Ninguém diria, há 10 ou 15 anos, que Nuri Bilge Ceylan, cineasta conhecido pela atmosfera, quietude e minimalismo dos seus filmes [tantas foram as comparações a Antonioni que se estabeleceram a propósito dos magníficos Uzak (Uzak – Longíquo, 2002) e Iklimer (Climas, 2006)] se tornaria num dos mais literários da actualidade, por vezes ao ponto da prolixidade. Foi o caso do anterior Kis Uykusu (Sono de Inverno, 2014) e é também o do mais recente Ahlat Agaci (A Pereira Brava, 2018), onde já não predominam os silêncios, a introspecção, a contemplação, nem a incomunicabilidade das personagens. Ao invés, o realizador vem cada vez mais a optar pela encenação de diversos e prolongados momentos de retórica que retomam os seus temas mais reconhecíveis: a solidão, a alienação, o contraste entre o trabalho físico e o intelectual, e uma certa crise existencial à procura de ser mitigada. O estilo de Ceylan foi-se movendo, paulatinamente, para terrenos diferentes dos quais se fez conhecido internacionalmente, sem com isso deixar de transparecer a mesma visão do mundo e das relações humanas. Mas mesmo que o seu lado antonioniano tenha desaparecido, tal não impede de o seu cinema ser, na nossa opinião, um dos que mais vale a pena continuar a acompanhar.

Dito isto, poder-se-á afirmar que este drama — sobre um recém-licenciado, Sinan (Dogu Demirkol), que regressa à sua aldeia natal para tentar encontrar financiamento para a publicação do seu primeiro livro, ao mesmo tempo que lida com a complexa relação com o pai, irresponsável e um tanto infantil, e as dívidas que este deixa em corridas de cavalos, — é o filme de Ceylan mais assente na palavra até aqui, assim como aquele que mais remete para uma genealogia literária. O argumento parece provir de uma tradição teatral, tematicamente edipiana, ao explorar a dinâmica familiar a partir dos conflitos intergeracionais entre pais e filhos. É o seu A Morte de um Caixeiro Viajante, o seu Jornada Para a Noite, mas também é o seu bildungsroman na forma como observa a maturação de uma personagem nova e o embate das suas aspirações e esperanças com a realidade desmotivante que o circunda. Isto é, o seu Retrato do Artista Quando Jovem. E, finalmente, pelo aglomerado de questões filosóficas, teológicas e éticas abordadas chega a assemelhar-se a qualquer coisa como um romance russo do século XIX ilustrado. Não admira, por isso, as mais de 3 horas auspiciosas que o filme acarreta.
“O que falta aos filmes modernos é a beleza – a beleza do vento a soprar nas árvores (…). Isso, eles esqueceram-se completamente.”, disse Griffith uma vez. Talvez o maior elogio que revele a importância do cinema de Ceylan na actualidade seja mesmo dizer que ele é um dos que ainda não se esqueceram do vento.
Na primeira cena, o protagonista passa por uma réplica do Cavalo de Tróia exposta em Çanakkale. Como Ulisses de retorno a Ítaca, Sinan regressa a casa após um longo período de ausência. Só que, ao contrário do protagonista d’A Odisseia, o rapaz turco abomina o sítio de onde partiu. O seu misantropismo e desapego à região ficam explícitos desde o começo (“Quem me dera largar uma bomba atómica neste sítio”) e não parecem apaziguar-se à medida que sofre sucessivas desilusões denunciadoras dos aspectos mais calculistas e hipócritas locais (a visita a um mercador de areia que só financia livros se isso lhe facilitar contratos com a câmara, por exemplo).
Mas Ceylan desafia a simpatia que devemos ter para com Sinan, algo que parece ficar mais explícito em dois momentos. No primeiro, o protagonista aborda um escritor aclamado numa livraria [é curioso observar como Sinan é colocado, no plano, ao lado de um cartaz com o rosto de Kafka, autor recordado pelas suas personagens alienadas e também pela turbulenta relação com o pai, o que veio a influenciar a sua obra literária (a figura paterna, saberemos no final, é fortemente criticada no livro do jovem turco)], tomando uma postura provocante e indelicada, revelando o seu ego enfatuado e arrogância juvenil, ao ponto de levar o veterano à exasperação. O segundo momento surge quando Sinan descobre que lhe foi roubado dinheiro no casaco pendurado em casa, o que origina uma discussão no espaço doméstico, insinuando que alguém do lar lho roubou. É um particular momento astuto de mise en scène de Ceylan, com a câmara a fazer um pequeno travelling que vai reunindo todos os membros da família no enquadramento até ficar estanque, à medida que estes saem das diferentes divisões da casa para se reunirem no corredor. Ceylan não insiste que sejam planos com a figura individual ou o rosto de Sinan a prevalecerem, o que permitiria a manutenção do ponto-de-vista do protagonista e do laço empático para com ele. Ao invés, limita-se a observá-los numa perspectiva objectiva, quase entomológica, a não tomar partido de nenhuma daquelas personagens naquela discussão, deixando o espectador questionar até que ponto não terá sido irresponsável e precipitada a acusação do filho.
E voltamos a referir a literatura russa (que Ceylan já disse em entrevistas que, mais do que os filmes, se trata da principal influência no seu trabalho cinematográfico, principalmente Tchekhov) para dizer que, como em alguma dela, o realizador explora a melancolia isolada e o questionamento existencial da sua personagem imperfeita, à medida que esta é levada ao auto-conhecimento e a uma melhor compreensão do seu lugar no mundo, terminando esta jornada espiritual pelo encontro com a fé. Ora, a fé é um dos temas que mais parece vir ao de cima no filme de Ceylan, particularmente numa discussão tida com dois imãs (um tradicionalista, outro reformista) enquanto passeiam pela região, onde a dada altura um deles diz: “Alguém disse que, se descobrisse que a verdade estava fora do Islão, ele preferiria escolher o Islão do que a verdade. O que prova o famoso argumento de que a fé é não querer saber da verdade.” A isto parece vir associado o uso, narrativamente engenhoso, da escavação do poço que o pai efectua aos fins-de-semana, apesar das pessoas da região o avisarem da impossibilidade da existência da água naquele sítio, algo que vem a ser verificado no final. O último plano é por isso dos mais bonitos que o cineasta já filmou, onde Ceylan mostra, subentendidamente, o respeito adiado à figura paterna num momento de realização pessoal pela fé. Ao “não querer saber da verdade” e escolher acreditar, Sinan está a rejeitar o ódio, o cinismo, o niilismo e, eventualmente, a hipótese de suicídio (apresentado no último dos vários apontamentos oníricos, que o filme expõe com a finalidade de fazer o espectador partilhar da subjectividade mental do protagonista) para encontrar o perdão, o amor, a serenidade e a transcendência.
E depois há o vento, sempre o vento em Ceylan, tão bem usado naquela belíssima cena impressionista que leva a um beijo, que ora sopra nas árvores, ora nos cabelos da rapariga de quem Sinan se despede para sempre, antes desta partir definitivamente para “a casa do matrimónio”. “O que falta aos filmes modernos é a beleza – a beleza do vento a soprar nas árvores, o pequeno movimento de um belo sopro nas flores delas. Isso, eles esqueceram-se completamente”, disse Griffith uma vez. Talvez o maior elogio que revele a importância do cinema de Ceylan na actualidade seja mesmo dizer que ele é um dos que ainda não se esqueceram do vento.