No primeiro plano de Kursk (2018), um rapaz – filho de um dos membros da tripulação do submarino epónimo – está imerso na banheira, enquanto olha atentamente para o relógio submarinista preso ao braço do pai, medindo o tempo tolerado com a respiração sustida. Como este rapaz que aguarda o momento limite em que terá inevitavelmente de emergir, muitas das personagens do filme estão à espera de algo (e é o primeiro dos méritos do novo filme de Thomas Vinterberg, explorando e oscilando equilibradamente entre os vários grupos que coloca em cena): a espera dos tripulantes em serem salvos, a espera das esposas em obterem informações sobre a condição dos maridos, e a espera dos ingleses em receberem a permissão para entrarem em manobras de salvamento.

Em 2000, o submarino nuclear Kursk, após um par de explosões internas provocadas pelo arsenal militar mal estabilizado que transportava num exercício naval, esteve vários dias afundado no mar de Barents com 23 sobreviventes dos seus 118 membros aprisionados na popa, à medida que estes enviavam sinais de socorro que auxiliassem a sua localização. O governo russo, com material de intervenção praticamente obsoleto e ao renitentemente demorar na aceitação de auxílio internacional, acabou por se mostrar negligente ao atrasar, de forma escusada, o resgate dos seus militares, contribuindo negativamente para uma das maiores tragédias do virar do milénio.
O que impressiona mais em Kursk é a forma como Vinterberg e Robert Rodat parecem mergulhar nos clássicos americanos para falar deste desastre.
Embora a premissa claustrofóbica seja, por si, já cinematograficamente promissora, o que impressiona mais em Kursk é a forma como Vinterberg e Robert Rodat [argumentista de Saving Private Ryan (O Resgate do Soldado Ryan, 1998)] parecem mergulhar nos clássicos americanos para falar deste desastre: temos no primeiro acto um conjunto de amigos militares num casamento antes destes entrarem em missão, tal qual como no The Deer Hunter (O Caçador, 1978) de Cimino; temos o olhar sobre as esposas dos soldados e a forma como a inquietude, a angústia e a incerteza afectam o seu quotidiano, como nos melodramas de Hollywood produzidos por volta da Segunda Guerra (há que referir o momento em que uma delas é sedada involuntariamente durante uma conferência de imprensa, algo que de facto aconteceu)… E depois este elogio ao profissionalismo, esta maneira de ver um grupo de homens a lidar com uma situação extrema pelos seus códigos de conduta, um universo moral que nos acaba por encaminhar aos nomes incontornáveis de cineastas como John Ford [ele que filmou também a dinâmica de um grupo preso num submarino afundado em Men Without Women (Submarino S. 13, 1930)] ou, principalmente, Howard Hawks.
Partamos da ligação ao universo hawksiano para destacar um dos seus filmes em particular, The Dawn Patrol (A Patrulha da Alvorada, 1930). Neste filme decorrido na Primeira Guerra Mundial, uma comunidade de aviadores cantava em uníssono, quando numa missão homens eram escusadamente perdidos, “Here’s a toast to the dead already / Hurrah for the next man who dies”. Em Kursk, os homens também têm uma canção, também ela sobre brindes e soldados, que ouviremos primeiro durante o já referido casamento, e mais tarde, perto do desfecho dramático. É neste último momento que a canção, tanto aqui como em Hawks, surge como uma maneira de o grupo restabelecer o espírito comunitário na presença vizinha da morte, de enfrentar denodadamente a iminência do fracasso e da própria aniquilação por um apelo plural ao estoicismo. É este sangue-frio que tenta ser mantido a todo o custo, principalmente no comando (extraordinário Mattias Schoenartes com a sua masculinidade taciturna), este sentido de comunidade e sacrifício em homens feitos carne para canhão, e este revelar de actos de cobardia e intrepidez (um exemplo notável é o momento asfixiante onde dois dos elementos vão vasculhando, debaixo de água e com a respiração sustida, os cacifos à procura de cartuchos que permitam a libertação química de oxigénio, filmado num exímio plano-sequência subaquático de quase 3 minutos), à medida que os efeitos físicos e psicológicos de uma ameaça se fazem gradualmente sentir, que fazem com que Kursk pareça olhar para um cinema de outro tempo.
Não referimos ainda o grupo mais importante de todos. Um dos aspectos mais curiosos do filme é a forma como Vinterberg varia o aspect ratio e como parece usá-lo para dar destaque aos filhos dos marinheiros. Na primeira parte, à medida que predomina o ponto-de-vista do rapaz (e da terra) que referimos no primeiro parágrafo, estamos presos ao 1.66, o qual se vê expandido, a partir do momento em que o submarino submerge, para o formato 2.35, com o mundo aquático que envolve os progenitores paternos a ocupar o centro da narrativa. No final, com o ponto-de-vista do miúdo / da terra totalmente retornados, o formato volta a encolher ao 1.66. É nesta dimensão apertada que presenciaremos o velório dos marinheiros, onde o miúdo se recusa corajosamente a apertar a mão de um oficial que, de alguma maneira, sabe estar manchada com o sangue do pai dele. O cartão epilogar é por isso de uma lucidez avassaladora, tão ou mais relevante que os homens que se perderam, foram as crianças que ficaram para trás a aprenderem a lidar com a ausência. É do lado delas que o filme está, e é por isso que terminamos com o rapaz a passar diante do oceano, a aguardar o momento em que se fará homem, que a terra se fará mar, e, quem sabe, que algo no mundo politicamente cínico e egoísta dos adultos acabe por mudar com o exemplo dos que partiram, demasiado cedo, rumo à linha do derradeiro horizonte. À espera.