The film is on track to make history
as the biggest horror film about a black family,
written and directed by a black man
with a mostly black cast.
Lisa Respers France,
«Jordan Peele and the art of being unapologetically black»,
CNN, 22.03.2019
Dois anos depois de Get Out (Foge, 2017), Jordan Peele regressa à complexidade racial na América actual com Us (Nós, 2019), um home invasion que tem a particularidade de o invasor ser semelhante ao dono da casa.
Aquando do lançamento de Get Out, Peele concluía assim uma entrevista ao The New York Times, respondendo ao jornalista que o inquiria sobre aquilo que mais o assustava: “Seres humanos. O que as pessoas podem fazer em conjunto é exponencialmente pior que aquilo que podem fazer sozinhos. A sociedade é o monstro mais assustador”. No contexto político americano da época, Hillary Clinton perdera as eleições e Donald Trump dava os primeiros passos na Casa Branca, com um discurso de populismo, intolerância e sectarismo, que tinha propagado durante a campanha e que começava então a implementar. Get Out tinha sido produzido antes das eleições, quando ninguém, incluindo o próprio Trump, acreditava que alguém com um discurso tão divisivo pudesse vir a ser eleito presidente. Por isso, o filme tinha como alvo a elite liberal que ansiava entregar o poder a Clinton e que, ao contrário de Tump, que era demasiado óbvio nas suas posições extremistas, não reconhecia a existência do racismo enquanto problema enraizado, idealizando a América numa condição de sociedade pós-racial.
Se Get Out é dirigido aos anos de Barack Obama e à esperança promissora de Hillary Clinton, Us visa sobretudo Donald Trump e o seu lema “Make America Great Again”.
Produzido segundo o modelo de contenção de meios da Blumhouse, em que um bom argumento e um orçamento mínimo podem gerar receitas estratosféricas, Get Out evocava os filmes de teorias da conspiração de inícios da Guerra Fria, colocando um rapaz negro no meio de uma comunidade branca que usava métodos ancestrais e científicos para controlar grupos de negros, que posteriormente eram colocados ao seu serviço. O que também fazia lembrar o clássico de Victor Halperin, White Zombie (1932), em que Bela Lugosi utiliza o vodu para subjugar os trabalhadores de uma fazenda. O espectador sentia-se como o rapaz sentado na poltrona enquanto era hipnotizado e era conduzido aos seus medos mais profundos, num circuito fechado entre o divertimento e a angústia, o sorriso nervoso e as lágrimas descontroladas. Se Get Out é dirigido aos anos de Barack Obama e à esperança promissora de Hillary Clinton, Us visa sobretudo Donald Trump e o seu lema “Make America Great Again”.
Jordan Peele revelou que as suas duas primeiras obras são tomos de um quarteto de filmes que está a desenvolver, pelo que as palavras que utiliza na conclusão da entrevista ao The New York Times, após terminar Get Out, podem ser vistas como uma antecipação do filme seguinte, Us, em que a casa de uma família em férias (Lupita Nyong, Winston Duke, Shahadi Wright Joseph e Evan Alex) é assaltada por um grupo de doppelgängers. Seguindo a linha do folclore alemão, de onde este tipo de criaturas é originária, os doppelgängers de Us representam cópias idênticas das pessoas, mas que acentuam o seu lado maligno, como um encontro improvável entre Dr Jekyll e Mr Hyde, ou entre o original e o duplicado alienígena, que Don Siegel desenvolveu para Invasion of the Body Snatchers (A Terra em Perigo, 1956). Cada pessoa tem o seu doppelgänger, que repete as suas acções e vive num universo alternativo implantado no grande número de túneis e construções subterrâneas abandonadas, a que alude o inicio do filme. Numa sala de espelhos de um parque de diversões que estabelece uma passagem entre os dois mundos, um encontro inesperado entre a mãe (Lupita Nyong), quando era criança, e o seu doppelgänger é o mote para um incidente futuro em que todos os doppelgängers dirigem-se até à superfície para reclamar os privilégios que lhe foram negados e a que têm direito. Também em Weird City (2019), a saborosa série de comédia e ficção científica que Jordan Peele criou com o colaborador habitual Charlie Sanders, para o canal de streaming YouTube Premium, o mundo é dividido em duas comunidades, no entanto a passagem é vigiada e funciona como uma forma de alfândega. Nestas comunidades, Above The Line e Below The Line, não contam questões de raça, género ou preferência sexual, mas sim classes económicas que implicam diferentes privilégios, o que não elimina a mesma problemática que qualquer segregação pode originar.
A reunião das comunidades “Above The Line” e “Below The Line” de Us faz-se por meio de uma repetida imagem que exibe a reactivação do evento de beneficência “Hands Across America”, semelhante ao movimento “We Are the World”, mas centrado na realidade social do Estados Unidos, que em 1986 reuniu milhões de pessoas, entre celebridades e indivíduos comuns, num continuo cordão humano de compaixão pela pobreza e a exclusão social. Peele questiona a farsa representada por este sentido de comunidade, em que também participou Ronald Reagan numa semana em que criticava a acção dos pobres como a principal razão para os problemas da fome, compondo um cenário alucinado, cuja melhor imagem é a remontagem do clássico “I Got 5 on It” (1995) da autoria de Luniz, duo de hip hop originário da West Coast, onde o filme foi rodado, em colaboração com Michael Marshall, numa versão sombria que, através de efeitos de eco e reverberação, amplifica o seu lado fantasmático.
Por falarmos em ecos, na versão original de “I Got 5 on It” já se sentiam sinais da banda sonora de A Nightmare on Elm Street (Pesadelo em Elm Street, 1984) de Wes Craven, bem como Us contém referências mais ou menos directas a Thriller (1982) de Michael Jackson, Jaws (Tubarão, 1975) de Steven Spielberg ou The Birds (Os Pássaros, 1963) de Alfred Hitchcock. São também vestígios das vagas promessas do slogan “Make America Great Again”, em que a América profunda vem negar a sua invisibilidade e reclamar a sua perda de estatuto à medida que os poderes dos grupos privilegiados são fortalecidos. Nesta América pós-racial ainda há omissão e exclusão, mas o que mais perturba é o horror da instrumentalização do valor da partilha e do sentido de comunidade, por via de uma inspirada articulação de géneros, em que o terror não é mais que um alter ego da comédia.