A primeira parte desta crónica começava com a presença inquieta de Brillante Mendoza em Cannes com Kinatay (2009), depois da selecção no ano anterior de Serbis (Serviço, 2008), que fecharia com o seu primeiro prémio relevante no circuito de festivais, o de melhor realizador. A liderar o júri estava Isabelle Huppert, que terá ficado de olho na obra do cineasta, com vontade de nela entrar. Captive (Cativos, 2012) protagonizado, então, por Huppert: um sequestro conduzido por um grupo de homens ao serviço de Alá e de Osama Bin Laden, baseado em factos reais e que se estendeu por mais de um ano, é um dos filmes do cineasta filipino que mais ganha com a revisitação, soltando-se do mero engajamento de quem pretendia expor os sequestros como um negócio altamente lucrativo no sul das Filipinas naquele período.

Huppert é uma assistente social, com marido e filhos em França, que trabalha em Palawan (uma das inúmeras ilhas das Filipinas) com Soledad (Rustica Carpio), umas das lolas do filme anterior. O cinema de Mendoza já tentara sair de Manila em filmes anteriores, com escapadelas pontuais aos arrabaldes, aqui parece pretender introduzir-nos na vastidão de um dos mais extensos, populosos e desiguais territórios do mundo. Depois de vários dias no alto mar, a deambular numa espécie de plataforma, o bando atraca numa ilha, para se abrigar num hospital católico. Mendoza instala neste cenário os recursos para um filme de acção, com Huppert no centro de um melting pot: reféns que matam a fome, uma mulher em trabalho de parto e soldados terroristas que destroem ícones católicos e se divertem a ver cartoons na televisão; os militares, no exterior do hospital, disparam sobre os sequestradores enquanto a criança nasce: a violência renova-se em ciclos imparáveis, mediados pela fé, o Alá de Bin Laden, o cristianismo filipino.
Os terroristas arrastam os reféns para a floresta e, com a morte de Soledad, Huppert assume-se como uma mãe de Mendoza, ao forçar um enterro digno para aquela mulher, estabelecendo uma linha com a obra anterior, filmes que vivem de pactos entre personagens, principalmente entre mulheres, com a mesma determinação e perseverança de animais, formigas, insectos, vespas, predadores e presas – uma víbora que apanha um pássaro distraído – que a câmara insiste em enquadrar. Embrenhados na floresta, com o passar do tempo, cria-se um quotidiano, uma normalidade, que junta quase indistintamente terroristas e sequestrados, como se fossem uma família, a unidade de resistência e o enfoque do cinema do filipino: Huppert trata um ferimento de um dos terroristas, através de uma planta, como aprendera com outro dos homens, há um casamento (forçado) entre o líder dos terroristas e uma enfermeira, que há-de ser libertada após engravidar; o cortejo passará por uma escola de uma comunidade que interrompe a floresta e há uma interacção curiosa entre os alunos, os terroristas e os reféns, com partilha de alimentos e de conhecimento, como se eles fossem meras visitas. É a crença que aparta os terroristas dos restantes, nas horas das rezas, na celebração do atentando às torres gémeas (que eles seguem pela rádio) e com os ensinamentos ministrados pelo líder aos restantes, que a subversão de Mendoza ilumina, com raios límpidos que descendem de Alá.

Um terrorista-criança (12 anos, há dois na selva) irá adormecer no colo da mãe-Huppert, antes falaram do último ano novo dela, de que ele espera chegar ao paraíso com as suas acções: o cinema de Mendoza disponível para todas as nuances do humano, tantas quantas as cores do pássaro que Huppert perseguirá até ser surpreendida pelo soldado, que acordado lhe ordena que regresse.
Na sequência de abertura de Taklub (2015) uma câmara varre, junto ao mar, destroços de edifícios, de tendas e de árvores, e colhe gritos de socorro, por entre incêndios, com corpos queimados que ainda respiram. Na mesma sequência encontramos Bebeth, uma mulher de meia idade, que divide os planos com as luzes e as sirenes de ambulâncias, e desde logo a identificamos como uma heroína de Mendoza. Passaremos o filme a caminhar com Bebeth, que gere um pequeno restaurante familiar, e procura recuperar os corpos de três filhos, desaparecidos na calamidade, o tufão Haydan, que em Novembro de 2013 devastou Tacloban, uma região do centro das Filipinas. A marcha desta mulher é a sua impossibilidade de conformismo, e por isso ela inicia um peditório para uma família que perdeu várias pessoas na catástrofe; e é aqui que o espectador sai frustrado com Taklub, apesar de Bebeth parecer possuir a alma das mulheres de Mendoza, está privada da dimensão da transgressão, a personagem fica tolhida pela ausência de actividades ilícitas ou imorais, que um dos personagens verbaliza, como se também ele lhe notasse a falta: “Bebeth, vê lá se não o metes ao bolso”.

Mendoza propôs-se renovar o seu olhar realista, documental e implicado, sem distância nem censura, na procura de registar a destruição, mas também interessado nos modos de viver junto ao mar, dos pescadores e do quotidiano na lota de pesca, como uma possibilidade de recomeço. É aqui que encontramos Larry, que o Haydan deixou viúvo, convertido à fé católica e que participa de pequenas procissões que atravessam os trabalhos de limpeza, empreendidos por voluntários de ONG’ s, que adicionam reboliço, sinais de vida, àqueles locais. É Julio Diaz quem dá corpo, como em muitos dos filmes do cineasta, a um homem fraco, cercado pelo medo da ocorrência de uma nova calamidade, a quem nem a fé proporciona horizontes e que começa por carregar a cruz para depois a soltar por falta de forças, reiterando que os homens não possuem a resiliência das mulheres.
Há grandes obras em igrejas, enquanto se montam tendas disfarçadas de abrigos, são vidas e construções incertas, com os núcleos familiares como única resistência às adversidades, com a promessa de novas vagas de chuvas e de ventos. Com as instituições mais uma vez desacreditadas, incapazes de identificar os filhos da protagonista através de análises de ADN, Bebeth visita o hospital para entregar o donativo e assiste a mais uma morte: o rosto dela é o close-up que encena e confere solenidade ao sofrimento de um povo. Depois de percorrer mais uma vez os destroços e recolher um cão, ela cola os vários pedaços de uma taça que ostenta o rosto de um dos filhos que morrera. Taklub dispensa o conflito inerente à ficção, o tufão transformou o filme num documento, um requiem de Mendoza.

Um táxi percorre as ruas apinhadas, por entre um forte aguaceiro e clarões de relâmpagos, a câmara cola-se a um emaranhado de cabos telefónicos: em Ma’ Rosa (Mãe Rosa, 2016) somos devolvidos ao território fantástico, à Manila hiper-realista, ao habitat de Mendoza. A liberdade da gramática é a dos manuais do documentário, com a câmara solta, muitas vezes colocada do outro lado da rua, com uma diversidade de pontos de vista que reformula os lugares. Voltamos aos espaços-fronteira de Lola (2009), com lojas semicobertas e dependuradas na rua, com uma indefinição que mescla e trata como iguais interiores e exteriores. A ocupação da rua é caótica, com mesas de jogo, barracas de feira, bicicletas e tuk-tuks, uma romaria permanente, um olhar sobre uma sociedade que procura identificar vidas tão precárias quanto as construções, com Mendoza interessado em todos os ofícios que habitam estes lugares.
Apeados pelo táxi, o fim do percurso de Rosa e de um dos filhos adolescentes, que carregam sacos com compras, define o dinheiro e o desenrascanço como assunto, dos mais jovens aos velhos, todos negociam coisas e jogam a dinheiro. Chegados a casa, Rosa encontra o marido, Nestor, a drogar-se (Mendoza repete Jaclyn Jose e Julio Diaz, a dupla de Serbis), o que lhe imputa a debilidade habitual dos personagens masculinos. Logo percebemos que é Rosa quem trata da família (dois filhos e duas filhas, entre a infância e a juventude), das refeições e do negócio, uma mercearia, um artifício para traficar droga, num espaço que é em simultâneo habitação e loja, com uma deficiente compartimentação, com usos e espaços que se confundem.

Rosa e Nestor são, entretanto, detidos pela policia e arrastados pela rua, e Mendoza retrata-os como se eles fossem os protagonistas de uma via-sacra, convidados a carregar a cruz, debaixo de chuva. A parte de trás do carro da policia é aberto, com a câmara a estabelecer um diálogo entre os rostos do casal e a ocupação da rua, como se esta fosse uma projecção dos personagens. Chegados à esquadra, são encaminhados por um conjunto de corredores, exteriores e interiores, até uma sala numa cave, com alguns polícias fardados e outros que se supõe serem oficiais mais graduados, que funciona de porta fechada, o que antecipa a arbitrariedade das acções que se seguirão.
O espectador é enfiado naquele compartimento durante uma extensa porção do filme – tal como o fora na casa de tortura de Kinatay (2009) -, com Mendoza tão interessado nas rotinas, nas incursões das crianças que trazem refeições e cigarros, como do processo entre policias e a família, que se inicia com a exigência de um resgate, num percurso para equiparar lei e delito. Depois da delação de Jomar (dealer de Rosa), da sua captura e consequente espancamento, Nestor (que entretanto vestira uma camisola da policia, por troca com a sua roupa molhada) partilha a refeição com os policias, enquanto Rosa limpa o sangue de Jomar do chão: da mesma forma que interiores e exteriores se misturam, também lei e crime estabelecem relações horizontais e empáticas, de igual para igual, com a vigilância de cartazes com ícones cristãos.

Como em filmes anteriores, os personagens perseguem algo com uma obstinação necessária, em Ma’ Rosa são os filhos que procuram familiares e amigos dos negócios, a quem possam pedir o dinheiro para o resgate. Os personagens caminham, correm, pedalam, e Mendoza reitera estas acções, com a mesma insistência dos seus personagens, que se sujam, que caem, mas continuam, é um cinema de elogio à perseverança. Mas continua a faltar uma parte do dinheiro e compete a Mãe Rosa consegui-lo. Ela calcorreará meia cidade com a mesma sofreguidão com que come umas quantas bolas de massa enfiadas num espeto. Do outro lado da rua, alguém lhe pergunta se tem cristal (droga sintética), enquanto Rosa observa um casal e duas crianças pequenas, junto a um pequeno negócio, uma barraca que vão fechando; soltam-se, então, lágrimas do rosto de Rosa que se confundem com a transpiração da caminhada, da tropicalidade das Filipinas, um epílogo que concretiza o tema do cinema humanista de Brillante Mendoza: a família e a comunidade suportada pelas mães, no embate com a precariedade inescapável de um povo.