A minha chegada a Las Palmas deu-se no dia 24 de Março por volta da hora do almoço. Depois da habitual logística de hotel e refeição, fui em direcção ao festival, um pouco ainda sem saber que filmes me esperavam. Escolhi por entre o bloco daquela hora o que mais me poderia agradar. A escolha foi conservadora é certo, mas num programa dedicado ao cinema feito por mulheres, calhou ver L’une Chante, L’autre Pas (Uma Canta a Outra Não, 1977) de Agnès Varda. Ainda sem a sombra da sua morte, Varda era no entanto um nome óbvio num programa que contava ainda com Chantal Akerman ou Larisa Shepitko. Confesso que esta, de entre aquelas que acabo de mencionar, não representa de todo uma das minhas predileções, assim como este filme está longe dos (poucos) que na sua filmografia me despertam maior interesse. No entanto, perpassa pela obra um enorme carinho e dedicação, sobretudo porque este é um filme de uma mulher, sobre mulheres, numa época de emancipação feminina, o que dá um certo pendor documentarista a este objecto e por isso o torna mais honesto.
No entanto, qualquer surpresa ou expectativa no festival de Las Palmas estava concentrada sobre o programa Panorama, inegavelmente a sua melhor secção. Reparo (e lamento) que no dia anterior o novo filme de Radu Jude, Îmi este indiferent daca în istorie vom intra ca barbari (I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians, 2018), fosse a escolha desta secção. No entanto a sorte compensou-me com o último filme de Hong Sang-soo, Gangbyeon hotel (Hotel by the River, 2018). Se poucos cineastas levaram tão à letra a ideia de que somente se faz um filme, cada declinação desse filme é um universo de uma enorme riqueza. A cada repetição de gestos – a presença dos cigarros ou o momento de êxtase sobre o efeito do álcool – no cinema de Hong Sang-soo, abre outras possibilidades de acção e encadeamento. Tal como um universo paralelo, cada filme reflecte sobre uma possibilidade deixada em aberto pelo anterior. Talvez por isso, o cinema de Hong Sang-soo aos poucos se esteja a tornar mais cru.
No dia seguinte e já apto a percorrer três sessões, houve uma secção que logo me interessou. A carta-branca dada aos cineastas Hélène Cattet e Bruno Forzani, dos quais infelizmente não pude ver os filmes, mas tinham como escolhas o Kanashimi no Belladonna (Beladona, 1973) do Eiichi Yamamoto ou o Profondo Rosso (Prelúdio para Matar, 1975) do Dario Argento. Dei início ao meu dia com o magnífico Kanashimi no beradonna (Belladonna of Sadness, 1973) de Shigeru Yamazaki, a terceira parte de uma trilogia de filmes eróticos de animação japonesa (Animerama), inspirado na obra de Michelet e composto por múltiplas técnicas de desenho que nos faziam emergir num universo psicadélico e fortemente inspirado na cultura punk.
De seguida regresso à secção Déjà Vu (secção este ano dedicada ao cinema feito por mulheres), para descobrir mais um filme e neste caso também uma cineasta, que, graças a uma prematura morte, a sua obra foi de certo modo eclipsada. The Juniper Tree (1990) de Nietzchka Keene conta com a presença de Björk no seu elenco – motivo que torna ainda mais incompreensível a invisibilidade desta obra durante tantos anos – e que representou uma agradável surpresa nesta secção de escolhas por vezes demasiado evidentes. A nova visibilidade da obra deveu-se ao restauro do filme – foi exibido na recente edição do festival do Roterdão – onde fez despertar várias atenções. Através de uma meticulosa fotografia a preto e branco e de um rigor formal notável, o filme adapta um conto dos irmãos Grimm sobre a história de duas irmãs que procuram a vida junto a um homem após a execução da mãe por bruxaria, única forma possível para uma mulher garantir o seu sustento e segurança em plena época medieval.
Por último, uma revisão de uma das minhas maiores obsessões cinematográficas, o Profondo Rosso (Prelúdio para Matar, 1975) de Dario Argento, num belíssimo restauro em digital e que no entanto me faz pensar que mesmo os festivais de cinema. que deviam constituir um exemplo de excepção na mostra do cinema, estão pejados de cópias e restauros em digital, tornando a exibição em película num facto do passado.
No terceiro dia de festival, começo com a descoberta de uma jóia do cinema espanhol da década de 40, Vida en Sombras (1948) de Lorenzo Llobet-Gràcia. Este filme, mais do que uma obra sobre o cinema, é um belíssimo testemunho sobre essa mesma paixão. Este, que começa com o inusitado nascimento da sua personagem principal numa sala de cinema enquanto os pais assistiam às imagens dos irmãos Lumière, todo ele se irá desenrolar posteriormente sobre esse signo. O trabalho, a vida e mesmo a morte da esposa, são parte de um universo incapaz de ser separado do cinema, algo que revela o carácter autobiográfico e a dedicação de Gàrcia a esta obra. A obra, que termina tal como começou, nas filmagens do primeiro plano do filme, depois de esperadas promessas de sucesso, infelizmente não teve o mesmo efeito em vida. Além das dificuldades com o franquismo e os códigos de censura, o filme foi mal recebido pela crítica e demoveu poucas atenções por parte do público, levando a carreira de Llorenç Llobet Gàrcia ao fim.
A escolha do segundo filme do dia recaiu sobre a competição oficial do festival, levando à descoberta de Savovi (Stitches, 2019) de Miroslav Terzic, que, a par do filme de Rita Azevedo Gomes, A Portuguesa (2018), eram os únicos filmes merecedores de algum tipo de atenção. Na tradição do novo cinema romeno, este filme de origem sérvia, narra a história de uma mulher inconformada com o desaparecimento do filho, dado como morto logo após o parto. Este filme situado na actualidade, pretende reflectir as marcas e consequências ainda presentes da ditadura comunista na sociedade.
Por fim, um outro filme da competição oficial, Casa Propria (2018) de Rosendo Ruíz, de origem argentina para o qual eu encontro pouco a dizer. Imbuído no espírito do cinema indie, este autêntico desfile de nada, conta um momento da vida do seu personagem envolto em situações banais, atingindo a resolução do seu drama existencial com o aluguer de uma casa. De uma típica misoginia das produções “masculinas sensíveis”, esta inexistência cinematográfica só detinha um rival a altura, o inenarrável The Mountain (2018) de Rick Alverson. Tendo sempre evitado a obra de Alverson, pude por fim comprovar pelos meus estóicos 30 minutos, a abjecção que esta obra e o seu cineasta eram. Fiel seguidor daqueles que desprezam a humanidade, Alverson aparantemente também despreza o cinema, sendo absolutamente inócuo tudo o que este “anti-filme” representa.
O meu quarto e último dia de festival começou com o filme Hattrick (2018) do cineasta iraniano Ramtin Lavafipour. Este, tal como grande parte da actual produção de cinema iraniano, é uma obra formalmente correcta, mas é, no entanto, um autêntico pastelão de classe média e de falsas desgraças. Tal como a obra de Asghar Farhadi, este filme é uma pálida sombra da complexidade de outros tempos em que o drama da obra de Jafar Panahi ou a poesia de Abbas Kiarostami eram o lado mais representativo de uma vitalidade do cinema iraniano.
De volta à secção oficial, o primeiro filme da cineasta chilena Karin Cuyul, Historia de Mi Nombre (2019), podemos descrevê-lo, como tantas outras tentativas do género, “de boas intenções está o cinema cheio”. Em busca do seu nome, Cuyul conta a história do seu país e dos seus pais enquanto membros da resistência chilena contra a ditadura de Allende. Entretanto, descobre que “Karin” era o nome de uma combatente, interrogada e torturada pela polícia militar. Entre o inexplicável enquadramento sempre limitado pela janela de um carro, o filme de Cuyul aos poucos ia perdendo a sua forma, entre imagens de arquivo caseiras e entrevistas intrusivas aos pais.
Por último, a maior desilusão de todo o festival, a primeira obra do cineasta chinês Lin Zi, Hai Shang Cheng Shi (The Fragile House,2018). Após o burburinho causado no festival de Locarno, assim como merecedor do segundo prémio no festival de Las Palmas, o filme de Zi é na verdade um objecto de um pretensiosismo insuportável e de um desnexo único. Não consigo compreender como é possível a um cineasta detentor de certo olhar e rigor formal, decidir, deliberadamente, arruinar o material bom do seu filme com truques para que este ganhe um suposto carácter “experimental”. The Fragile House tem de tudo, desde planos cortados em quadro, em rectângulo, ecrã total para logo voltar a uma tira à esquerda ou à direita, imagens em time-lapse, de telemóvel, a preto e branco e a cores, enfim, a confusão é tal que, de um argumento vazio, o filme termina também ele como um vazio.
Infelizmente a minha estadia foi curta, no entanto o Festival de Las Palmas contava ainda na sua programação com obras como Da xiang xi di er zuo (An Elephant Sitting Still,2018) de Hu Bo, primeira obra de um cineasta que pouco depois pôs termo à vida, e que no entanto nos lega uma obra extraordinária e de uma densidade rara no miasma contemporâneo; ainda a mais recente obra de Bi Gan, Di Qiu Zui Hou De Ye Wan (Long Day’s Journey Into The Night, 2018), que, não sendo equiparável ao seu anterior filme, é ainda merecedor de alguma atenção; a última obra de Claude Lanzmann, Les quatre soeurs (2018) ou ainda espaço para (re)ver o extraordinário Wanda (1970) de Barbara Loden ou Diaries Notes and Sketches (Walden, 1969) de Jonas Mekas.
Concluo salientando que a atribuição do prémio de melhor filme em competição à obra de Rita Azevedo Gomes, A Portuguesa (2018). Defendo que esta foi uma justa e indiscutível decisão, comprovando uma vez mais – enquanto o filme é ignorado deliberadamente por certos críticos portugueses e exibido timidamente pelas salas do nosso país (e sendo de forma machista colado à obra de Oliveira, demonstrando uma vez mais que em Portugal ser mulher é ainda ser “mulher de…”) – que este é capaz de obter o reconhecimento internacional do qual é merecedor. E de que a vida e obra de uma rara cineasta portuguesa passam ainda primeiro pelo reconhecimento externo e que só o tempo trará o justo (e tardio) reconhecimento interno, quando este era tão necessário no agora.