“The screen door slams, Mary’s dress sways. Like a vision she dances across the porch as the radio plays.” Ao ler estas duas frases caracterizadas por uma escrita precisa e imagética, é possível que o leitor julgue estar diante das primeiras páginas de um argumento cinematográfico decorrido num pequeno subúrbio americano. Na realidade, tratam-se dos dois versos iniciais de Thunder Road. Antes deles já tínhamos ouvido o intro constituído pelos sons prolongados de uma harmónica diatónica, acompanhada de forma consonante por um piano Rhodes. A eufonia criava a ideia de uma paisagem extensa descoberta pela luz da alvorada, um plano geral acústico que convidava o ouvinte para entrar no universo de amantes em fuga, trabalhadores blue-collar e protagonistas noir do álbum Born to Run. Se as canções de “The Boss” são tantas vezes designadas como “cinematográficas” é por momentos assim, onde a música nasce da necessidade de criar uma imagem instantânea na cabeça do ouvinte, enquanto a letra descreve com detalhe moderado as acções e elementos nesse cenário, onde tomarão parte narrativas pessoais em torno de personagens com as suas esperanças, conflitos e chances de redenção. Thunder Road, como tantas vezes em Springsteen, não é uma canção que se ouve, vê-se, recebe-se as suas imagens com a mesma cativação, curiosidade e maravilhamento com que alguém se senta numa sala escura dominada por um grande ecrã. Se não soar a pedantismo a afirmação, ponhamos as coisas da seguinte maneira: Bruce Springsteen é um dos maiores cineastas que não chegaram a sê-lo.
Se parece fruto de um entusiasmo excessivo o parágrafo anterior, observemos a relação longa e bilateral entre o cantor e o cinema: de um lado, realizadores a fazerem filmes inspirados nas suas canções [The Indian Runner (União de Sangue, 1991) a partir de Highway Patrolman], a apropriarem-se dos seus títulos [Streets of Fire (Estrada de Fogo, 1984)] e a usarem-nas como elemento crucial para a caracterização psicológica das personagens que filmam [a forma como a solidão dos condutores de Stolen Car e Drive All Night reflectem a do polícia incorruptível de Sylvester Stallone em Cop Land (Copland – Zona Exclusiva, 1997) ou a genuína motivação colectiva que I’m on Fire despoleta nos jogadores de polo aquático de Palombella rossa (1989)]; do outro, Springsteen a referir como influências no seu trabalho discográfico os filmes de John Ford, como a adaptação fílmica d’As Vinhas da Ira para um dos seus álbuns mais socialmente conscientes, The Ghost of Tom Joad, ou os noirs com Robert Mitchum [principalmente Out of the Past (O Arrependido, 1947) e The Night of the Hunter (A Sombra do Caçador, 1955)], cuja atmosfera sombria, ritmo hipnótico e personagens solitárias são tudo componentes presentes em discos como Darkness on the Edge of Town ou Nebraska (Thunder Road é, já agora, o nome de um filme da década de 50 com o actor). Não chega? Observemos um par de declarações ditas pelo próprio na década de 70: a primeira, “[Nas minhas canções] não há uma acção fixa. Pegamos nela, e a certa altura – pssst! – a câmara faz uma panorâmica, e o que aconteceu, foi o que aconteceu.”; e a segunda, uma indicação dada para a mistura de som de Adam Raised a Cain, “Imagina que estás numa sala de cinema, e no ecrã estão dois amantes a terem um piquenique. Depois ocorre um shock-cut para um cadáver. Cada vez que esta canção surgir no álbum [Darkness on the Edge of Town], esta canção é o cadáver.” O que releva nestes excertos é a aptidão com que Springsteen fala de música pelo recurso ao vocabulário cinematográfico, de como pensa a resposta emocional que espera provocar no ouvinte partindo de uma descrição sucinta vinculada à construção e orquestração de imagens hipotéticas.
Se não soar a pedantismo a afirmação, ponhamos as coisas da seguinte maneira: Bruce Springsteen é um dos maiores cineastas que não chegaram a sê-lo.
Como em algum cinema, as histórias que Springsteen canta falam sempre de personagens que, após nos serem introduzidas por um discurso na primeira pessoa, enfrentam uma situação dilemática onde terão de tomar uma decisão que as fará viver o resto da vida com ela, saindo de cena à medida que o cantor coloca indirectamente a questão: “O que terias tu feito na situação delas?” A habilidade de Springsteen está em conseguir colocar o ouvinte perfeitamente nos sapatos deste leque de figuras imaginárias, de despoletar um enorme sentido de empatia para com elas, seja um polícia com um irmão delinquente que, mais tarde ou mais cedo, terá de escolher entre a lei e a família (a já referida Highway Patrolman), um sapateiro – que bem poderia ter saído de um romance de James M. Cain – apaixonado por uma femme fatale e disposto a perder tudo por ela (Highway 29), um veterano do Vietname a gritar pelo direito à reintegração social devida (a tremendamente incompreendida Born in the USA), bombeiros em actos de heroísmo e viúvas do 11 de Setembro a aprenderem a lidar com a dor e a ausência (o álbum The Rising), emigrantes ilegais mexicanos que, ao procurarem ilusoriamente a América como uma Terra Prometida, acabam por se ver minorados ao estatuto de marginais (o álbum The Ghost of Tom Joad) ou, principalmente, os blue-collar, aqueles cujos empregos lhes consomem as forças e a saúde, mas que são continuados em nome das responsabilidades e compromissos da vida adulta: colocar um pão na mesa ao fim do dia, pagar as contas astronómicas, educar as crianças, e outros tantos valores de uma enorme nobreza ainda pouco celebrada no quotidiano (o álbum Darkness… ou The River). É isto que faz de Springsteen o poeta da classe operária, dos oprimidos, dos injustiçados, de todos aqueles a quem o sonho americano falha em se ver cumprido.
Dito isto, podemos frisar o essencial, que talvez por esta influência do cinema sob várias formas, o maior talento do cantor americano seja, a seguir à música, o do storytelling. É justamente por ele que está alicerçado o auspicioso monólogo-concerto Springsteen on Broadway, onde ao longo de duas horas e meia peculiarmente rápidas assistimos a um autêntico one-man show: o cantor, a guitarra, o piano, a harmónica, e uma longa história que tem para contar, a sua. O realizador Thom Zimny sabe-o, e a astúcia da sua realização começa na opção cônscia de enveredar por um estilo desobstrutivo, recatado, espartano até certo ponto, recorrendo a planos visualmente modestos que, independentemente da sua escala, contam permanentemente com a presença de Springsteen no palco. Não veremos o cantor antes de entrar nem depois de sair dele, tal como não teremos quaisquer reaction shots dos membros da audiência às declarações e reflexões que expõe do imo das suas memórias e coração. Zimny quer fazer um filme exclusivamente contado através dos olhos saudosos, já denunciadores da experiência dos anos (há uma certa prevalência de planos fechados e de zooms direccionados ao seu rosto), da postura profissionalmente inatacável, do andar lento e seguro, do ocasional dedilhar enérgico das várias cordas e teclas, e, acima de tudo, da eloquência inegável das palavras honestas do cantor. E basta.
Tal como a autobiografia lançada em 2016, Born to Run, Springsteen faz aqui o testemunho e revisão do seu percurso pessoal e profissional. Com um acrescento, a forma como a conta num desempenho sincero, às vezes cómico, outras comovente (há até direito a uma lágrima tímida) enquanto entrelaça momentos biográficos com o seu repertório discográfico dado em modo acústico, explicitando em maior grau a dimensão pessoal (mas colectivamente identificável) que estas acarretam, liberando-as, por fim, de quaisquer traços de ambiguidade que poderiam acarretar até ali. Como o próprio diz, vem “de uma pequena cidade onde tudo é tingido com um pouco de fraude. Eu também sou.” Ele que fez carreira a falar do universo de operários fabris sem ter tido qualquer experiência profissional na área, ou que cantou heroicamente a fuga adolescente da cidade-natal para agora acabar a morar a 10 minutos dela. Por esta série de pequenas confissões reveladas num espectáculo despretensioso, são óbvias as intenções do cantor, desconstruir a mitologia que criou sobre si num auto-retrato íntimo que o situa frente-a-frente com a audiência que apenas julga saber quem ele é.
Ouviremos, por isso, My Father’s House depois de o cantor descrever a relação complexa com o pai, simultaneamente álgida e deferente, onde o ia buscar aos bares locais em criança; o relato da sua infância em Freehold, New Jersey (a habilidade de storyteller de Springsteen é tanta que, ao descrever nostalgicamente o cheiro a café despoletado na cidade pela fábrica da Nescafé aquando noites chuvosas, o espectador quase consegue sentir o dito perfume) intercalada com os versos de Growin’ Up e My Hometown; as relações que a Guerra do Vietname quebrou irreversivelmente, assim como o encontro com Ron Kovic e outros veteranos, acompanhados por Born in the USA numa versão Delta slide blues a deixar saliente o que sempre foi: uma canção de protesto; os desafios matrimoniais e a confiança recíproca que envolve a sua superação (a única outra presença humana que chega a entrar no palco é a esposa Patti Scialfa para um par de duetos) pelas canções de Tunnel of Love; ou a amizade com o falecido saxofonista e membro da E Street Band, Clarence Clemons (“he was elemental in my life, and losing him was like losing the rain”), com Tenth Avenue Freeze-Out. Isto, sem esquecer, uma componente militante onde Springsteen indigita a administração actual norte-americana como a responsável pela instauração dos recentes eventos nacionais reveladores do medo, ódio e separação que afastam o país dos ideais de inclusão, tolerância e fraternidade sobre os quais os Estados Unidos se deveriam reger, tocando de seguida The Ghost of Tom Joad e The Rising, sob a forma de um apelo necessário e inspirador para restabelecê-los devidamente.
E não podemos deixar de referir o pico emocional do espectáculo, o momento em que Dancing in the Dark é tocada e mostrada como uma maneira de vencer a alienação, a fadiga e o isolamento numa longa dança. Springsteen aproveita o desfecho desta canção para iniciarLand of Hope and Dreams, talvez a sua música com um imaginário mais religioso, sobre o reencontro entre um homem e uma mulher num comboio que “leva santos e pecadores”, “perdedores e vencedores”, “prostitutas e jogadores” rumo à salvação. É nestes cerca de 8 minutos totais que a câmara de Zimny dá maior importância à presença da audiência, com a câmara a efectuar travellings ao redor dos membros dela (apenas as suas silhuetas são visíveis), para acabarem a aplaudir de pé e a soltar os familiares “Bruuuce!”, uma belíssima experiência comunal, universal e libertadora. É ela que introduz a última parte, onde Springsteen dará uma observação final sobre a mortalidade, partindo de um encontro que teve com o que resta da árvore da cidade-natal que o acompanhou desde a infância, e que acabou por se ver cortada, dando-lhe a noção e aceitação da efemeridade de tudo (um momento que, pelo sentido de mono no aware que acarreta, só nos faz querer remeter para os desfechos dos filmes de Ozu). Springsteen on Broadway é, por estas e por outras razões, mais do que um espectáculo, é um enorme testamento onde abundam memoráveis lições de vida em torno do conjunto de experiências que caracterizam a condição humana, lembrando-nos de que onde há escuridão é possível encontrar luz, onde há culpa encontrar redenção, onde há desespero encontrar fé, onde há dor encontrar transcendência. Como numa das suas canções? Sim. E também como no cinema.
Deixo um agradecimento especial à amiga Joana Sant’Ana.