Gräns (Na Fronteira, 2018) é um filme que me deixou inquieto sem saber imediatamente porquê. Não foi, com certeza, a sua componente formal que me arrebatou. Muito pelo contrário: há aqui uma incapacidade de filmar um plano fixo que seja (tudo tem que estar sempre habitado de um tremor de mão que nada acrescenta senão a repetição de um estratégia/estética que tomou de assalto o cinema contemporâneo); um gosto vazio pela deformação da grande angular que pretende dar uma aura de fantasia e irrealidade (mas que se limita a desfocar as bordas do enquadramento); e uma estrutura narrativa sem qualquer rasgo, que repete todos os pontos do mais banal filme de super-heróis. O protagonista com um talent que encontra um master que lhe revela que o seu talent é afinal um power e que a sua origin story é mais convulsa do que imaginava, tudo para descobrir que afinal o master é o villain e que o hero não é assim tão hero after all – para não falar dos sempre presentes daddy issues. O que me inquietou, de facto, foi uma questão que se foi compondo no meu espírito nas horas depois do visionamento: o que ainda pode o grotesco, hoje em dia?

Faço uma pequena pesquisa e dou de caras com Modern Art an the Grotesque (2003), livro editado por Frances S. Connelly. Nele aprendo que a palavra grotesco é uma combinação de equívocos (como aquilo que pretende descrever, se assim o quisermos definir). A palavra surge no século XVI para descrever as decorações romanas descobertas em algumas ruínas desenterradas. Em sequência de uma deficiente compreensão dos achados, considerou-se que essas estruturas eram subterrâneas e daí a associação de grotesco a grottos. Claro que o termo ganhou uma dimensão mais alargada do que o tipo de decoração ou estilo de pintura antiga (que tendia para o retrato de criaturas que recombinavam partes de seres em colagens-mutantes). Grotesco foi sendo associado ao informe, ao abjecto, ao estranho, ao convulso, ao carnavalesco, ao arabesco, à distopia, e também ao ridículo, àquilo que é alvo de escárnio, que é risível. É portanto uma noção que tem um forte peso cultural, especialmente para os ocidentais (como eu), que usaram e usam o termo para descrever o outro, o diferente, o primitivo e o exótico. A propósito disto o realizador, Ali Abbasi (sueco de origem iraniana), comentou numa entrevista que “Na Europa continental, o Irão e a Escandinávia são considerados exotica, logo querem coisas com gosto ‘exótico’.”, justificando por isso a recorrente selecção para Cannes de filmes escandinavos com estilos “grotescos” como o seu (segundo as palavras do entrevistador, referindo-se a Roy Andersson). Mas diante de Gräns cabe perguntar: o grotesco está no olhar do espectador, nas intenções do realizador ou na essência do produto audiovisual para circuito de festivais?
A figura do troll em Gräns é a “recombinação grotesca” de todas as formas de queerness numa espécie de sonho molhado da interseccionalidade.
Deixando a segunda pergunta no ar da retórica, retomo a primeira questão. O que ainda pode o grotesco hoje em dia? Como referido, o grotesco tem essa origem na palavra latina para gruta e como tal permite-se a uma descrição mais abrangente que aquela que se lhe fixou. Isto é, grotesco como aquilo que está ligado à terra, ao ventre da natureza, à fertilidade, à escuridão e logo também à morte. Aí, nessa variante da palavra, Gräns oferece-nos aquilo que tem de melhor: uma visão tocante sobre a relação do corpo social com o corpo animal. Aliás, na mais impressionante e emocionante cena do filme, observamos dois corpos não-humanos descobrindo-se na sua sexualidade, por entre toques, cheiros e fluidos, tudo num panorama composto por bosque denso, folhas mortas e musgo húmido. A forma como os actores se oferecem um ao outro em beijos carnívoros, cheios de grunhidos, dentes e baba, faz desse momento uma comovente descrição do desejo na sua manifestação mais… grotesca (no bom sentido). E aí descubro uma qualquer renovação do termo. Aí reencontro-me no outro e dou trabalho ao exercício da alteridade. Também eu grunho, mordo e babo, também eu sou troll. O grotesco como um “apesar de tudo…”.
O problema é que Abbasi operacionaliza o grotesco para outros fins, mais óbvios e mais demarcadamente panfletários. O conhecido crítico vitoriano John “arts and crafts” Ruskin referia-se ao grotesco afirmando que “em todas as eras e entre todas as nações, o idealismo grotesco tem sido o elemento através do qual as verdades mais aterradoras e repletas foram sabiamente transmitidas.”. E na sequência disso, Jeffrey Jerome Cohen explica, em Monster Theory: Reading Culture (1996), que “O corpo monstruoso literalmente incorpora o medo, o desejo, a ansiedade e a fantasia, dando-lhes vida e uma estranha independência. O corpo monstruoso é cultura pura. Uma construção e uma projecção, o monstro existe apenas para ser lido: o monstrum é etimologicamente “Aquilo que revela”, o que adverte”. O grotesco e o monstruoso como reveladores/expositores daquilo que a sociedade produz e simultaneamente esconde. O realizador parece ter lido com atenção os referidos autores. Talvez com demasiada atenção.
Em Gräns o grotesco é de facto “pura cultura”, no sentido em que pretende ser alegoria de todos os males, ou melhor, é motivo para versar sobre todos os males. A partir dos corpos não-humanos do casal de protagonistas fala-se de tudo: a aceitação do próprio corpo (especialmente o feminino), as questões da identidade sexual e de género (especialmente de pessoas não-binárias e trans), as questões de origem biológica e racial, os corpos que constantemente rumam o mundo sem poiso, os migrantes e refugiados, a integração social destes e o seu sucessivo apagamento cultural, o extremismo ideológico, os crimes sexuais, a pedofilia, a pornografia infantil, o roubo de crianças, os papéis sociais na parentalidade e os seus desequilíbrios culturais, o holocausto, o extermínio, a descriminação e perseguição sexual, racial, religiosa, etc. A figura do troll em Gräns é a “recombinação grotesca” de todas as formas de queerness numa espécie de sonho molhado da interseccionalidade. Se isso é bonito em tese, como manifesto e como expressão das possibilidades do cinema de género, surge aqui tão denunciado que retira qualquer substância dramática aos personagens principais, feitos tópicos de debate. Pior que isso, os actores surgem-nos quais reclames ambulantes das capacidades dos oscar nominated make up artists – como vem sendo hábito de algum do cinema sueco que nos vai chegando –, cobertos de uma espessa camada de maquilhagem. Nesse sentido, Gräns é um filme sobre próteses: as de látex, que moldam o nariz numa batata, e as ideológicas, que procuram conferir substância política à simples fantasia. Ambas coladas com cuspo.