No mês passado Luís Mendonça tomou a contra-gosto a pílula do cinema de Yorgos Lanthimos, nas suas palavras cada vez mais vencido pelo grotesco, e do cómico afinal ainda demasiado sério, Vice (2018), de Adam McKay. João Araújo procura salvar If Beale Street Could Talk (Se Esta Rua Falasse, 2018) de Barry Jenkins da aniquilação feita por Ricardo Vieira Lisboa e Ricardo Gross rende-se ao último filme de Jia Zhangke.

Vamos lá escrever um “comprimido” fingindo que ainda há pachorra para este universo plastificado, de cinismo calculado ao milímetro, com assinatura Corpus Danone de Yorgos Lanthimos. O seu cinema foi engolido – este filme vem confirmar isto – pelo grotesco. The Favourite (A Favorita, 2018) é uma obra indecisa entre o drama histórico pomposo e a comédia de costumes desbragada e assumidamente (não?) de mau gosto. É uma espécie de “The Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance) [Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), 2014] visita Barry Lyndon (1974)”, mas em que a volúpia do olhar de Kubrick, atento aos gestos e sensível a uma temporalidade decadente, quase putrefacta, é suplantada por um exercício de câmara tão estiloso – as grandes angulares e a steadicam rebarbativas – quanto dramaticamente oco.
O que salta à vista? Um enjoo dramático consubstanciado por uma repetição exaustiva de ideias que procura esgotar o desenho de um triângulo amoroso. A relação entre a rainha Anne e as suas duas súbditas “favoritas” é percorrida pelo filme sem vertigem. Pior: sente-se na pulsação do filme, e nos trejeitos dos actores, a vontade de transformar tudo isto numa sátira que põe a História a sorrir com escárnio de si mesma. Apanha-se a fórmula passados poucos minutos. Depois, a obra arrasta-se, esgotando as várias linhas que desenham e redesenham esse triângulo amoroso que apenas nos oferece os efeitos de uma assinatura, a de uma realização consumida por uma vaidade grotesca e aborrecida (“de qualidade”).
Luís Mendonça

Não dá para levar a sério Vice (2018), o que pode ser, bem vistas as coisas, a sua principal virtude. Adam McKay, realizador que ficou popular por causa das suas comédias do gangue chefiado por Will Ferrell (destaco os dois Anchorman), pega na história do sinistro e todo-poderoso Vice-Presidente da administração Bush, Dick Cheney, para produzir uma sátira/tragédia sobre o processo de imbecilização/infantilização da vida política americana – a pertinência deste regresso aos anos Bush justifica-se, assim, à luz da actualidade Trump? Parece-me que McKay procura conquistar o interesse desta história sobre uma personagem cinzenta, sem grande interesse humano, através de um trabalho de “inseminação humorística”, isto é, injectando doses cavalares de comédia burlesca devedora, no estilo, do gangue de Will Ferrell e amigos. A meio do filme, o biopic vira-se contra si mesmo, ensaiando um ending estupidamente happy. Tudo pelo prazer do gag. Saudável liberdade? Sim, mas é sol de pouca dura.
Estas pequenas liberdades de McKay tornam-no levemente mais interessante que um Oliver Stone, mas apetece dizer que a corda não chega a esticar como devia. Para Vice ser mais do que “mais um biopic político” precisava de um McKay ao cubo, terrorista em toda a linha. No final, na cena em que Christian Bale (muito preso ao esforço de imitação) mais nos desconforta pela proximidade da sua máscara demasiado real para ser believed in, sentimos que McKay inverte drasticamente o sentido da marcha de uma sátira sem freios, dando a oportunidade de defesa a esta personagem da história recente da América e, por arrasto, do mundo. A tentativa pode ser louvável, até corajosa, mas surge tarde de mais, numa altura em que já nada é minimamente credível. Acabamos com fome de uma verdadeira comédia que apenas ficou prometida nas entrelinhas desta não-ficção ruidosa e hiperactiva (sucessivas “mãos cheias de nada”).
Luís Mendonça

If Beale Street Could Talk (Se Esta Rua Falasse, 2018) de Barry Jenkins
Com Moonlight (2016) Barry Jenkins assinou uma das mais auspiciosas e importantes obras do cinema americano dos últimos anos, uma quase-estreia [se descontarmos o obscuro Medicine for Melancholy (2008)] plena de sensibilidade e honestidade, que colocava a experiência negra numa América no centro da atenção. Não surpreende assim que a Jenkins tenha sido confiado a primeira adaptação de uma obra de James Baldwin. Começa aí a primeira questão do filme, do embate entre o material original e a leitura de Jenkins, que, por muito que seja reverente da obra do escritor, aplica necessariamente a sua interpretação. A fidelidade ao material original é uma questão antiga, perceber até que ponto é legítima a autonomia de uma interpretação que desvia-se do olhar da obra que adapta – é uma das críticas que o Ricardo Vieira Lisboa aponta no seu texto sobre o filme. Entendo que desde que essa interpretação não resulte numa simplificação do material que adapta ou numa abordagem mais pobre, pode igualmente produzir resultados interessantes, mesmo que no filme o tom seja mais optimista e “limpo” em relação ao livro. Resulta de um aprofundamento em observar a acção através do ponto de vista um tanto ingénuo da protagonista da história, respeitando ainda assim os dois temas centrais: os problemas raciais vividos pelas personagens e reflectidos na sociedade à sua volta e o desabrochar de uma relação romântica, que surge assim quase como um antídoto.
A segunda questão diz respeito ao tratamento visual dado à história. É inegável que Jenkins – não fosse ele um adepto do estilo de Wong Kar-wai -, embeleza este mundo com uma fotografia delicada e cuidada, onde os detalhes, como a palete de cores, o uso da música ou a caracterização do espaço e personagens, são trabalhados ao pormenor de modo a criar um cenário quase etéreo, talvez demasiado artificial considerando as atribulações e dificuldades da altura retratada. Este é outro dos aspectos indicados pelo Ricardo. É certo, por exemplo, que o encontro entre as duas famílias no início do filme parece demasiado encenado, que o primeiro encontro sexual entre Tish e Fonny, o par de amantes, é idílico e sedado e não trepidante, que as imagens do casal debaixo do guarda-chuva vermelho são demasiado perfeitas, ou que a personagem maléfica do polícia racista é unidimensional (o que não quer dizer que não exista). Porém, sobre isso, aponto para um texto do próprio Barry Jenkins sobre a adaptação em que sobressai a seguinte passagem, como defesa dessa transformação poética do mundano em belo e subliminal: “We don’t expect to treat the lives and souls of black folks in the aesthetic of the ecstatic. It’s assumed that the struggle to live, to simply breathe and exist, weighs so heavily on black folks that our very beings need be shrouded in the pathos of pain and suffering” e ainda “It is this need, this desire to render blackness in hues of dread and sorrow, that leads some to reject rapturous renderings of black life as inauthentic. This misconception would be trivial if it didn’t trivialize an unquestionable fact about black life, for who else has wrested as much beauty from abject pain? Who else has manifested such joy despite outsized suffering?”
Interessa-me então sublinhar alguns momentos em que a conjugação entre o material original e a abordagem estilística resulta em instantes disruptivos, como se o filme fugisse temporariamente ao controlo quer do livro, quer da adaptação: a linguagem dura entre as duas famílias nesse encontro inicial, a forma como uma agressão entre marido e mulher surge e dissipa-se, celebração e miséria unidos na mesma cena; uma longa conversa entre Fonny e um amigo acabado de sair da prisão como uma premonição do inescapável destino de perseguição racial; o encontro entre a mãe de Tish e a mulher que acusa Fonny de violação, os gritos dessa mulher e o choro da mãe; e acima de tudo, a forma como Jenkins usa dois grandes planos em campo/contra-campo dos amantes em que estes olham directamente a câmara, repetido em duas ocasiões perto do fim (planos herdeiros de Jonathan Demme, como refere Paul Thomas Anderson numa conversa com Jenkins), primeiro por trás do vidro que os separa na prisão, depois num momento inicial de namoro, antes da tempestade: o desespero e a esperança retratados de igual forma nos olhares dos dois.
João Araújo

Jiang hu er nü (As Cinzas Brancas Mais Puras, 2018) de Zhangke Jia
Em Jiang hu er nü (As Cinzas Brancas Mais Puras, 2018) estamos em território do melodrama, nunca deixando de estar em território Zhangke Jia. O realizador chinês constrói mais uma variação narrativa com o objectivo de sempre, o de dar testemunho das contradições do seu país, muito antigo e invadido pela modernidade, muito rural e invadido pela industrialização, muito povoado e invadido pela solidão dos indivíduos, personagens de ficção a que ele deita muitas vezes um olhar documental.
A história das aproximações a afastamentos de Quiao (a mulher) e Bin (o homem) estende-se por um período de 17 anos, tendo início no começo do novo século. As hierarquias de ambos também se invertem ao longo do filme, e o motivo do derradeiro afastamento de Bin parece ter a ver com a incapacidade, que é também física, de lidar com a perda de protagonismo no seu clã de “mafiosos”, ao mesmo tempo que assiste à liderança a pulso de Quiao, uma sobrevivente que ao contrário dele nunca desistiu de luta.
Outro realizador que não Zhangke Jia contaria a mesma história em menos de duas horas, mas ficaria a faltar a densidade da passagem do tempo e da observação dos espaços, dada através de planos longos que captam uma certa desolação existencial que pulveriza o sentido trágico deste país cheio e das suas contradições, pela vastidão geográfica onde todos os lugares parecem remotos em relação a um centro, e todos os indivíduos parecem anónimos e esquecidos de um destino mais radioso. O derradeiro plano, de Quiao olhada por uma câmara de vigilância, acentua a despersonalização do seu heroísmo.
Ricardo Gross