Filmar os povos indígenas (brasileiros ou de outras partes do mundo) envolve sempre um processo de intenções complexo que se relaciona com as questões da alteridade, do olhar possivelmente exoticizante, da perspectiva exterior da câmara, a possível perversão e apropriação do “lugar de fala” dos indígenas, do perigo da excessiva antropologização essencialista do rituais ou da redução daquelas pessoas a bandeiras de causas que lhe são estranhas ou a totens de uma certa ideia de ancestralidade new age (para não referir os casos de mera ignorância racista, quando os indígenas são representados apenas como povos primitivos e perigosos assassinos canibais).
Mas tudo isto são questões que se podem ter sobre o filme mas que informam (e enformam) principalmente a sua pre-produção e a sua produção. Isto é, são dilemas que os realizadores devem (ou deveriam) ter quando rodam os seus filmes em contacto com pequenas comunidade mais ou menos fechadas, na relação com as pessoas, com o metabolismo das suas tramas sociais e com a intimidade dos seus ritos. São, no entanto, também questões que pouco ajudam a ler os filmes em si e prendem-se, quase sempre, com uma avaliação moral sobre as motivações do olhar dos realizadores (que são mais do que válidas – para quem tenha autoridade para as fazer) mas que são incapazes de ultrapassar o nível de discussão das “boas” ou “más” intenções de um cineasta. E o filme? E o cinema? Esse é subentendido como um território plano de mediação, um básico sistema de captação e divulgação audiovisual cuja materialidade pouco importa a não ser nas questão da própria representação. Chuva É Cantoria Na Aldeia Dos Mortos (2018) de Renée Nader Messora e João Salaviza foi recebido no Brasil segundo este ponto de vista (entre as políticas de identidade, da representatividade e da antropologia visual) e na Europa (estreou no Festival de Cannes onde venceu o prémio do júri da secção Un Certain Regard) como uma porta de acesso a uma realidade tão mística quanto exótica.
Os primeiros minutos do filme de Nader Messora e Salaviza são particularmente importantes na forma como parecem expor esse “processo de intenções” de forma clara mas também simbólica: numa espécie de noite americana azulada conhecemos uma figura masculina por entre a vegetação, quase confundindo-se com ela, por vezes imperceptível, planos fixos, quase abstractos de tão escuros. Depois a câmara, ao ombro, inicia um movimento que segue o seu protagonista, só que o seu olhar desce e fixa-se nas costas dele. Nelas projectam-se os raios de lua filtrados pelo rendilhado das folhas e das árvores altas. As costas feitas tela, o corpo feito ecrã, o meio projectado no homem e o homem projectando-se no meio. Aqui aparece a simbiose improvável entre a vivência narrativa do povo Krahô e o olhar dos realizadores que encontram nesse modus vivendi um reflexo do próprio cinema. É que tudo são histórias, imagem e sons na tradição mitológica desta comunidade e como tal, tudo é (ou pode ser encarado como) cinema em potência. Mas a sequência prossegue num jogo de fora de campo e num efeito especial algures entre Apichatpong e Méliès.
Quem tiver visto Altas Cidades de Ossadas (2017) – curta realizada por João Salaviza e co-escrita com Renée Nader Messora – reconhecerá um mesmo olhar sobre a relação entre o indivíduo e a natureza sob o manto da noite. Na verdade pouco separa os canaviais da Pedreira dos Húngaros do mato do cerrado do Tocantins: os mesmos enquadramentos, a mesma luz, o mesmo breu quase impenetrável. E também a questão da língua se assemelha, entre o criolo do rapper Karlon e a língua timbira dos Krahô, somos introduzidos numa comunidade de difícil acessibilidade com as suas próprias regras e costumes.
O que procuro dizer é que filmar um bairro social português ou filmar uma aldeia indígena distante do interior centro do Brasil não é assim tão diferente (na abordagem e nas preocupações de ponto de vista) e que os realizadores apresentam em Chuva uma espécie de súmula do seu trabalho anterior, especialmente Salaviza – já Nader Messora estreia-se aqui como realizadora, depois de uma longa carreira como directora de fotografia e no trabalho da pedagogia pelo cinema, exactamente com o povo indígena dos Krahô – projecto esse que a levou a conhecer a aldeia e no qual ela e o seu companheiro desenvolveram exercícios de introdução ao cinema com as crianças e adolescentes da comunidade, algo muito semelhante à própria origem do projecto URB que deu origem à referida curta-metragem, também ela feita de uma recolha de histórias e personagens locais.
De facto o arco narrativo aqui é o mesmo de Arena (2009), Rafa (2012) e Montanha (2015), a saber, um jovem rapaz que está preso a uma casa (pela família, por uma pulseira electrónica ou por uma arara fantasmática) e acaba saindo desta para se defrontar com um “exterior” pelo qual vagueia desorientadamente. Podendo ou não regressar, mas acontecendo, esse regresso é já transmutado pela experiência da viagem – tanto no próprio, como no lugar, veja-se Russa (2018) que descreve esse retorno frustrado a um sítio, nesse caso o Bairro do Aleixo no Porto (outra comunidade apartada e outra co-realização, dessa feita com Ricardo Alves Jr., co-produtor desta nova longa).
Mas o olhar sobre estas comunidades e estas tramas simples de heróis masculinos é sempre um olhar crivado de cinefilia. E em Chuva isso não é excepção: ao início, nessa sequência pré-créditos, podíamos estar em I Walked with a Zombie (Zombie, 1943) de Jacques Tourneur; logo depois dos créditos a câmara enquadra as casas de telhado de colmo como se estivéssemos num dos filmes de época medieval de Kenji Mizoguchi – podíamos estar em Sanshô dayû (O Intendente Sansho, 1954) e o final cita directamente Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, 1953) – e a forma como os realizadores trabalham a luz muito quente e as cores muito vivas e contrastadas (extraordinária fotografia de Nader Messora) remetem para uma estética de estúdio e para sistemas de cor dos anos 1950.
E claro, o cinema de Jean Rouch é uma referência assumida (aliás, os realizadores mostraram filmes do cineasta francês às pessoas da aldeia) que se efectiva na forma como Chuva não se prende nem reduz na antropologia visual e trata os seus personagens como pessoas e não como espécimes raros que necessitam ser tratados com extremo cuidado e deferência, preservados na sua pureza. Nader Messora e Salaviza filmam pessoas e filmam as suas histórias e tradições – o metódo rouchiano da “antropologia partilhada”. Mas filmam também o mundo que as rodeia e com o qual necessariamente interagem. Um mundo que é contemporâneo e ocidentalizado. Daí que o protagonista tanto plante mandioca de catana em riste no meio do mato como visite a cidade mais próxima e jogue vídeo-jogos num café. Uma das sequências mais curiosas do filme (exactamente pela sua ironia, desmontando um pouco a aura mística que os povos indígenas sempre têm aos olhos ocidentais) corresponde à estadia na cidade do protagonista que está repleta de gags cómicos que se prendem com uma incompreensão mútua entre mundos, línguas, culturas e costumes. Para não falar do acesso a uma intimidade de casal (mas também familiar e comunitária) que são muito belas e tocantes.
Chuva existe sempre em tensão. Uma que tem que ver, paradoxalmente, com a sua extrema proximidade à comunidade e com a vontade de fazer um objecto cinematográfico que represente bem os Krahô e, ao mesmo tempo, represente bem o cinema. Os próprios realizadores admitem que tentaram evitar o “tratado antropológico” fazendo algumas cedências, nomeadamente no que respeita à fidelidade da tradução da língua indígena (porque tornaria inacessível o filme), mas que noutros momentos, na descrição dos rituais fúnebres, optaram por preservar a cronologia dos eventos, mesmo que a desfavor do ritmo narrativo. E exactamente por viver num limbo entre o desejo de cinema e o desejo de fidelidade na representação, Chuva acaba distendendo-se em sucessivos falsos finais que arrastam interminavelmente o filme. Mas é também essa tensão que fragiliza – finalmente! – a obra demasiado redonda de João Salaviza.