Ayka é o segundo filme em dez anos do realizador cazaque Sergei Dvortsevoy. Tão longo intervalo gerou maior expectativa sobre o que faria a seguir, como se da interrupção de um silêncio tão prolongado se guardasse algo para dizer de extremamente importante. Não podemos garantir que Ayka seja de igual importância para todas as pessoas, mas o tema deste filme é de valor universal. Ayka é sobre o instinto de sobrevivência do ser humano, e o plano de abertura do filme é a esse título belo e elucidativo. Um enquadramento apertado sobre um carrinho de maternidade dá conta da trepidação do movimento e das diferentes expressões de quatro recém-nascidos: um dorme, o outro boceja, outro mostra ar surpreso, e ainda outro que chora. Acabados de nascer, os pequenos seres agarram-se à vida e à nova atmosfera ondem passaram a respirar. Uma das crianças é filha de Ayka, que à primeira oportunidade foge da maternidade, deixando para trás o bebé.

Ayka (2019) de Sergei Dvortsevoy.
Entramos na vida de Ayka como num fluxo ininterrupto. A sua correria permanente não é para fugir de algo ou de alguém, mas para ir em busca da sua subsistência. A gravidez disfarçada de doença, sabemos mais tarde, custou-lhe o último trabalho. Agora, duas semanas a depenar galinhas rendem zero; as mulheres acabam enganadas pelo encarregado. A situação de Ayka, que aluga um canto de uma habitação devoluta partilhada com um grupo de imigrantes ilegais como ela, de desesperante torna-se ainda mais desesperante. Ayka, saberemos igualmente mais tarde, é uma mulher acossada pelos que lhe emprestaram dinheiro para começar um pequeno negócio de costura, dinheiro que se gastou e a rapariga não tem condições de pagar aos usurários. Ayka não tem repouso, leva a sua vida desperta literalmente sem fôlego, e ainda não entrámos no nível da consciência desta mulher. Ela vive cercada por problemas práticos, em busca de dinheiro, alimentando-se de chá e de comprimidos.
O retrato está feito e não é bonito. A questão essencial passa pelos limites daquilo que nos permitimos ver representado no cinema. Até onde suportamos que um filme escave na existência humana.
Deu-se a coincidência de na mesma semana em que vimos Ayka, termos visto também o último filme de Jordan Peele, Us (Nós, 2019). O pesadelo que Peele cria em sentido metafórico ganha uma existência real no filme de Sergei Dvortsevoy. Os imigrantes ilegais, cuja existência comunitária só é do conhecimento deles e de quem os explora, são os “ligados”, e o filme de Dvortsevoy liga-os a nós espectadores. Entramos numa realidade brutal e desconhecida que o filme entrega sem concessões, a câmara de Dvortsevoy fazendo corpo com a protagonista, acompanhando-a até aos locais mais esconsos e sujos do seu quotidiano de sobrevivência. A dada altura Ayka vai substituir por tempo curto uma sua conterrânea que faz limpezas numa clínica veterinária. A leitura política é clara, quando observamos os clientes e os seus bichos de companhia mais bem cuidados que muitos seres humanos como Ayka. E particularizando só nesta jovem mulher, a cadela que sangra e amamenta a ninhada antes da cirurgia é um retrato das manifestações fisiológicas que Ayka tem de reprimir. Ela que vemos sangrar em consequência da fuga prematura pós-parto, suar de esforço, chorar de dor, ou espremer o leite que deveria dar ao bebé abandonado.
O retrato está feito e não é bonito. A questão essencial passa pelos limites daquilo que nos permitimos ver representado no cinema. Até onde suportamos que um filme escave na existência humana. Os cinco dias da vida de Ayka que iremos acompanhar, tão colados a ela como a objectiva do realizador, vão bem fundo na crueza e na brutalidade de uma realidade tantas vezes anónima porque desligada de “us”. Mas isso não é razão de lei para valorizar esta realização de Dvortsevoy, tão mais importante pelo seu apego à vida feito cinema. E quanto à consciência de Ayka a que aludimos, será matéria para os momentos derradeiros do filme, e deixamo-la em suspenso. Aliás, em concordância com a decisão do realizador.