença de Ingrid Caven actualiza a matéria de Clara. Enquanto fantasma, a presença de Ingrid vagueia sobre os espaços não enquanto passado, mas como projecção futura e imemorial do ser feminino.
O próprio filme não se constitui através da banal oposição entre feminino e masculino, porque o tempo dissolve o antagonismo dos universos e os espaços à convergência das existências e à similitude das afecções. Se a guerra pertence aos homens, às mulheres cabe a guerra à solidão; se a paz conduz de novo os homens ao lar, às mulheres cabe a manutenção do lugar na esfera privada. Esta passagem entre domínios só é possível quando se dispõe do tempo necessário a essa plasticidade. Através da soberba fotografia de Acácio de Almeida, a existência de Clara é composta por quadros que confundem os anos. Se o tempo passa, esse só o compreendemos entre as breves estadias do marido e o crescimento das crianças e animais.
O tempo do cinema de Rita Azevedo Gomes é o tempo da sua história, ao contrário do tempo presente. Não há nada acessório em A Portuguesa, porque cada plano é a decantação de um momento que requereu ele mesmo tempo para se constituir. Relembramos Oliveira quando este afirmou que o “cinema nada tem a ver com distracção”, e é também esse o legado, a encontrar e inculcar, no cinema de Rita Azevedo Gomes.