Nesta prescrição, o médico receitou apenas 2 comprimidos: uma pílula para o terror social de Jordan Peele e uma cápsula revestida para o documentário vencedor do Oscar, Free Solo (2018). Não tomar de estômago vazio e sempre acompanhado de um copo cheio de água.
Us (Nós, 2019) parece-se com aqueles mágicos que fazem muitos gestos com as mãos e dizem mil e uns abracadabras para depois o truque redundar em nada que não vimos antes vezes sem conta. Não podemos, portanto, dizer que o segundo filme do realizador do interessante Get Out (Foge, 2017) seja como uma “montanha que pariu um rato”, porque, simplesmente, nunca chega a haver montanha nenhuma. Damos-lhe um certo “benefício da dúvida” no prólogo minimamente inquietante – a rapariga que dá de caras com um doppelgänger numa casa de espelhos. Depois, Us não levanta voo, porque não sabe o que fazer dramaticamente com a matéria que tem em mãos. A apresentação das personagens é apressada, quase ansiosa, acabando por ser, depois, completamente abafada pela intriga mirabolante na qual dificilmente embarcamos com medo do destino desta família (personagens e actores insossos).
Jordan Peele tinha posto a América racista a ver-se ao espelho com Get Out e lança-se para este Us com o intuito, nunca muito lúcido, de transformar uma história de perseguição paranormal/metafísica, “deles pelos seus duplos”, numa vaga parábola sobre o clima de paranóia e destruição societal que se vive na América. É tímida, aqui, a incursão no “terror político”, porque Peele quer ser um metteur en scène. A montanha de falta de ideias por trás de cada sequência de acção/terror é, contudo, confrangedora. O filme vai sendo consumido por um somatório de situações dramáticas, com uma certa inclinação para a complicação desnecessária ou pretensiosa do enredo, sem qualquer ideia sólida de cinema – nada, nem um movimento de câmara, nem um pico dramático que nos desperte os sentidos. As comparações com Hitchcock são absurdas, mas as comparações com Shyamalan não são tão despropositadas. A diferença radica no seguinte: o imaginário de Peele é limitado, a sua câmara é indiferente na acção e as personagens são tão robotizadas como os seus actores. No limite, este não passa de um Shyamalan sem tomates e sem pingo de audácia. Um epifenómeno no actual quadro do cinema “independente” americano.
Luís Mendonça
Não é expectável, nem normal, que um simples documentário sobre uma proeza desportiva, ainda por cima tratando-se do mais recente vencedor do Óscar para melhor documentário, contenha afinal esta complexidade e surpreenda pela diversidade de temas que aborda. É verdade que é uma proeza extraordinária aquela a que Alex Honnold se propõe, de escalar uma parede quase vertical da formação rochosa conhecida por El Capitan sem qualquer rede de segurança, que seria só por si façanha suficiente para um documentário interessante do género de Man on Wire (Homem no Arame, 2008) de James Marsh. Porém, a forma solitária como Honnold se dedica a essa tarefa, a necessidade vital de assim o fazer e afastar-se das pessoas que o rodeiam para enfrentar a sua mortalidade abre uma janela sobre a mente de Honnold e as suas motivações. Honnold é uma figura fascinante, uma espécie de eremita moderno que vive um estilo de vida despojado, alguém que é capaz de proezas físicas impressionantes, que desenvolve a perseverança mental para o conseguir, mas que revela ser incapaz de ajustar-se a uma vida normal ou de envolver-se emocionalmente e exprimir afectos – um exemplo: “No one in any part of my family has hugged during all my formative years. I had to teach myself how to hug when I was, like, 23 or something”.
O filme explora então a vários níveis complexos esse contraste, tentando desvendar qual a origem desta atracção por vencer sucessivamente o abismo, e até que ponto esse desligar emocional é necessário para Honnold atingir as suas proezas quase suicidas – repare-se na forma como o filme retrata a forma como a aproximação da namorada cria tensão e perturba a sua preparação. Será que, perante um novo contexto emocional, a necessidade permanente de realçar a própria existência perante uma fragilidade física é colocada em segundo plano, e a fronteira entre o risco, a obsessão e a preservação, é movível? Depois, num toque que certamente deixaria Werner Herzog orgulhoso, num estudo do efeito da influência externa que um documentarista pode ter sobre o seu tema, o próprio filme coloca em consideração até que ponto o seu interesse por Honnold é perverso, no sentido em que pode encorajá-lo a prosseguir uma escalada perigosa e até afecta-lo ou perturbá-lo no sucesso da sua subida. A partir de certo ponto a simples presença das câmaras é problemática, não só pela influência sobre o estado mental de Honnold, mas também pela natureza do interesse em acompanhar uma demanda possivelmente mortífera – e aqui até o espectador como testemunha voluntária é posto em causa. Honnold chega a considerar que preferia escalar a montanha sem ninguém saber – se um alpinista de elite escala uma montanha no meio de uma floresta mas ninguém vê, será que acreditamos? E se cair? Esta é uma encruzilhada que Free Solo tenta desvendar num final empolgante, mais vibrante do que muitas sequências de acção de filmes recentes.
João Araújo