Olhamos para A Portuguesa (2018) e somos arrebatados pela sua beleza visual, pela precisão da mise en scène numa série de tableaux vivants cuja sumptuosidade percorrida por uma luz esbranquiçada de Vermeer (chapeau outra vez, Acácio de Almeida) dá-nos aquele que é, para já, um dos filmes mais belos deste ano. Baseado num conto de Robert Musil e adaptado por Agustina Bessa-Luís, o filme decorre no Norte de Itália, no século XVI, com a protagonista lusitana (Clara Riedenstein) a aguardar o retorno do marido (Marcello Urgeghe), von Ketten, da guerra em torno do domínio do Principado Episcopal de Trento. É desses períodos de espera, com a portuguesa no bosque ou no castelo, a esculpir em barro ou a receber a neve do céu, que a realizadora Rita Azevedo Gomes tenta compreendê-la, e a sua relação com o amor, o poder e a guerra. O texto abaixo transcrito é uma versão editada da conversa com a realizadora no Espaço Nimas aquando uma sessão do filme, onde predominou a sua boa disposição, gentileza e generosidade para com os entrevistadores e audiência.
Duarte Mata (DM) – A primeira questão que acho que se deve colocar, e que creio que está a percorrer a cabeça de todos os membros da audiência, é: aquela queda que o marido dá perto do final foi ensaiada ou espontânea?
[Risos] É metade-metade. Preguei-lhe uma rasteira, pus sabão no chão quando ele estava húmido, sem o Marcello saber. Obviamente, ele não estava à espera de cair. Até há uma certa reacção da Clara como quem diz, “Ai meu Deus, vão cortar”. E ele não se desmanchou, o que é extraordinário, salvou o take.
DM – A Rita embora use a palavra como matéria-prima, ao mesmo tempo cria imagens de uma sumptuosidade que são quase um equivalente visual da beleza da palavra escrita. Há um grande rigor e importância que a Rita dá à mise en scène no seu cinema, sejam os movimentos, gestos ou na colocação de cada figura no espaço do plano. Perguntava-lhe qual é, para si, a importância da mise en scène?
Quando estou a fazer um enquadramento tudo o que se desenha dentro dele tem de ser um bocadinho apurado. Nunca é tão apurado como se desejava, mas é bastante trabalhado. Podemos imaginar muita coisa, mas só quando estamos perante os actores, os cenários que se conseguiram, etc., é que finalmente podemos intervir em directo. Portanto, há partes que já foram pensadas, logicamente: os cenários com esta cor ou aquela, os fatos assim-assado, mesmo com os actores já houve um trabalho em seco, sem ser perante o décor e com o texto o mais possível. E depois junta-se isto tudo e, naquela altura, define-se também muita coisa, como as luzes e outros aspectos. No fundo, estamos a fazer um quadro. Não consigo aceitar muito bem a ideia de filmar o que está. Tem de haver uma composição qualquer. Não estou a pintar nem com óleo nem com guaches, mas no fundo estou a fazer um quadro com luz.
São coisas tão trabalhadas quanto possível nas condições que se têm, sempre com pouco tempo, sempre a ter que improvisar “à última da hora”, mas sim, tenho essa preocupação de olhar para tudo o que se passa dentro do plano, e de me perguntar o “porquê” e o “como”: “Porque é que estou a gostar daquilo e não daquilo?”, “Como é que eu consigo dar a ideia disto?”. Isso leva-me às vezes a dizer, “Aquilo está muito bonito, gosto imenso, mas não está aqui a fazer nada, tira.” A única coisa que eu faço é estar com atenção a tudo, e essa atenção, às vezes, exige retirar coisas de que gostavas muito. Não posso ir atrás de toda a borboleta que me passa à frente, se convém ao plano ou ao filme, mantenho, caso contrário tenho de retirar, por muito que me custe.
DM – Portanto, cada elemento de cada um dos enquadramentos deste filme está lá por uma razão?
Eu acho que sim, às vezes não sei é qual é ela. Por vezes acontece isto, parece que está tudo bem, mas falta algo. E tu não percebes logo o que é, depois agarras em algo azul, atiras para ali e fica.
DM – Funciona também por instinto?
Completamente, envolve muita intuição, sim.
Bernardo Vaz de Castro (BVC) – Não sei. Eu percebo obviamente essa parte da intuição, até porque é um bom caminho para os artistas escusarem de falar. Mas, para mim, há um interesse pela palavra como pela imagem. Da mesma forma que eu não consigo pensar que haja uma palavra mal dita nos seus filmes [basta pensar em A Vingança de uma Mulher (2012), que eu sei que foi a própria Rita a fazer a tradução do texto original porque não havia na época, e é uma tradução absolutamente extraordinária], também não consigo pensar que haja algo acessório no seu cinema. Acho que tudo é pensado dentro de uma determinada lógica e economia. E isto tem a ver, acima de tudo, com um cinema que dá tempo ao espectador, ou seja, que não é de entretenimento. Eu acho que, quanto menos o cinema é de entretenimento, menos tem uma lógica de desperdício, ou seja, tudo entra numa espécie de organicidade muito própria ao filme.
Acho este filme muito curioso porque é talvez o seu filme com menos texto, até porque é baseado num conto do Musil, o qual está publicado pela Dom Quixote [A Portuguesa e Outras Novelas]. Tem 20 páginas, e precisamente por não haver tanto texto, acho que há uma atenção ainda mais redobrada à imagem, tudo aquilo que acho que entra no filme é uma espécie de decantação absoluta. Ou seja, nós não só damos tempo ao cinema e para as imagens se construírem, como também ao próprio silêncio que, neste filme, faz muito parte da sua dinâmica, porque são dois universos: o feminino e o masculino, e que à época não pareciam ter muito contacto. Ou transformaríamos este texto numa espécie de Shakespeare, e então haveria uma espécie de linguagem para todos os seus personagens, ou então haveria um outro tipo de retrato que exigiria um silêncio onde não haveria esse tal ponto de comunicabilidade tão óbvia como hoje em dia vemos. Hoje em dia as pessoas falam muito no contemporâneo, mas têm muito pouca coisa a dizer. Aqui, se calhar, ainda tinham menos a dizer. E, portanto, este filme vive muito desta bela adaptação da Agustina Bessa-Luís, mas também muito dos seus silêncios e daquilo que consta no não-dito.
Neste caso eu tinha essa dificuldade, porque o conto é pequeníssimo, e a adaptação da Agustina ainda mais. Recebi um argumento de cerca de 7 páginas, o que não dá para um filme, nem sequer para uma curta. No entanto, acrescenta um enigma em cima do enigma que já é o conto do Musil, porque a Agustina tem aquela escrita que não hesita e que percebe muito as pessoas. Esta mulher que a gente não sabe quem é, nem se existiu ou se não, é realmente muito enigmática. Acho que ela não é infiel, ela vai além da infidelidade, e depois há aquilo em que ele não entra, que é o mundo onde ela viveu antes de o conhecer. E a Agustina apanha isso muito bem nos diálogos que faz, mas depois a minha dificuldade é tentar (foi o que eu fiz, bem ou mal não sei) estar do lado dela, daí que depois também eu acrescente coisas que não estão nem no Musil nem na Agustina, que inventei e que se calhar é um bocadinho o filme. Ela não vai estar a fazer bordados 11 anos nem a tomar conta das crianças, esta mulher tem qualquer coisa…
BVC – Pois, a visita daquela prima não existe no conto, pois não?
Não tenho a certeza. E o facto de ela ser francesa era porque eu queria trabalhar com a Luna Picoli-Truffaut. O que não tem mal nenhum, quer dizer, se o von Ketten casou com uma portuguesa, o irmão podia ter casado com uma francesa. O que eu acho é que uma grande parte do filme, onde ninguém diz nada, está-nos a contar coisas da vida desta portuguesa. E foi assim que eu entendi, é um bocadinho estranho uma mulher que anda sozinha na floresta, que nada no rio, que cria um lobo, que faz esculturas malucas…. Há qualquer coisa fora do sítio nela. Fora do sítio ou no sítio, se calhar está no sítio. Tentei perceber um bocadinho o que era. Como aconteceu com o texto d’ A Vingança…, e nisso tem muita razão, porque se eu gostar de um texto, será ele o grande director do filme. E aqui há os silêncios. E continua a ser o texto o director do filme. Primeiro, uma palavra é extraordinária, pode-se fazer dela mil coisas. Uma vez estive com o Peter Brook em Londres num workshop. Durante dois dias, ele fez uma coisa que nunca mais me esqueço. Já não era uma palavra, era um gesto: ele pôs o auditório todo em pé a fazer um gesto com a mão que era simplesmente isto [levanta-se, abre a mão direita com a palma para cima e chega-a ligeiramente à frente.] E pediu-nos, connosco todos em pé, que ao fazer isto trouxéssemos uma ideia: “Estou a ver se chove.”, “Dá cá uma moeda”… Portanto, o que podemos pôr numa mão é absolutamente inacreditável, e com uma palavra ainda traz mais ecos. Há muitas maneiras de ler um texto, tal como há muitas interpretações de uma música, e o texto, quando é algo como eu tinha, condiciona muitas coisas no filme. E ajuda muito a tomarmos decisões.
DM – Há uma frase do Tarkovsky, “Um livro lido por 1000 pessoas diferentes resulta em 1000 livros diferentes”. De alguma maneira relaciona-se com o que diz.
E às vezes pela mesma pessoa. Estou a ler um livro da Agustina pela nona vez, e estou sempre a achar que nunca li certas coisas. Quando o li em 1977, pela primeira vez, não era o mesmo livro que eu estou a ler agora.
DM – Há uma forte presença animal neste seu filme (temos cavalos, galinhas, gansos, coelhos, cães, lobos, gatos, cabras e grifos) e que parece acarretar um significado mais metafórico que se liga às personagens. Por exemplo, quando o marido está enfermo e quer mostrar a sua virilidade e poder, manda matar aquele que é talvez o grande concorrente do amor da portuguesa, o lobo. Outro exemplo: a seguir àquela cena de sedução no final cortamos para um plano com coelhos, animal conhecido pela sua fertilidade. Foi sua intenção criar alguma ligação entre a presença animal e a humana neste seu filme?
Eu não sei porquê, exactamente. Mas agora dou-me conta de que tenho sempre animais nos meus filmes, o que complica as filmagens porque não conseguimos controlá-los. Mas depois eu acho que é muito interessante neste filme, ou pelo menos dei-me conta, de que esse estado livre que eles têm de não perceberem sequer o que estamos a fazer… no fundo é o irracional. É o irracional no mundo dos racionais, porque o cão atravessa o plano e, de repente, é uma coisa devida. Há um olhar do irracional para o racional. E por isso fiz aquele plano do olho do cavalo. Se alguma vez olhaste para um olho de um cavalo, sabes que é muito estranho, porque é muito perturbante: eles olham, vêem-nos, e parece que perguntam algo.
DM – Então interessa-lhe explorar este balanço entre o irracional pelos animais e o racional pelos humanos?
Não é algo que tenha pré-fabricado. Lá está, é algo intuitivo. Eu não funciono muito a pensar “vou fazer porque…”, não funciono a racionalizar muito as coisas de forma a segui-las, mas a verdade é que, depois de feito o gesto, questiono-me: “Porque é que fiz aquilo?”
DM – Há também a presença da Ingrid Caven.
Também é um animal selvagem. [Risos da audiência] Não, a Ingrid Caven também é um rasgão.
DM – Parece que funciona como uma espécie de coro, comentando em canções (de José Mário Branco) a efemeridade da vida e a relação das personagens com a guerra ou com o amor. Como vê a importância desta personagem, que não é bem uma personagem, neste seu filme?
Eu acho que tinha vontade de sair do filme de época. Não é um filme com pretensões a fazer uma reprodução da época. Há quem faça isso muito melhor do que eu, de certeza, porque não é o meu apetite fazer uma reconstituição de uma época tão longínqua que não vivi nem sei como seria o dia-a-dia. E tinha uma vontade louca de trabalhar com a Ingrid, que é uma pessoa que eu acho extraordinária em todo o percurso que faz no cinema. E ela tem um bocadinho isso, o não pertencer a lado nenhum. Não é o estereótipo nem da cantora nem da actriz, é um animal, tem uma liberdade enorme. E depois é uma senhora que aos 80 anos continua a querer brincar como os miúdos, isto é, o brincar, o prazer do jogo e da sedução. Ela tem tudo isso. E propus-lhe fazer esta intervenção no filme. Foi complicado, falávamos ao telefone (ela mora em Paris), “Mas qual é o meu papel?”, e eu dizia-lhe, “Ó Ingrid, não é bem um papel.”, e ela, “Mas então não sei o que queres de mim.” Imagina que eu sou uma pintora e que estou a fazer um quadro. Há uma dada altura em que eu digo, “Está feito, acabou.” E depois passa-me algo pela cabeça, vou lá e dou uma facada. Por outro lado, a Ingrid também me ajudava a fazer uma coisa que tinha vontade, que é trazer o filme para o presente. E ela é uma personagem que tanto olha para o que se passa dentro do filme, como olha para nós e traz-nos da história da época em que o filme se passa para os nossos dias. E ainda vai mais para trás, porque também canta umas coisas mais arcaicas.
BVC – É isso que também me interessa no seu trabalho. Já tinha feito essa observação no seu anterior filme, o Correspondências (2016). Quando fiz a apresentação do filme, tinha dito para não olharem para o filme e pensarem apenas sobre o Portugal fascista, do qual o Jorge de Sena tinha fugido e que a Sophia estava a viver. E relembrei que as filmagens do filme coincidiram com uma época bastante negra em Portugal, a da austeridade. Eu acho que no cinema da Rita é sempre importante uma certa noção de actualidade, ou seja, este filme passado no séc. XVI não é só passado no séc. XVI, há sempre qualquer coisa que se actualiza no presente, seja (como foi no Correspondências) uma situação económica, política e social de um outro tipo de restrição e de outro tipo de ditadura que nós vivemos mais recentemente, que foi a da crise. E este, através da presença da Ingrid, abre o filme para essa possível leitura, ou seja, o filme não fica estanque. Até a própria actualização que a Ingrid dá, a meu ver, traz outro aspecto muito positivo, porque também dá outro tempo ao filme. Há dois tempos neste filme, porque o tempo em que essas personagens estão a viver é um tempo diferente das brincadeiras da Ingrid.
A Ingrid tem isso, uma coisa muito antiga, de completamente actual e de ruptura. Mas ela pediu-me para se basear em alguma coisa e não ser apenas ela a ir para ali cantar. E então surgiu nas nossas conversas aquele desenho do Paul Klee, Angelus Novus, que o Walter Benjamin comprou, algo que virou depois um ícone de progresso e da esquerda. O texto dele é fabuloso e muito bonito. Basicamente é um anjinho a olhar para o passado, que quer pegar no mundo para recompor as ruínas, reconstituir os destroços, recolher as ruínas…
BVC – O Walter Benjamin chamou-lhe “o anjo da História”.
Exactamente, ele tenta recompor o mundo, mas o vento leva-o pelos ares, e lá vai ele a voar. Esta ventania, no fundo, é a representação do progresso. A Ingrid agarrou-se a isto com unhas e dentes. Não é que ela estivesse a fazer o anjo da história, mas já dizem tanta coisa dela. Até já disseram que é o Robert Musil a entrar no filme. Eu disse, “Se quiserem…” [Risos da audiência] Mas é bom haver qualquer coisa em que cada um faça o que quer.
DM – O que é aquela palavra que ela vai repetindo, “tandaraday”?
É o “tralaralá”. Não quer dizer nada.
DM – Damos então agora espaço para perguntas da audiência.
Membro da audiência – Onde foi filmado?
Cá em Portugal. Eu queria Trento, mas depois descartei a ideia. Primeiro, por razões económicas, claro. Depois, pensei que lá não me sabia mexer, quando precisasse de comprar chita, pioneses… preciso de ter acesso a essas coisas todas. Aqui eu sei onde está a drogaria. Deve ser muito difícil lá, de repente, querer ir comprar (porque eu estou sempre a improvisar um bocado) a tinta assim-assado. E imaginem o que seria arranjar cavalos, falcões, coelhos… Não sabia. Aqui foi trabalhoso, mas possível. Filmámos numa quinta de Sintra, em Arcos de Valvedez, em Salvaterra do Extremo, em Viana do Castelo, Bragança… Portanto, ainda andámos um bocado, mas conseguiram-se pedaços de uma casa aqui, pedaços de uma casa ali, e fingir que é tudo no mesmo sítio, apesar de não o ser. Estamos num sítio que é em Sintra, depois subimos a escada e já estamos em Arcos. Não sei como é que aquilo colou. Fiz desenhos e desenhos e desenhos, e achava que ninguém ia acreditar. Depois tirava fotografias e pensava, “Não, isto vai colar.” E ninguém acreditava que colasse, mas colou.
DM – Maravilhas da montagem?
Não. É o cinema.