Depois de se debruçar sobre os horrores dos campos de extermínio da Segunda Guerra Mundial, em Saul fia (O Filho de Saul, 2015), no seu novo filme, Napszállta (Anoitecer, 2018), László Nemes retrata a corrupção moral na queda do Império Austro-Húngaro, no alvor da Primeira Guerra Mundial.
Na linha de Shoah (1985) de Claude Lanzmann, que considera a “catástrofe” judia como algo inominável ou indizível, Saul fia retrata a história de Saul (Géza Röhrig), membro do Sonderkommando do campo de extermínio Auschwitz-Birkenau, posição polémica, muitas vezes associada ao colaboracionismo, assumida por prisioneiros que eram forçados a executar funções, recusadas pelos nazis, que não implicavam directamente o extermínio, como a limpeza das câmaras de gás e a cremação dos cadáveres. Por meio de sucessivos travellings, Nemes coloca a câmara atrás da nuca de Saul e à sua volta surgem traços de um mundo desfocado, como uma porta entreaberta por onde apenas passa uma amálgama de sons e imagens deformadas. Saul fia é um filme de amores e ódios extremados, principalmente devido a questões relativas à representação do Holocausto que o filme de Lanzmann parecia ter clarificado. Napszállta acompanha Saul fia na exploração do mesmo dispositivo formal, um enquadrando a “solução final” para o anti-semitismo e o outro virado para a queda da aristocracia, libertando-se das muitas delicadas problemáticas de índole moral.
Napszállta vive assombrado pela história da arte e pelas aparições fantasmáticas que surgem reanimadas pelo desfocado da imagem e por um rigoroso desenho sonoro.
Citando L’ancien régime et la révolution (1856) de Alexis de Tocqueville, em The Origins of Totalitarianism (1951), Hannah Arendt estabelece uma analogia entre a queda da aristocracia e o anti-semitismo. Arendt aponta que o povo francês começou a odiar os aristocratas, quando perderam o poder, porque isso não correspondeu a qualquer redução nas suas fortunas. Enquanto os nobres dispusessem de um vasto poder, não só eram tolerados como respeitados. Ao perderem os privilégios, e entre eles o privilegio de explorar e oprimir, o povo descobriu que eram parasitas, sem qualquer função real na condução do pais. Do mesmo modo, o anti-semitismo alcançou o seu auge quando os judeus perderam as funções públicas e a influência, quando apenas lhe restava a riqueza. Seguindo este raciocínio, Arendt conclui que o que faz com que os homens obedeçam ou tolerem o poder e que, por outro lado, odeiem aqueles que dispõem da riqueza sem o poder é a ideia de que o poder tem de ter uma determinada função e uma certa utilidade geral. Os filmes de László Nemes, nomeadamente as duas longas metragens que o tornaram num favorito e premiado nos festivais de cinema, podem ser situados nestes pontos da História em que grupos impotentes, ou em processo de perda do poder, são perseguidos e eliminados. Se existissem dúvidas, em Napszállta há a matança na festa dos aristocratas e, ainda melhor, o plano final em que a câmara percorre a trincheira até parar no rosto de Írisz Leiter (Juli Jakab), já assumindo o papel de vingadora das classes desfavorecidas, numa evocação da Primeira Guerra Mundial, deflagrada pelo assassinato, perpetrado por um estudante sérvio, do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro.
No começo de Napszállt, Írisz Leiter regressa a Budapeste, à chapelaria Leiter fundada pelos pais, para responder a um anúncio de oferta de emprego. Um surpreendente incêndio faria com que a chapelaria mudasse de donos, mantendo o nome e a clientela endinheirada, a aristocracia proveniente das capitais do Império Austro-Húngaro, desde Viena a Budapeste. A recusa em considerarem a oferta de emprego devido ao seu apelido, adensa um mistério, em que se descobre a existência de um irmão e de uma rede de corrupção moral de que faz parte a casa Leiter, que alimentava as excentricidades criminosas da aristocracia imperial, mesmo na época em que os pais eram os proprietários. O enquadramento detectivesco é apoiado por uma reconstituição de época cuidada que nas mãos de outro realizador poderia desembocar na intragável nostalgia do pastelão académico. No entanto, a codificação dos géneros é totalmente engolida pelo reconhecível dispositivo formal que Nemes repete, uma marca de que em Napszállta ainda explora potencialidades, mas que a manter-se poderá rapidamente desembocar na exaustão. Napszállta vive assombrado pela história da arte e pelas aparições fantasmáticas que surgem reanimadas pelo desfocado da imagem e por um rigoroso desenho sonoro.
A reconstituição da queda da casa Leiter é feita por Írisz numa reconstrução temporalmente linear, como se refizesse um puzzle da sua história pessoal que teima em se desfazer nas suas mãos, a partir de relatos do que é público e de segredos que se escondem a sete chaves no domínio privado. Como no trabalho que Félix González-Torres (1957–1996) desenvolveu para a sua série de puzzles protegidos por sacos de plástico contra o esquecimento e a dispersão, não existe uma fronteira definida entre o privado e o público, mas antes uma fragmentação que aponta para a fragilidade da memória. A câmara segue de perto Írisz Leiter por corredores, entre portas fechadas e entreabertas, que barram a entrada em compartimentos de onde saem murmúrios que se ouvem como se estivessem perto do seu ouvido, numa leve cacofonia que desrespeita a hierarquia dos sons, entre o que é gritado ou sussurrado.
O resultado, com a sua calculada dose de claustrofobia, é um mundo disfuncional que aspira ao desaparecimento de qualquer noção de profundidade de campo, tanto suscitada pela ordem visual como pela ordem sonora. Há planos totalmente desfocados em que vem à memória a importante obra pictural de Gerhard Richter (n. 1932), nomeadamente as pinturas que criou nas décadas de 1960 e 1970, a partir de fotografias a preto e branco, coleccionadas, como no caso de Félix González-Torres, maioritariamente a partir de arquivos particulares e de meios de comunicação. Em Richter, eliminando “o excesso de informação sem importância”, o efeito desfocado nivela a importância dos motivos, “tornando tudo igualmente importante e igualmente sem importância”. Este vórtice, que em Napszállta absorve o artificioso rendilhado da exuberante reconstituição histórica, ora espreitando, ora obscurecendo, mesmo que distorça a claridade da imagem, é das coisas mais fascinantes que László Nemes nos oferece, numa bela metáfora da luta contra a degradação da memória pessoal de Írisz Leiter, quando justaposta com a história colectiva do povo húngaro.