Em boa hora, decidiu a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, em colaboração com a Cineric Portugal, empreender no restauro fílmico do documentário O Pão (1959), de Manoel de Oliveira, o qual recupera, assim e na íntegra (com 57 minutos), a versão longa de uma obra que, durante várias décadas, foi maioritariamente exibida numa metragem “abreviada” por vontade expressa do próprio realizador. Um restauro que, como dizia, surge em boa hora, nomeadamente através da analogia que a revisitação de imagens em movimento, registadas há mais de meio século, proporciona para a compreensão dos conceitos básicos, morais e contemporâneos do valor do labor humano.

Quantas dinâmicas estão envolvidas na produção de um dos bens alimentares fulcrais da “dieta mediterrânica” nacional? Dos campos agrícolas à mecanização fabril, de que forma o trabalho se reveste de aparente carga espiritual? Será possível atribuir valor material à busca pela dignidade do Homem através do trabalho?
No seu âmago, este é, declarada e fundamentalmente, um documentário sobre a prosaica dignidade do Homem através do seu trabalho.
Embora produzido em 1959, certo é que a construção temática e formal de O Pão salienta todas as questões acima elencadas, de cariz muito contemporâneo, e, por inerência, assume-se como obra em que o espectador moderno não deixará de encontrar paralelo com os desafios — ou dilemas, segundo alguns pareceres — do panorama laboral que marca a nossa actualidade. De um ponto de vista historiográfico e, a espaços, quase etnográfico, o olhar documental de Oliveira transporta-nos não só para os processos de uma determinada data [muito à semelhança daquilo que Douro, Faina Fluvial (1931) já encerrava], como esmiuça o trabalho da panificação nas suas diversas implicações.
Nesse âmbito, as actividades de sementeira, cultivo e colheita numa primeira instância, e da industrialização panificadora e respectiva mercantilização na segunda parte do filme, configuram-se na demonstração de métodos e gestos “calejados” pela terra e pelo sol, ou formados pela “fúria” das máquinas e do controlo de qualidade alimentar na fábrica. Numa série de rituais filmada sem doutrinações políticas (nem por uma vez se decifra elogio ou crítica à “cartilha salazarista”), tampouco centrada em compreensões religiosas (não obstante a primeira sequência do documentário representar, precisamente, a celebração católica de um matrimónio) do labor humano.
No seu âmago, este é, declarada e fundamentalmente, um documentário sobre a prosaica dignidade do Homem através do seu trabalho, ou por outras palavras, da elevação do Homem pelo produto das suas mãos e do seu engenho. Essas intenções são, de imediato, vincadas na citação que abre o filme (“O pão de cada dia obriga a um esforço constante, de que o homem sai dignificado”), passando por todas as imagens do trabalho no campo ou na fábrica, e culminando na eloquente peça de docuficção — ou seja, as crianças pobres que disputam uma côdea, abandonada no meio do passeio, pelas ruas de Lisboa é imagética digna do mais puro neo-realismo italiano — que remata O Pão.
Uma ressalva final para o próprio restauro de O Pão, que se assume como exemplo relevante da dicotomia “ética/estética” que deveria sempre orientar qualquer trabalho de restauro cinematográfico. Subjacente à perfeita preservação do grão da película de 35mm em que o filme foi originalmente registado, a predominância de tonalidades em castanho sépia remetem, simbólica e indubitavelmente, para o ideal da terra, isto é, da origem térrea do alimento, enquanto fonte de nutrição, de prosperidade sentimental e/ou material e desenvolvimento humanas.
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O restauro da versão longa de O Pão em cópia digital 4K (por a cópia arquivada ter sofrido deteriorações ao nível da cor que foram aproximadas digitalmente) será apresentada na próxima sexta-feira, dia 15, na La Cinémathèque française no âmbito do festival de filmes restaurados Toute la mémoire du monde 2019. A sessão será apresentada por Maria João Madeira da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema.