Agnès Varda, um dos maiores nomes do cinema mundial deixou-nos recentemente. Mas as suas imagens viverão connosco – através das nossas memórias cinéfilas, memórias de vida feita cinema – para sempre. Os walshianos juntaram-se para a recordar e homenagear. Para lhe dizer que continua aqui, presente.
A imagem de cima é de um dos filmes mais milagrosos da década dos zeros, Les glaneurs et la glaneuse (Os Respigadores e a Respigadora, 2000), o filme que trouxe de novo à ribalta aquela que é uma das personagens mais marcantes da Nouvelle Vague francesa; mas, para além disso, é também uma imagem de um outro filme da “avozinha punk” do cinema francês, Les plages d’Agnès (As Praias de Agnès, 2008), filme de memórias, de filmes e de momentos de vida. O que há de brilhante neste fotograma, não é ser um enquadramento daqueles que dá voltas à cabeça, ou ter tantos níveis de linguagem que nos perdemos pelo caminho. O que espanta é a profunda simplicidade. Mesmo o acaso do momento artístico: qualquer pessoa com uma câmara de mini-dv consegue ter uma imagem destas, basta deixar a cassete arrumada num canto e ela estraga-se por si mesma. Varda nada fez para além de se filmar, e enquanto qualquer outro pensaria que daquele incidente se perdiam alguns segundos de filmagem, Varda viu todo um potencial mesmo simbólico e metafórico para a força das handy-cams.
Mas o que me leva a escrever, neste momento de tristeza, é que Les plages d’Agnès, filme longe de perfeito, está cheio de uma alma, maior do que qualquer coisa que se tenha visto nas salas de cinema nos últimos anos [sendo que foi um comedido grande sucesso de bilheteiras no nosso país, estreou-se em Julho e esteve quase quatro meses em exibição contínua nalgumas cidades da capital; é coisa que poucos títulos têm direito, ainda mais filmes de autor(a)]. Varda foi, e é, uma senhora muito especial, desde cedo compôs o meu panteão de realizadores de cabeceira, logo ao lado de Éric Rohmer, ambos estão cheios de uma candura, uma pureza tão cheia de singularidades, uma paixão pelo cinema (e pelos seus personagens – especialmente nos documentários, solta-se amor e respeito sempre que ela entrevista alguém). Mas convenhamos que o ar pueril e a quase infantilidade de Varda na sua atitude perante o mundo e o cinema são apenas aquilo que aparece num primeiro contacto. Ela sempre esteve cheia de consciência social, pejada de conhecimento humano e transbordando compreensão. Há um outro momento no filme, retirado de Jacquot de Nantes (1991), em que Agnès filma Demy como se ele fosse uma paisagem, os cabelos como se fossem uma floresta, a pele do rosto como se fosse uma praia, os olhos como se fossem a lua. Só mesmo a sua “infantilidade” para ver o seu amado como um sítio que se pode visitar e viver. Os seus filmes são agora o território a que podemos voltar, paisagens ternas de uma terra doce onde as férias são lestas e os areais alvos.
Ricardo Vieira Lisboa
De toda a sua obra, irei sempre nutrir particular afeição pela Agnès Varda documentarista. E nesse contexto, não poderia deixar de participar nesta “retrospectiva” colectiva sem sublinhar Salut les Cubains: um filme homenagem de 30 minutos, em estilo fotomontagem, à Revolução Cubana que destaca, por inerência, as transformações humanas e sociais vividas por aquele país depois da chegada ao poder de Fidel Castro.
Maioritariamente composto por fotografias captadas pela própria Agnès Varda, Salut les Cubains fornece, contudo, e logo nos seus segundos iniciais, um fugidio (e, por isso, com ligeiro desfoque) vislumbre da cineasta, num semblante de curiosidade por tudo o que a rodeava. E, quem sabe?, numa busca permanente pela “imagem perfeita” para a consubstanciação dos ideais que a motivavam como artista. Uma característica que, do documentário à ficção, marcou sempre presença na vida e obra de Agnès Varda.
Samuel Andrade
Com a partida de Agnès Varda desaparece uma das maiores figuras da Nouvelle Vague (que o seu cinema anunciou), em particular, e do cinema mundial, em geral. Foi há meses que vimos o seu belíssimo penúltimo filme, Visages Villages (Olhares Lugares, 2017), com um olhar tão fresco como a segunda e memorável longa, Cléo de 5 à 7 (Duas Horas na Vida de Uma Mulher, 1962). O cinema de Varda é um cinema de vida, um cinema sobre a maravilha da vida. O extraordinário do quotidiano e dos/das que o constroem. Mesmo quando invisíveis aos olhos do mundo – como em Sans toit ni loi (Sem Eira Nem Beira, 1985) – não eram invisíveis aos de Varda, nem aos do que tiveram a feliz fortuitidade de conhecer o seu cinema. É um cinema onde o subjectivo e o experimental se interlaçam na perfeição com um diálogo com o mundo. Essa abertura aos outros está bem patente em Visages Villages, projecto de colaboração entre Varda e JR. Nas suas obras conjuntas de arte de rua, documentadas pela câmara de Varda, os dois artistas e o seu labor são celebrados em paralelo com as pessoas que encontram, cujos rostos e histórias captam e transmitem. São imagens de passado e presente, evocando a memória dos que já desapareceram e dos que permanecem e traçam o agora. Como noutros filmes de Varda, este é, em vários momentos, um trabalho onde é dada voz, visibilidade e respeito àquelas em que muitas vezes não pensamos – como as mulheres dos estivadores do porto do Havre. Varda é aqui o oposto do intelectual inalcançável – não é como o colega Godard, que a deixa pendurada na visita que ela lhe tenta fazer no filme. Ela aproxima-se das pessoas, mostra-lhes o quanto são maiores do que imaginam, e elas são co-criadoras dos retratos que, com JR, Varda vai construindo na sua peculiar road trip.
Villages Visages deixa perguntas, estimula conversas, convida a que voltemos ao filme em palavras ou (re)visionamentos. É um filme da arte como partilha que faz sentido a ser partilhado. O cinema de Varda é pessoal, mas nunca egoísta. Nascida na Bélgica, filha de pais franceses e gregos, Varda era de França e do mundo, e o seu cinema era um canto da humanidade, dos seus lugares e das suas possibilidades. Veja-se, entre tantos outros, a curta Salut les Cubains (1963). Essa viagem fotográfica-cinematográfica-musical a Cuba nos primeiros anos pós-revolução é mais do que o registo da atmosfera de um tempo histórico. Também ali Varda, a revolucionária lírica, a feminista, a mestre da espontaneidade, mostra mulheres erguidas e independentes – parte integrante daquele momento. No final, uma delas – a cineasta cubana Sara Gómez – dança, e a sua dança e risos tornam-se noutras imagens, imaginadas de forma diferente por quem as vê. Assim é o cinema de Varda: cheio de vida, de humanos, de liberdade.
Helena Ferreira
Por ser um filme que traz a morte nas entrelinhas de um périplo, Cléo de 5 à 7 (Duas Horas na Vida de Uma Mulher, 1962) afigura-se, nesta hora, como uma pouco subtil homenagem a Agnès Varda. Mas a verdade é que não consegui evitar o instinto da memória: quando soube da notícia do seu desaparecimento, primeiro veio o espanto abatido, e depois, em vez da luminosidade de Les plages d’Agnès (As Praias de Agnès, 2008), foi a anamnese deste delicado preto e branco que me lançou numa mental flânerie citadina. Saí do ar pesado do metro com a sensação de que as próximas horas me levariam à revisitação da angústia elegante de Corinne Marchand. E, por isso, no curto trajecto até casa senti sobre a pele o vestido negro da actriz e transportei-me para a Paris de 1960… Cléo de 5 à 7 é um filme que nos faz saborear a contagem do tempo segundo as leis de um desejo de viver, que funciona, até visualmente, como o negativo do medo da morte. Nessa magnífica película, Varda coloca a protagonista, mulher voluptuosa, diante dos espelhos, a observar-se e a ser observada. Porém, é quando esta começa a inverter o jogo – isto é, a olhar à sua volta – que sentimos a cineasta a enternecer o luto pela morte apenas prenunciada.
Tenho cá para mim que, antes do seu último fôlego, Varda também se passeou mentalmente pela Rue des Artistes, Pont-Neuf, Boulevard du Montparnasse ou pelo parque Montsouris. Não sei se teve medo da morte, como Cléo, mas de certeza que a fotografou com perfeição.
Inês N. Lourenço
Agnès Varda foi gigante, é gigante! E vai continuar assim, figura inconfundível, formada nos nossos espíritos como pessoa (muito pessoa), e como artista (muito artista). Fotógrafa, cineasta destemida, companheira generosa, de olhar gaiato, de olhar implicado, muito audaz. Parece que sempre foi assim. Artista, no tal sentido único de real, criadora que parecia estar no ponto certo de tudo, a inventar formas e a não parar. Mulher engagée, voz feminina, voz pré Nouvelle Vague, voz experimental, ficcional e muito documental, voz de um cinema inventivo sem rótulo.
Agnés Varda, mon amour, pessoa bem amada para muitos, que ficcionou lugares e pessoas; projectou a bonheur e a dor; fez-me tremer com
Cléo de 5 à 7, tão leve, tão intenso; correu por Paris, mostrou os olhos bonitos de Godard, a dor e a alegria; e como fórmula parecia dizer que perante o sofrimento é preciso ser um eterno flâneur, é preciso cantar e é preciso namorar! Clèo despertou a linha de um cinema aberto, altamente expressivo e significativo que perante a convulsão se abre e se dá. Varda auto-biografou-se, brincou, recriou as suas praias, reflectiu-se, auto-representou-se, evocou memórias, contou-se e contou os outros, homenageou os amigos, chorou…
Agora somos nós a homenagear-te! Merci, Varda, infinitamente, por esse olhar singular, essa liberdade, essa grande ‘’pessoa’’, esse cinema leve e profundo, vibrante e testemunhal; merci, pela tua joie de vivre, on t’adore!
À dança do cinema que um dia dançaste, super Agnès! Grande Varda!
Carlota Gonçalves.
O corpo de uma jovem mulher é descoberto numa vala. Morrera de frio. Na história real que levou Agnès Varda a querer fazer o filme, tinha sido um rapaz a morrer. Sans toit ni loi (Sem Eira Nem Beira, 1985) é um objecto notável, estruturado entre o falso documentário e a ficção em modo inquérito, que reconstitui as últimas semanas de vida de Mona Bergeron, na sua deambulação de quem se dá a muitos e a todos rejeita, com base nos relatos daqueles que a conheceram. Varda fez um longo trabalho de investigação sobre os sem-abrigo e a vagabundagem e integrou no filme algumas pessoas que conhecera nesse período e que se interpretam a elas mesmas.
Sans toit ni loi é formalmente livre e inspirado, pode sabotar o seu naturalismo a qualquer momento, e tem planos de um despojamento que faz lembrar o cinema de Robert Bresson. A realizadora não entrega nenhuma explicação sobre Mona e também não a vitimiza. A rapariga que da primeira vez que vemos com vida, sai do mar na sua única imagem de limpeza, fica progressivamente mais suja, sendo esse um factor que Varda aponta como causa de um maior preconceito social (a imundice, o mau cheiro) do que a própria condição de pobreza. Sandrinne Bonnaire tem aqui um dos seus papéis decisivos, mostrando uma verdade emocional feita de insolência como nunca mais se viu. Sans toit ni loi recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1985.
Ricardo Gross
Ao contrário de filmes como Les deux Anglaises et le continent (As Duas Inglesas e o Continente, 1971) de François Truffaut, onde a distância interpolada pelos anos, a idade, os humores da existência vão progressiva e fatalmente afastando os personagens uns dos outros, no filme de Varda tudo concorre (ao longo destes mesmos anos e idiossincracias de cada um) a realizar aquilo que já estava profetizado em Proust: que a arte (de viver também, acrescento eu) é uma promessa de felicidade. Os crepúsculos da vida sempre sugeriram auroras futuras como pretéritas, se o sujeito resistir ao presente envenenado e fincar pé. O início de L’une chante, l’autre pas traz-nos um suicídio, solidão e alienação suburbana a rondar a vida de duas recém-amigas: uma posa para fotos num atelier de daguerreótipo à antiga, tem filhos e parece muito mais velha do que é; a outra canta como se tudo se gestasse e gerasse ali, na escola, posa sem convicção para o daguerreótipo, mas é pela intensidade de seu olhar insolente que tudo começará a desestabilizar-se. E os entre tons da aquarela vão substituir-se por todo o filme aos espécimes acinzentados das saturninas fotos de atelier; com esta câmara instavelmente melíflua, que quer chamar a todos para participar da roda.
Travelling final sobre os rostos apaziguados, Varda possui este generoso dom de dar verosimilhança aos projectos mais absurdos de vida e de arte, de matizá-los de um nanquim delicado de fantasia quando tudo parecia perdido e entregue ao fatum mais cruel. Aborto, feminismo, alienação são aquela sobre dose de negativo de que a cineasta do bonheur se serve como mais-valia afectiva para edificar um projecto utopista de vida, aqui hippie e indissociável da arte. Viver para Varda é uma arte, como a arte de cuidar de filhos e encaminhar projectos existenciais também será. É o próprio filme que adquire uma forma ductilmente aberta e tumultuosa para poder abrigar as viagens e a instabilidade pluviométrica do humor das personagens. Como se L’une chante, l’autre pas devesse mesmo ser a plataforma para a afectividade destes encenadores existenciais, como se não houvesse vida melhor do que um plateau (de cinema) convertido em um filme único, com língua, dicção e embocadura próprias.
Luiz Soares Júnior
Foi apenas com Les glaneurs et la glaneuse (Os Respigadores e a Respigadora, 2000), perto da altura da estreia em Portugal e numa sessão de cineclube, que descobri o cinema de Agnès Varda, tarde mas ainda a tempo de ficar estonteado com a vitalidade do seu olhar e a empatia com que filmava as pessoas que resgatava das margens da sociedade para o centro do seu cinema. Aquelas pessoas, invisíveis e esquecidas, que viviam das sobras dos outros ou que davam uma segunda vida a objectos perdidos, eram iluminadas num acto de magia por uma Varda à descoberta das potencialidades de uma câmara digital. Depois, com Les plages d’Agnès (As Praias de Agnès, 2008) a confirmação de uma figura cândida e generosa, uma magnífica obra que celebrava a sua vida e que permitia que a partilhássemos de certa forma também como a nossa – tivéssemos todos a felicidade de poder olhar para trás para um legado e para uma vida do modo que Varda faz nesse filme.
Mais tarde, tive a sorte de assistir a Sans toit ni loi (Sem Eira Nem Beira, 1985) numa sessão apresentada pela própria no Porto. É um filme marcante pela diferença de tom, mais sombrio, que apresenta uma realidade crua e despojada de sentimentalismo, mas que mantém o mesmo interesse por uma personagem proscrita que definia a sua própria vida, que tanto tentava sobreviver nas margens que é apresentada logo no início do filme morta, abandonada numa vala ao lado de uma estrada, para a partir daí contar-se a sua história. Esta complexidade e constante reinvenção de normas é melhor exemplificada por uma curta-metragem, um cine-panfleto (“cine-tract”) em que Varda tenta responder à questão “o que é ser uma mulher?”: Réponse de femmes: Notre corps, notre sexe (1975), um filme com quase 45 anos que é ainda hoje actual. Em apenas oito minutos Varda mostrava como qualquer oportunidade era suficiente para causar um mini-terramoto, e mais do que um manifesto feminista, este é um manifesto humanista. Várias mulheres são filmadas a discursar de forma contundente e sincera sobre temas que Varda explora na sua obra: o papel da mulher na sociedade, a sua sexualidade, a objectificação do corpo feminino, a discriminação no trabalho, a maternidade. No fim, Varda apresenta como solução uma mensagem que vale sempre a pena recordar: reinventar o amor.
João Araújo