O início da crítica diária no jornal Diário de Lisboa, em 1968, revolucionou a história da mesma na imprensa portuguesa e alterou radicalmente o panorama da crítica de cinema em Portugal. Numa mudança de estratégia editorial, o jornal passou a contar com a colaboração de Lauro António e de Eduardo Prado Coelho como críticos de cinema, ganhando “vinte e cinco tostões” por cada texto “mais direito a bilhetes à borla para as salas de cinema onde os filmes estreavam”.
O Diário de Lisboa tinha já inovado antes. Em Outubro de 1927, tinha-se tornado o primeiro jornal diário do mundo a incluir uma página dedicada exclusivamente a assuntos cinematográficos. Tratava-se da página inicialmente intitulada Arte Cinematográfica/O claro-escuro animado, da responsabilidade de António Lopes Ribeiro que assinava os textos sob o célebre pseudónimo de Retardador.
A página, posteriormente rebaptizada de A Semana Cinematográfica, foi um sucesso durante três anos, lançando António Lopes Ribeiro para outras aventuras, como as duas primeiras séries da revista Imagem (1928 e 1930-1935) e para as revistas Kino (1930-1931) e Animatógrafo (1933), que o próprio fundara.
A partir de 1945, o Diário de Lisboa passou a publicar outra página temática: Êxito, página dedicada ao cinema, teatro e rádio. A página começou por ser coordenada por Augusto Fraga, um dos críticos do núcleo dominante da escrita cinematográfica portuguesa. A partir de 1961, a coordenação da página Êxito, então também dedicada à televisão, passaria a ser da responsabilidade de Manuel de Azevedo, um dos nomes mais destacados e reconhecidos do movimento cineclubista e de uma crítica minoritária e marginalizada no panorama cinematográfico português.
Mas, em 1968, quem não gostou da inovação foi uma associação de exibidores de cinema de Lisboa designada Cineasso – Cinemas Associados, Lda. Dirigida pelo Eng. José Gil, a Cineasso agregava os maiores espaços de exibição da capital: Monumental, Satélite, Império, Estúdio, Alvalade, Éden e S.Luiz.
Considerando-se ameaçado nos seus interesses, numa época em que o número de espectadores cinematográficos baixava gradualmente, a Cineasso decidiu intervir de forma rápida e eficaz. No dia 23 de Fevereiro de 1968, enviou uma carta ao director do jornal que foi publicada com destaque de primeira página alguns dias depois.
Assinada pelo eng. José Gil, a carta anunciava o cancelamento da publicidade das sete salas de cinema no espaço ‘Cartaz dos Cinemas’, manifestando ainda o desapontamento e discordância pela orientação dada recentemente “a certas notícias de estreias publicadas no jornal de VV. Ex.as, porque consideramos que não é aceitável que nas mesmas se desacreditem os espectáculos.”
A mesma carta considerava ainda que a “crítica cinematográfica exercida com independência absoluta e sujeita a controvérsias de outros técnicos, está lógica e naturalmente reservada à imprensa da especialidade”, não sendo admissível que isso aconteça numa publicação diária e generalista.
De facto, a “crítica” a que José Gil se referia não era mais do que publicidade indirecta patrocinada pelos distribuidores e exibidores, como relata Lauro António: “Existia uma resenha efectuada normalmente por um velho jornalista que percorria as salas com filmes em estreia, pedia o programa com o resumo do argumento, via quinze minutos, e desandava para outra sala ou regressava à redacção para escrevinhar algumas linhas assinadas por iniciais que normalmente não correspondiam a nada.”
Antes de 1968, a generalidade dos textos publicados na imprensa portuguesa não eram assinados pelo jornalista responsável. Geralmente, os textos eram assinados com iniciais ou sob um pseudónimos recorrentes na época: a palavra Visor seguido de um número ou inicial. Na pesquisa efectuada no Diário de Lisboa durante os meses de Setembro e Dezembro de 1967, os textos eram assinados por diversos “visores”: Visor 60, Visor 96, Visor 35, Visor 087, Visor 33, Visor 888, Visor A, Visor 13. Outras vezes, o uso de alguns pseudónimos denunciava uma intenção irónica ou sarcástica do próprio autor: por exemplo, numa altura em que os filmes de espionagem de James Bond 007 eram os principais sucessos de bilheteira, um dos textos aparece assinado por Visor 006,5 (zero, zero, seis e meio). Em relação aos textos propriamente ditos, alguns eram muito semelhantes ou mesmo iguais aos publicados noutros jornais, sendo frequente que se “inspirassem” ou simplesmente transcrevessem os textos fornecidos pelos distribuidores ou exibidores.
Lauro António (1942-) era um jovem cinéfilo com apenas 25 anos, mas tinha já um passado bastante activo no movimento cineclubista (membro do Cineclube Universitário de Lisboa e dirigente do ABC Cineclube) e já alguma experiência enquanto crítico: tinha-se iniciado com 19 anos na página temática Bastidores do jornal A República, sob coordenação de Baptista-Bastos, onde escrevia “à borla”. Depois passou pela revista Rádio e Televisão, onde recebeu “guia de marcha” por defender um filme italiano e ser acusado por um leitor de ser “comunista”, e passara ainda pela revista Plateia, onde escrevia sobre realizadores e entrevistava personalidades.
Eduardo Prado Coelho (1944-2007) tinha então 23 anos e não tinha um passado público na crítica cinematográfica. Filho de um prestigiado professor catedrático da Universidade de Lisboa, colaborava no suplemento Diário de Lisboa Juvenil como escritor e critico literário desde os 15 anos.
Entre o dia 29 de Fevereiro e 2 de Março, o Diário de Lisboa publicou diversas mensagens de apoio à sua atitude e de repúdio à intimidação da Cineasso, entre as quais uma assinada por diversos jovens cinéfilos que entretanto também tentavam mudar o cinema português:
No dia 14 de Março, após duas semanas de boicote, o Diário de Lisboa publica uma nova carta da Cineasso, reclamando um direito de resposta
“necessário [para] trazer igualmente ao conhecimento público o esclarecimento do que foi julgado atentório da liberdade de criticar”.
A Cineasso acabou por ceder à pressão pública e tudo voltaria, gradualmente, ao normal. No entanto, a publicidade mais rentável, os cartazes ilustrados, só mais tarde voltariam a ter a regularidade que se verificava antes do boicote.