Se a mulher quiser ser homem
e homem ser a mulher,
Que importe se tudo junto
E um pouco mais misturado
Não vem a ser mais gostoso
E menos banalizado?
António Botto, «Caderno proibido»,
in O Mundo Gay De António Botto de Anna M. Klobucka
Gabriel Abrantes é um desses realizadores com uma produtividade que quase nenhum outro realizador nacional consegue acompanhar (só talvez Salomé Lamas). Por isso mesmo o conjunto das suas obras vai-se torneando elegantemente à medida que faz os seus filmes (à cadência de dois por ano, mais coisa menos coisa), iluminando facetas que se supunham escondidas e ultrapassando fixações antigas. Por exemplo, olhando para a obra completa de Abrantes percebe-se que há um momento de viragem (viragem essa que não só é narrativa, é também, e acima de tudo, estética) marcado pelo filme Ennui Ennui (2013).
Embora haja uma oscilação entre as duas velocidades da sua obra, é evidente que a introdução de efeitos digitais, a apropriação de uma estética vinda do mainstream norte-americano (e da cultura popular como um todo, do O.C. ao Herzog, dos irmãos Farrelly a Michael Bay), a claridade das histórias e dos planos e enquadramentos, a introdução da sátira e do humor enquanto instrumentos de reflexão sobre os grandes dilemas da contemporaneidade (a tecnologia, os instintos, a sexualidade e agora a identidade de género e o drama dos refugiados) marcaram uma cisão (não total, é certo) com a primeira fase da sua obra, mais próxima da vídeo-arte e da performance filmada. E a juntar a tudo isso, há também um trabalho sobre os géneros cinematográficos (o documentário, o terror, a comédia, a ficção-científica, o filme de época, o filme etnográfico e a lista podia ir seguindo) que surgem sempre miscigenados pelo olhar pop da cultura e do cinema de Hollywood. Diamantino (2018) funciona, de certo modo, como a conclusão (ou pelo menos a culminação) dessa nova vida. Mais não seja por se encontrarem aqui várias recorrências dos seus trabalhos em metragem curta.
Em Diamantino temos um subplot dedicado a uma agência de espionagem que opera drones para a frente e para trás e uma conspiração que envolve um laboratório genético escondido e a clonagem de uma estrela do futebol. No fundo, encontram-se aqui momentos, soluções ou atmosferas que já vinham de filmes como: (1) Ennui, em que o personagem principal era, nem mais nem menos, um drone, daqueles que bombardeiam o Afeganistão mas que têm remorsos e daddy issues com o seu operador, Barack Obama; (2) Os Humores Artificiais (2016), em que, de novo, o protagonismo ia para uma inteligência artificial flutuante virada para o stand up que se apaixona por uma indígena da Amazónia (em Diamantino, o alvo do desejo é uma rapariga lésbica de Cabo Verde a tomar uma identidade masculina); (3) também The Hunchback (2016) trabalhava a ficção científica, desta feita uma realidade virtual em que os humanos do futuro poderiam desfrutar um reencontro com a Natureza e as suas origens transformando-se em primários aldeãos medievais, autênticos cepos; (4) assim como Freud und Friends (2015), um mockumentary protagonizado por “Herner Werzog” aos confins do subconsciente artístico (do próprio Abrantes), de onde origina grande parte da componente onírica de Diamantino – só que agora em vez de tamboris cantantes que aparecem do meio do nada, são cachorrinhos felpudos que pululam no relvado do estádio de futebol (e a paródia televisiva desse filme encontra também reflexo no programa de Gisele, interpretada por Manuela Moura Guedes).
Diante de Diamantino a nossa postura de espectadores moralizantes é posta em causa sucessivamente, até que no final só há lugar para a empatia.
Diamantino começa realmente como paródia ou sátira (dependendo do grau de acidez que se lhe quiser atribuir) da maior estrela do futebol português contemporâneo. E o retrato começa na caricatura – como aliás grande parte dos trabalhos anteriores do realizador, que vem brincando com personagens históricas como Manet, Brancusi ou Vaz de Camões, ou da modernidade, o já referido Obama ou Justin Bieber. De facto, o realizador recupera Carloto Cotta no papel de Diamantino, de modo não muito distante dos personagens que já desempenhara em The Hunchback, Freud ou mesmo Fratelli (2012). Isto é: o tal papel de cepo – que, segundo o dicionário Priberam, tem como sentido figurado “pessoa estúpida que não serve para nada.” Só que esse cepo acaba por se revelar algo muito mais tocante e sensível do que uma primeira impressão poderia conceber. Como referiu o realizador na apresentação do filme na abertura do QueerLisboa: “este é um filme sobre uma pessoa tão cândida, tão naif, que se permite experimentar coisas para as quais nenhum de nós teria disponibilidade”. E esse é o grande achado do filme, próprio de uma metragem mais larga: dar espaço à sua personagem para sair da mera caricatura (que dada a sua força é algo difícil e nunca totalmente conseguido), mostrando-se afinal figura doce e romântica (como Humores Artificiais já ensaiara), num romantismo de derreter corações.
E é aqui que convém centrar o olhar: na ambiguidade que o filme sempre trabalha entre o brincar e o levar-se a sério, entre o conteúdo político e a simples rêverie surrealista, entre a paródia e a sinceridade para com o seu protagonista. É exactamente nessas áreas cinzentas que o filme parece deliciar-se, deixando o espectador sempre em riste, incerto se será de mau gosto fazer piadas sobre os refugiados ou ridicularizar o sotaque madeirense. Mas é aí que Abrantes e Schmidt encontram o seu espaço, trabalhando no gume da navalha do agora tão propalado “politicamente correcto”. Mas se se observar o filme atentamente percebe-se que grande parte das suas saídas humorísticas têm um enorme poder disruptivo que parte sempre da posição do espectador, isto é, quase sempre rimos-nos juntamente com os “maus” da fita. A nossa postura de espectadores moralizantes é posta em causa sucessivamente, até que, no final, só há lugar para a empatia.
E é chegada, finalmente, a hora de referir a epígrafe de Botto e a forma como Diamantino trabalha os papeis de género. A este respeito recordo um brilhante ensaio de Rebeca Bell-Metereau, intitulado Hollywood Androgyny, em que a autora trabalha as formas como o cinema norte-americano mudo, clássico e posteriormente o cinema dos anos 1960 e 1970 retrataram personagens que assumem papeis de troca de géneros (nomeadamente através do travestismo). Segundo Bell-Metereau existem duas categorias para a representação de figuras travesti, “o tratamento aberto que expande as nossas possibilidades, levantando mais questões que respostas; e o veículo fechado que estabelece fronteiras identificáveis e resolve ambiguidades”. A investigadora explica, de forma mais explícita, o que caracteriza cada uma destas categorias. Na forma aberta o travesti é mais “convincente” e o humor mais subtil e ambíguo – o espectador ri porque ele próprio tem dificuldade em lidar com a feminilidade/masculinidade do personagem que ele sabe ser fisionomicamente do sexo oposto, ao que se junta o conhecimento extra que o espectador tem sobre as outras personagens, criando-se assim um jogo de antecipações que encontra o humor na situação e na construção das tensões e no acumular dos enganos. Isto por oposição à forma fechada no qual o travesti toma a forma de uma ‘matrafona’. Aqui o espectador ri-se da figura, surgindo o humor de uma forma de humilhação e ridicularização.
Diamantino encara a androginia do seu protagonista e o travestismo da sua namorada da forma mais aberta possível, quebrando todas as fronteiras e deliciando-se nas ambiguidades – como diria Botto, é aí que é “mais gostoso”. O filme de Abrantes e Schmidt trata a questão da androginia/travestismo de dois modos distintos: o primeiro, e mais clássico, a personagem que necessita esconder a sua verdadeira identidade, neste caso uma rapariga lésbica de Cabo Verde que se faz passar por um rapaz refugiado, com vista a infiltrar-se na casa do jogador e assim averiguar de uma possível lavagem de dinheiro; o segundo, mais complexo, prende-se com a alteração genética de Diamantino (devido a experimentações científicas que fazem no seu corpo, no âmbito de uma acção do Ministério da Propaganda de um estado luso-nacionalista) que o transforma numa pessoa hermafrodita (crescendo-lhe mamas, que ele apelida de “carocinhos”). Se num caso a mudança de identidade tem o objecto de ocultar, no outro trata-se do seu oposto, de revelar.
Mas o mais interessante é que a “transformação” de Diamantino completa-se numa noite de lua cheia, o que me recorda algumas das leituras queer feitas sobre os filmes de monstros da Universal, nomeadamente esta sobre a figura do lobisomem onde se pode ler, e passo a citar: “women are mutable and ‘unstable’ in ways that men are not (they bleed on a monthly basis, and change shape during pregnancy), when a man turns into a wolf, he exhibits a similar instability and this feminizes him”. E é nessa noite de lua cheia, quando Diamantino se feminiza – literalmente, e não metaforicamente como o lobisomem – que Rahim, o seu pretenso filho/filha hétero/lésbico, se consegue finalmente apaixonar pelo seu pai/mãe adoptivo/a /amante – “mais misturado (…) e menos banalizado.” E esta união só me faz lembrar de um outro filme (e peço desculpa pela escrita esfrangalhada, mas o próprio filme favorece este tipo de divagações), Rita ou Rito?… (1927) de Reinaldo Ferreira que termina, nem de propósito, com a união (à porta da igreja) entre uma mulher travestida de homem e um homem envergando a black face do seu empregado, ou seja, um casamento pela igreja entre dois homens de etnias e classes diferentes. Essa semelhança entre dois filmes que distam mais de 90 anos diz muito sobre o humor de Abrantes e Schmidt: o slapstick do mudo agora tomado por uma pertinência política perfurante.
E muito haveria ainda por dizer sobre as sequências de crucificação de Diamantino, a utilização plástica da imagem feita pintura impressionista, a referência à ascensão dos movimentos de extrema-direita, ao poder da publicidade e da apropriação irónica do cinema como ferramenta propagandística…