Afastada a justiça, o que são, na verdade, os reinos senão grandes quadrilhas de ladrões?
Santo Agostinho, A Cidade de Deus
É quase consensual que a representação no grande ecrã de uma personalidade histórica, sobretudo quando estabelecida por via de formatos dramáticos e no seio da indústria das grandes produções cinematográficas, nunca será um exercício de pleno cumprimento factual. Ao invés, os filmes deste género – leia-se, épicos históricos e/ou biopics – revelam-se habitualmente condicionados por “imperativos” de cariz dramático, pela fusão de vários indivíduos numa só personagem ou em inteira função das obsessões, dos argumentos ideológicos e das afeições formais dos seus realizadores.

Nesse âmbito, mas num contexto inteiramente específico, importa destacar o percurso fílmico de Oliver Stone. Um dos mais argutos observadores da historiografia moderna dos Estados Unidos da América (nesta “categorização”, exclui-se a visão de documentaristas como Frederick Wiseman ou Alex Gibney), a sua filmografia representa, no seu cerne, a perfeita união dos traços descritos no parágrafo anterior.
Nestas acepções, é fundamental invocar, uma vez mais, o apego pacifista, por vezes na raia do activismo anti-sistema, que Oliver Stone – ele próprio, um indivíduo traumatizado pela Guerra do Vietname – demonstrou amiúde ao longo da sua carreira.
Ao longo de quase 40 anos de carreira, Oliver Stone abordou a Guerra do Vietname [por três vezes, em Platoon (Platoon – Os Bravos do Pelotão, 1986), Born on the Fourth of July (Nascido a 4 de Julho, 1989) e Heaven & Earth (Quando o Céu e a Terra Mudaram de Lugar, 1993)], teorias de conspiração [JFK (1991)], os excessos e a irredutibilidade do liberalismo económico norte-americano [Wall Street (1987)], a alienação do “cidadão comum” pelo sensacionalismo explanado nos meios de comunicação social [Natural Born Killers (1994)] e a biografia presidencial [Nixon (1995) e W. (2008)].
Assim, e face a esta opera omnia, parece afigurar-se como “corpo estranho” a vontade de Oliver Stone proceder, em Alexander (Alexandre, o Grande, 2004), à minudência da breve vida de Alexandre III da Macedónia, mais conhecido por Alexandre, o Grande.

Ignorado pela crítica especializada e pelo público (na Grécia, contudo, e por motivos óbvios, foi um retumbante sucesso de bilheteira) na sua época de estreia, o filme é o esboço de um retrato da vida de Alexandre, procurando traçar em pouco menos de três horas – ou mais de quatro, conforme o director’s cut lançado comercialmente em 2007 – a sua conjuntura social, uma atmosfera familiar de contornos edipianos, a ambição política de um génio táctico que tanto agrada aos historiadores como a estrategas militares de renome e a resiliência de um líder político que formou um dos maiores impérios da Antiguidade Clássica.
Não obstante esta manifesta linearidade de intenções, subjaz em Alexander uma franja considerável das obsessões que, desde os anos 70, têm fundado a filmografia de Oliver Stone. Aqui, entre a recriação da Batalha de Gaugamela e a contemplação dos Jardins Suspensos da Babilónia, não são, porventura, imediatamente perceptíveis as mesmas mensagens anti-belicistas que orientaram os argumentos e as ideologias patentes em Platoon ou Nascido a 4 de Julho.
Por diversas vezes, de modo quase provocatório, Alexandre debate com os seus generais não apenas a estratégia que o exército helénico deverá adoptar no campo de batalha, como também se dedica a uma retórica de justificação, humana e moral, do próprio acto da guerra, num conjunto de sequências que sublinham Alexander enquanto obra absolutamente política, e de comentário sobre a “propensão” para o conflito armado que tem regido a história da Humanidade.
Assim, será necessário atentar a dois eixos para a interpretação política de Alexander. Em primeiro lugar, o próprio contexto geopolítico aquando da sua estreia. Isto é, em 2004, com a actualidade noticiosa dominada pela intervenção no Iraque, iniciada um ano antes, por forças lideradas pelos Estados Unidos de George W. Bush. Uma acção militar cujos propósitos começavam já a ser questionados pela opinião pública que, consequentemente, infere no segundo plano de leitura do filme: a “consciência de humanidade” dos vencedores sobre os derrotados, historicamente estabelecida no facto de Alexandre ter pugnado pela integração em detrimento da subjugação dos povos conquistados, que o exército norte-americano debalde revelava nos cenários de conflito (Iraque e Afeganistão, curiosamente dois territórios onde Alexandre lutou e viveu) do Médio Oriente.

Nestas acepções, é fundamental invocar, uma vez mais, o apego pacifista, por vezes na raia do activismo anti-sistema, que Oliver Stone – ele próprio, um indivíduo traumatizado pela Guerra do Vietname – demonstrou amiúde ao longo da sua carreira. Tal arbítrio poderá ter baseado o cariz de extrema candura e fragilidade do Alexandre composto por Colin Farrell (líder sem magnetismo, de lágrima fácil, merecedor de olhares tão “enlevados”, pelos seus semelhantes e súbditos, que quase justificam os laivos homoeróticos com que se rotulou o filme), todavia a representação da mensagem eleva-se à da personalidade representada. Num dos momentos finais de Alexander, no decorrer de uma Batalha de Hidaspes encabeçada pelas falanges, física e animicamente exangues, da Macedónia, a floresta indiana assoma-se, subitamente, tingida de vermelho. Uma metáfora visual que se explica sozinha: não representará aquele sangue helénico a hemorragia da própria Humanidade face ao inferno da guerra?
Posto isto, será Alexander um filme perfeito? Nem por sombras. Aqui, estamos longe do dinamismo da argumentação entre indivíduos, das vertiginosas lições de Cinema ou dos excessos cinéticos que caracterizaram trabalhos anteriores de Oliver Stone; nem as circunstâncias da morte do protagonista – apesar de formalmente inspirada num clássico “momento Rosebud” – são dignas de uma fugaz teoria de conspiração. Ao invés, presenciamos um épico histórico infundido de leituras contemporâneas que, nesse processo, procura salientar, tanto então como hoje, a insanidade, a discórdia, a ganância e a ambição enquanto forças motrizes da civilização. E o mais nefasto espelho desses sentimentos é a guerra entre os homens.