Faa yeung nin wa (Disponível para Amar, 2000) é, provavelmente, o mais conhecido filme de Wong Kar-Wai e é comummente aclamado como uma obra-prima do cinema. A Cinemateca Portuguesa passa-o este sábado numa double bill com Brief Encounter (Breve Encontro, 1945), de David Lean, duas películas sobre a renúncia de amores maiores vividos com o tempo contado.
À primeira vista, não se passa grande coisa em Disponível para Amar, uma história de amor não consumado entre dois vizinhos cujos cônjuges são amantes. Vemos a Sra. Chan/Su Lizhen [Maggie Cheung, que interpretara uma personagem homónima em Days of Being Wild (1990)] e o Sr. Chow (Tony Leung Chiu-Wai) a conhecerem-se quando alugam quartos no mesmo andar. Vêmo-los nos seus respectivos empregos de escritório (ela é secretária, ele trabalha num jornal). Vêmo-los em casa. Vêmo-los a comer. Encontram-se, conhecem-se, separam-se. Sabemos que falam mas pouco do que os ouvimos dizer são palavras suas, diálogos completos ou revelações. Quase tudo fica por verbalizar, quase tudo por ver. Uma das coisas que os (re)une ao longo do filme é a composição de histórias wuxia – que ele escreve nas horas vagas e onde ela colabora –, mas não sabemos do seu conteúdo. Projectamos um mundo de fantasia indefinida, com alguns ecos poéticos com a sua relação impossível.
O conceito inicial de Disponível para Amar nada teve a ver com o que veio a ser o filme. Começou como uma ideia para três histórias sobre comida, das quais apenas uma acabou por ser desenvolvida. A inspiração inicial foi um conto de Liu Yichang – dos nomes maiores da literatura de Hong Kong –, e embora o resultado final não seja uma adaptação, são citações de Liu os intertítulos do filme. Momentos culinários continuam a ter grande importância no filme, sobretudo como pretexto para interacção entre os protagonistas, e a forma como alguns pratos são preparados e consumidos é um dos elementos que contribui para situar o filme numa época específica. Os pouco mais de 90 minutos de estado de graça resultaram de quinze longos meses de rodagem sem argumento. Wong e os directores de fotografia – inicialmente Christopher Doyle e depois Mark Lee Ping-bing, colaborador habitual de Hou Hsiao-hsien – foram filmando e foi apenas a necessidade de apresentar o filme em Cannes que levou a que apressassem a montagem final. A rodagem demorou tanto – em parte devido a condicionamentos financeiros dos produtores, afectados pela crise asiática de final dos anos 1990 – que 2046 (2004), o trabalho seguinte de Wong com uma série de citações a Disponível para Amar (desde logo, o título), começou a ser feito ao mesmo tempo. Os limites cronológicos do filme também foram repensados pelo prolongamento. Inicialmente, era suposto a narrativa cobrir uma década, de 1962 a 1972, mas acabou por parar em 1966.
Também o título internacional, hoje icónico, não foi a primeira escolha. Wong queria chamar-lhe “Secrets”, mas Cannes terá dito que não, porque já havia muitos filmes com essa palavra no nome. Assim, os títulos originais de Disponível para Amar são inspirados em canções. O chinês vem de um tema cantado por Zhou Xuan, uma estrela de cinema chinês dos anos 1940: “花樣的年華”, que refere “um tempo de flores a desabrochar”. O título internacional foi escolhido por impulso quando o filme estava para ser submetido para Cannes. Wong encontrou o então último disco de Bryan Ferry com a cover de “I’m in the mood for love” e achou que mood era precisamente aquilo que procurava transmitir.
Música é um dos elementos essenciais para a atmosfera do filme. Assistimos ao breve encontro da Sra. Chan e do Sr. Chow e ao “desabrochar” dos sentimentos um pelo outro. Esse andamento é transmitido sobretudo pela inserção de alguns temas musicais, nomeadamente o muito repetido “Yumeji’s Theme”, composto por Shigeru Umebayashi para o filme japonês Yumeji (1991) de Seijun Suzuki, e alguns dos clássicos em espanhol de Nat King Cole – que Wong disse numa entrevista ser o cantor favorito da sua mãe.
A música não é, naturalmente, o único elemento na composição do mood. Na verdade, embora Disponível para Amar possa ser visto como uma espécie de melodrama romântico, Wong Kar-Wai imaginou-o como uma história de suspense – um filme Hitchcockiano. Na sua obra The Sensuous Cinema of Wong Kar-Wai (2015), Gary Bettinson lê o filme como uma peculiar história de detectives (o par a tentar “investigar” a relação dos cônjuges) e enfatiza a presença de iconografia associada ao cinema noir: telefones e campainhas que ninguém atende, cigarros fumados obsessivamente, chuvadas nocturnas.
Os breves encontros dos amantes relutantes servem um propósito bastante concreto, que é a recriação de um tempo e um lugar que pertencem à infância de Wong Kar-Wai e já não existem mais.
O mood desta relação é também criado pelos espaços. E aqui os breves encontros dos amantes relutantes servem um propósito bastante concreto, que é a recriação de um tempo e um lugar que pertencem à infância de Wong Kar-Wai e já não existem mais. Esse desaparecimento é, aliás, confirmado pelo facto de boa parte de Disponível para Amar ter sido filmado em Banguecoque, pois Wong não encontrou em Hong Kong lugares como os que pretendia. Esses espaços transmitem, tal como os qipao coloridos de Maggie Cheung, uma ideia de confinamento. Nos corredores apertados do prédio onde ambos alugam quartos, a privacidade é pouca e estão expostos aos mexericos dos senhorios e outros vizinhos. A rua não oferece muito mais espaço para respirar. São estreitas as escadas das vielas por onde ambos se desencontram enquanto a Sra. Chan vai comprar os seus noodles às bancas de comida. Uma vez é a chuva que os aproxima no limitado lugar de abrigo. E noutro plano ainda, as barras de ferro numa parede sugerem a prisão emocional em que se encontram – voluntariamente.
O amor dos dois protagonistas nasce da procura de uma explicação: o recriar do que imaginam ser a relação dos respectivos esposos, cuja traição é atestada por ausências coincidentes e ofertas materiais mal justificadas. Nunca os vemos. Os rostos do Sr. Chan e da Sra. Chow permanecem sempre escondidos e as vozes não têm rosto. “Não seremos como eles” – garantem, enquanto se tornam porventura mais do que eles. À sua volta a moralidade de fachada fica evidente. Ao mesmo tempo que se operam controlos sociais sobre as saídas frequentes da Sra. Chan e ambos se esforçam por evitar mexericos, vemos a realidade que os rodeia: o patrão dela com uma amante, o colega dele com a suas apostas, dívidas e idas ao bordel, a senhoria e as suas noites de mahjong. A respeitabilidade das aparências existe apenas nas desculpas que (imaginamos) dão a si próprios para não serem felizes.
Falámos nos espaços de um tempo evocado. Esse tempo é ele próprio um elemento essencial. Talvez em nenhum outro filme de Wong Kar-Wai – com a excepção de The Grandmaster (2013) – o contexto histórico tenha tanta relevância como aqui. Essa época, já só recordada como turva e indistinta visão de uma janela baça – como diz o intertítulo final – é aquela em que Wong cresceu: os anos 1960 em Hong Kong no meio da comunidade de migrantes de Xangai, que se mudaram para a colónia britânica no final dos anos 1940, durante a guerra civil chinesa. O filme passa-se quase todo em 1962-63, mas perto do final dá-se o crucial retorno em 1966. O contexto é apenas sugerido por algumas deixas, referências ao “caos” e às pessoas que se vão embora, como a ex-senhoria dela, a Sra. Suen, de partida para os Estados Unidos onde vai ter com a filha que está “preocupada com a situação em Hong Kong”. A situação eram os motins antibritânicos, parcialmente influenciados pela Revolução Cultural chinesa, que viriam a extremar-se em 1967. Vemos depois o intrigante excerto noticioso da visita de Charles de Gaulle ao Camboja em 1966 – poucos anos antes de uma guerra civil no país –, precedendo a cena crucial do segredo em Angkor Wat. Evocações de um mundo político desaparecido, mas ali decorativo, não propriamente essencial às vidas das personagens. Curiosamente, à estreia, Disponível para Amar até mereceu cobertura num dos mais importantes journals de história, The American Historical Review, onde foi elogiado pela sua rara capacidade de suscitar questões sobre “a natureza da periodicidade e mudança históricas e suas ligações a vidas individuais” nomeadamente na sua representação da memória. E as memórias têm uma importância particular no cinema de Wong Kar-Wai, como havíamos observado há uns anos aquando de uma retrospectiva no Lisbon & Estoril Film Festival.
Talvez, como o crítico e programador Tony Rayns observou, o filme se torne “um requiem por um tempo perdido e os seus valores”. Todavia, as cenas em 1966 sugerem a possibilidades de outra vida. Vemos a Sra. Chan voltar à casa antiga em Hong Kong com uma criança que – motivo de especulação cinéfila – talvez seja filho do seu amor perdido. Na verdade, Wong Kar-Wai filmou uma cena de sexo entre os dois protagonistas, que não incluiu na versão final. O quão platónico foi o seu romance fica, assim, um ponto de interrogação – um dos vários do filme – outros sugeridos pelo uso estratégico de “Quizás, Quizás, Quizás” de Nat King Cole. Mas é esse mistério, carpido de cores, silhuetas e feixes de luz, que dá ao filme boa parte do seu encanto. O tempo destes quase-amantes pode ter passado mas podemos achá-lo de novo de cada vez que voltamos ao filme de Wong Kar-Wai.
Disponível para Amar passa dia 27 de Abril na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, às 15h30, numa sessão dupla que começa com Breve Encontro.