Raro e único, Artavazd Pelechian (nascido em 1938) é um cineasta arménio e verdadeira lenda do cinema, detentor de uma obra curta e inclassificável, entre o documentário experimental e um estilo atípico, inscrito numa poética do real fulgurante e reveladora. Foi o grande criador da “montagem à distância”, conceito que tem como base formal e de conteúdo a inscrição da ideia de contraponto e separação projectando as imagens para novas posições e lugares de representação e ‘’sensação’’.

Pelechian formou-se na escola de cinema VGIK, de Moscovo, na era soviética, onde estudou as teorias de Dziga Vertov e Eisenstein, e foi colega de Tarkovski (Sokurov e Paradjanov foram também alunos da escola). Esta formação vai reflectir-se na sua obra que parece emergir do encontro entre as teorias dos realizadores russos e a sua assimilação. A estética de Pelechian insurge-se com uma extraordinária carga expressiva e os seus filmes, na maioria curtas metragens, são normalmente vistos como composições vibrantes entre imagem e som, onde a ausência da palavra permite expandir novos territórios interpretativos. Uma obra concisa, num total de cerca de 13 filmes, a destacar alguns deles: Skizbe (O Início, 1967); Menq (Nós, 1969); Obitateli (Os Habitantes, 1970); Vremena goda (As Estações, 1975); Mer dare (Nosso século, 1983); Verj (Fim, 1992) e Kyanq (Vida, 1993).
Pelechian filia-se ao cinema experimental e à força e impacto da matéria visual, legítimo herdeiro da escola russa onde o dispositivo formal se destaca da narrativa. A estética de Pelechian procura no found footage, arquivo e material disperso, para além de imagens suas, a base de criação e centro do seu trabalho.
Na linhagem das vanguardas soviéticas que se insurgiram contra a ficção manipuladora das ideias e das emoções, Pelechian também se rebela contra códigos a favor de uma linguagem da imagem, única e capaz de ser portadora de ideias e sensações. Absolutamente contra a ficção realista e o actor, procura antes confundir intencionalmente o real para melhor o subjectivar. Pelechian usa o found footage como forma de questionar a própria história, questionar e reflectir o mundo, permitindo-se, pela multiplicidade, variedade e fragmentação das imagens, encontrar novos modos de representação que demonstram o poder do cinema. Este cinema faz-se também com a ausência da palavra, não há comentário, nem legendas. Pelechian vota um profundo descrédito à palavra – um “acto de violência”.
Ao criar a “montagem à distância” abriu espaço a um pensamento assente na teoria que consiste em gerar uma separação entre os planos, em vez de os aproximar ou confrontar: “(…) se tenho duas imagens que me interessam, descolo-as. Percebi que estes elementos colocados à distância comunicavam melhor entre eles que postos lado a lado” (Pelechian). A tese defendida pelo cineasta faz do processo da “montagem à distância” um programa marcante, a partir do qual as imagens e também a matéria sonora, com alto valor expressivo, se tornam uma potência viva reveladora de encontros, choques, distâncias e fusões de planos.
“Se eu colasse, ver-se-iam as colagens. Trata-se de uma ‘montagem’. Tenho mais em conta a matéria partida, que procuro fundir, depois tento modelá-la à mão. Estou mais ligado à energia: talvez não seja forçosamente bem feito. Nós partimos da fusão. Não se vê portanto como é feito. Ao contrário dos filmes ditos ‘remakes’. Eu criarei mais um objecto original”. (Artavazd Pelechian, apud, Semerjian, 2006).
Pelechian tem sido alvo de interesse de realizadores e teóricos que têm uma grande admiração pela sua obra. O realizador arménio foi dado a conhecer nos anos 80 por Serge Daney, que o considerou possuidor duma incrível singularidade, falando do seu trabalho “sobre” e “contra” a montagem, e de uma obra radical e essencial: “(…) Tenho de repente o sentimento (agradável) de me encontrar face a um elo que faltava na verdadeira história do cinema” (Daney). Foi também aclamado por Parajanov e Godard. O realizador Pietro Marcello fez um filme centrado na sua obra e figura, Il silenzio de Pelesjan (2012). Recentemente, Vincent Sorrel apresentou o filme Artavazd Pelechian, le cinéaste est un cosmonaute (2018).
No filme Skizbe (O Início, 1967) Pelechian exibe uma composição violenta de imagens para captar o estado “infernal” do mundo, com choques de planos (vindos de um extraordinário arquivo), retrato de um mundo totalitário e repressivo, multidões em fuga, árabes, negros, nazismo, estalinismo; material que sai de inúmeros contextos e temporalidades históricas, e vai aqui amalgamar-se num filme “sobressaltado” pela montagem. O Início é dedicado ao 50º aniversário da revolução de Outubro, misturando multidões que correm na época da revolução, com outras multidões em fuga, retiradas de crónicas contemporâneas da luta social noutros países. Resulta daqui uma composição inquietante e tensa de imagens e sons que “correm” e se interligam “incansáveis” numa espécie de loucura colectiva de medo e evasão.

Skizbe culminará com a imagem de uma criança misteriosa, interpelativa, que aparece isolada de todo o contexto anterior, estabelecendo pela natureza e duração do plano um momento especial de intimidade com o espectador: a criança olha-nos directamente, a sua expressão tem um impressivo poder emocional que agarra e perturba. Esta imagem vai também aparecer no filme Menq (Nós, 1969) – curiosa circulação de imagens que Pelechian vai fazendo repetindo planos de filme para filme, relevando ecos e presenças. O destaque é logo assimilado e parece que esta imagem funciona como uma poderosa síntese da dor do mundo.
Em Nós também são as imagens de multidões, mais reencontros, enterros, e peregrinações que tomam o tom do todo. No plano da peregrinação uma multidão de arménios dirige-se a uma capela, e apesar da origem das imagens não se relacionar com momentos de fuga, podem ser assim apreendidas pelo poder e efeito que provocam, mais uma vez, isoladas do contexto: “(…) A longa coluna que se desloca lembra as imagens de exílios forçados e deportações de 1915, uma longa coluna humana caminhando através da paisagem desértica” (Semerjian, 2010). Temos, ainda, montanhas e explosões que se combinam de forma cíclica e obsessiva como se pessoas, animais e natureza se movessem por uma intensa força telúrica numa irmandade contaminante que produz uma elevada força orgânica. Nós termina com um plano de um prédio com pessoas à varanda e o monte Ararat, símbolo bíblico de uma geografia identitária do povo arménio – fica um diálogo entre as imagens, mais uma vez, pelo poder da montagem que abre imediatamente um espaço de reflexão.
A montagem fragmenta-se numa construção invisível em que as imagens perdem as suas referências e tornam-se mais restos, sinais da história, imagens por si que se reúnem ou afastam para se afirmarem por si próprias.




Em Obitateli (Os Habitantes, 1970) uma inquietante sucessão de imagens constrói um movimento cadenciado e poético, onde aves, animais de grande porte, animais enjaulados, ruído de espingardas e animais em fuga compõem um quadro de relações entre a natureza e o humano, sugestivo e avassalador. O humano está ausente na imagem concreta, mas presente de forma mais abstracta através de imagens transformadas de homens em marcha; para além da evocação natural do humano pelo tema e também pelo som das espingardas. Os animais que olham a câmara parecem clamar ajuda, desesperados ao iminente perigo que o som evoca; medo, desespero, ameaça à harmonia da natureza invadida.
Pelechian multiplica planos da mesma acção criando a ilusão de um tempo que se prolonga, pela montagem das imagens de forma distinta, reenquadrando-as ou reposicionando-as. O exemplo do cisne, no início e depois mais tarde perto do fim, toma exactamente uma expressão de tempo e de prolongamento com valor sintomático e dramático; a música e a imagem entram numa fusão de movimento que incorpora o ritmo dominante com as naturais repetições (obsessões) sonoras e imagéticas. Neste poderoso e poético quadro de imagens perpassam ideias sobre a ordem do poder, a morte e a liberdade ameaçada. De novo, temos um mundo exposto a movimentos de risco, um mundo sob perigo.


No belíssimo Vremena goda (As Estações, 1975) Pelechian volta à dominação telúrica, com homens em luta no mar enrolados pelas vagas a salvar ovelhas ou cavalos. São momentos que se ampliam ao olhar, como qualquer coisa única e perigosa, projectando-se além do que é mostrado. Alinham-se, depois, céus nocturnos (de uma força e beleza nunca vista), permanecendo um tempo (duração do plano), mais ou menos suspenso; sucedem-se paisagens rurais, mãos, manadas e rebanhos; gente do campo, tempestades. Homens em luta com um gigantesco molhe de feno, quedas na neve, animais ao colo, um casamento, mais quedas em montes pedregosos e o mar revolto.


Nesta lógica de desaproximação, ou nova aproximação, as imagens mostram o homem face à natureza agreste, vêm histórias do povo arménio, as lutas com a terra, um rapaz que nos olha, as avalanches, a transumância; e o que as torna relevantes não são apenas os acontecimentos em questão, mas o tempo da sua existência, a lentidão e o ritmo, a inércia e o movimento, a forma como as imagens são colocadas, postas em sequência, na particular “montagem à distância”, que destaca o valor da presença das coisas e a sua possível coabitação.
Estes filmes encontram na memória um lugar de eleição onde se desenvolve e se elabora uma complexidade subjectiva e identitária. Levantam-se questões de verosimilhança sobre colocar animais em perigo sabendo-se da hostilidade das águas, e descobre-se que Pelechian fabricou aquelas imagens aliciando os camponeses a fazê-lo, pois o filme era para eles, “em nome da humanidade”.

Em Mer dare (Nosso século, 1983) sucedem-se imagens do espaço, da lua, páraquedas, paraquedistas, aviadores, cosmonautas, astronautas, explosões, aviões em queda… A partir de imagens de arquivo americano, soviético e do próprio Pelechian (filmadas por si), as imagens sugerem a eterna conquista do homem pelo espaço, aqui grande protagonista. Uma meditação poderosa que se vai alargar à iminência do perigo, juntando-se diferentes temporalidades, numa cronologia não linear desta história da humanidade organizada por Pelechian.


Verj (Fim, 1992) e Kyanq (Vida, 1993) funcionam como um díptico em que o primeiro contempla paisagens e rostos de idades e etnias diferentes, passageiros no interior de um comboio que avança e toma o movimento do filme, numa latência temporal que embala, desígnio duma montagem etérea e inacabada. O corte para um túnel que se repete em tempos consecutivos cria um efeito de sobressalto, como um lastro fantasmático inscrito num perfeito território de valor sintomático, onde se entrelaça a dualidade inconsciente da representação e da história.


Vida é uma ode ao nascimento, uma mulher em trabalho de parto, recorta-se em primeiro plano, o seu rosto projecta o sofrimento, e ao mesmo tempo que a dor se exibe, há espaço para captar a emoção do momento que pela natureza do acontecimento introduz o magnífico e “doloroso” episódio da vida – o nascimento vem como um eterno começo. A criança que vimos em Fim volta. E as imagens de Pelechian têm sempre uma intensa dimensão focada no movimento expressivo de um momento concentrado em si e alargado à sensação.
O pensamento e o rigor de Pelechian faz do cinema um novo lugar de representação, propondo espaços de reflexão importantes que se desenvolvem numa poderosa contaminação temporal fruto de uma verdadeira cruzada dialéctica de imagens. A cada filme de Pelechian, curto e concentrado, releva-se logo a força e intensidade da imagem, a vibração e embalamento sonoro, e o poder do conteúdo que transporta. É sempre elevada a intensidade poética, a questão do ritmo e a sua forma arrebatada de movimentar os planos, de colocar em actividade as imagens e de criar um discurso longe do expectável.


Pelechian afirmará no filme de Pietro Marcello, Il silenzio de Pelesjan: “Acredita-se erradamente que os meus filmes são filmes de montagem (…) a essência do trabalho de montagem consiste não em atacar os fotogramas entre si mas em separá-los, não na sua junção mas na sua distância. Uma montagem assim defino-a como ‘montagem à distância’. O mais importante é que os elementos de referência enquanto partículas carregadas interajam à distância e criem um campo emocional ao longo do filme.”
E assim, Pelechian age sobre o filme e o cinema, desenvolvendo o tal “campo emocional”, através de uma estética de montagem cheia de circuitos e conexões inesperadas que vão produzindo diferentes olhares sobre o mesmo objecto. Testemunha-se um cinema que abre outras possibilidades de fazer história, para além da que já estava nas imagens emprestadas, encontradas, e nas imagens actuais, constituindo-se novas narrativas, ou outros complexos disnarrativos ou ainda devires que se projectam. O universo cinematográfico de Pelechian, é pois, de uma grande singularidade, desancorado, desenquadrado de qualquer tipo ou família. Penetrante e poderoso, sintomático e orgânico, em Pelchian a imagem nunca se reduz ao enunciado, e a narrativa não se arquitecta como uma consequência das imagens. Não existe essa interdependência, existe uma espécie de maquinaria temporal, que mecaniza a narrativa e lhe cauciona a sua incrível instabilidade, permissiva às variações do discurso altamente poderoso e penetrante.
Pelechian tem mão mestra para desenvolver uma incrível actividade de imagens que, mais do que comunicar, traça vias, caminhos de imagens e de sensação, dominadas por uma organicidade, uma agitação, que se movimenta no presente e na memória, onde espaços, presenças e figuras agem e interagem num perfeito arrebatamento interno e formal; um cinema vivo, intemporal e avassalador.
A Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema dedica uma retrospectiva integral ao realizador Artavazd Pelechian entre os dias 27 e 31 de Maio – o programa pode ser consultado nesta ligação.