Desaparece um dos mais ribombantes génios do cinema de autor europeu. Cineasta da luz, da matéria, do sexo e do sagrado, Jean-Claude Brisseau foi o ponto de contacto de algumas das mais notáveis forças da História do Cinema. A ele, esta homenagem.
Misto de quietismo budista e de exercícios espirituais da libertinagem francesa, Céline é o filme mais clássico de Brisseau: transparente de diáfano, sistematicamente frontal, raccord diretivo e contracampo como corte prenhe de paixão pela Revelação, mas sobretudo a relevância do gesto, modulado segundo um diapasão icônico muito pregnante. Em algum ato de sua peça sobre Joana d’Arc, George Bernard Shaw faz a mística laica francesa dizer ao seu algoz, Pierre Cauchont, que “a mão de Deus repousa sobre mim”. A mão nem sempre é de Deus, como do Diabo, e a diatribe gloriosa do santo consiste muitas vezes em traduzir numa língua de gente tumultos divinos ou diabólicos que jamais encontrarão língua. Em Céline, um dos espécimes mais cristalinamente classicistas urdidos pelo primeiro Brisseau, são os exercícios físicos e espirituais, gênero por excelência da libertina cultura francesa do século XIX, que vão se encarregar de aparar as arestas e sublimar as paixões desta garota, Céline, que não parece ter lugar no mundo e no amor mundano, e talvez esteja mesmo destinada à santidade. Em Brisseau, professor de origem, quase sempre foi assim: uma alma perdida ou perturbada, tantas vezes de subúrbios ou de ateliers burgueses claustrofóbicos, tem, por intercessão de um acólito sexual, acesso a uma via mística de auto-conhecimento; então, tudo o que era impuro (sem nenhuma conotação moralista, é bem dizer, pois quebrar-se-ia o cristal do julgamento tão francês de aprendizado), obscuro ou sujo devido ao contato demasiado estreito com os in extremis do mundo de um chofre conhece (gênero Revelação religiosa, modelo arquetípico para um auto-conhecimento que não se contenta com si mesmo, e se espraia para uma comunidade redimida, compartilhando a ascese originada pelas agruras do ser) a própria essência, que necessariamente terá de coincidir com a essência do mundo.
Para o sagrado de Brisseau, o lugar da epifania é o gesto, não o ditirambo profético; a postura (meditativa), e não o hexâmetro Revelado; daí a relevância dos exercícios que mobilizam completamente o corpo em seus distintos atributos de potência, mas envolvem igualmente sempre um décor, natural ou não, e portanto a totalidade do ser, porque o sagrado em Brisseau e nos clássicos em geral não separa (sacer), mas reconcilia. O décor não é apenas questão de cadre e de raccord de direção, mas de campo de aparição e desaparição, fundo inexcedível contra a qual a figura se exerce na plenitude de seu gesto. A santidade em Céline é absolutamente liberta das provas sulpiciennes de uma concepção excessivamente transcendente do Sagrado, que sempre redundam no kitsch; ela é uma figura da imanência: campos a perder de vista na profundidade de campo, desertos na transposição alterada da percepção mística, flores, desvãos de casa, escadas: tudo poderia, como acontece, acontecer hic et nunc, no seio da imanência mais aguerrida, e tanto Osíris, deus egípcio, quanto um santo ebionita (os ebionitas: aqueles cristãos primevos que negaram a Jesus o título de filho de Deus, e permaneceram fiéis a Torá) poderiam ser os avatares desta experiência (sim, uma experiência cinematográfica: campos, flor de lótus meditativa, gestos e atos em direção ao próximo, face voltada para o obscuro de mim mesmo) absolutamente imanente, e portanto em nada indissociável da Beleza clássica, feita de temperança e discrição.
Em Brisseau, o Milagre (aparições, desaparições, duplos, ubiquidade das presença e levitações) é essencialmente da ordem da prestidigitação do cinema primitivo, porque é um affaire de espaço; é o espaço, agora vazio ou novamente preenchido pela eminente figura de Célline (sempre ao fundo, incrustada na borda do cadre) que se encarrega de epifanicamente manifestar o Dom. Céline é esta sistemática elisão fantasmagórica da presença da mulher pelo contracampo; o conjunto de contracampos de-sabitados por Céline constituem-se numa espécie de bloco compacto mas escorreito na qual se gesta o tempo, mas da Eternidade; Brisseau, ao inventariar aqueles que vieram testemunhar a presença milagrosa da moça (e que lhe beijam a mão, em sinal de graças) o faz como Pasolini em Teorema (1968): com um travelling frontal para a direita, como se a sequência de corpos à espera do milagre fosse antes de tudo um cortejo beatífico à ausculta da consumação do Dom, como o Cristo vivo que ainda assim é um fantasma, pois aparece a seus apóstolo andando sobre as águas. No diapasão da meditação e exercícios, o corpo se Céline vai se rarefazendo, se distendendo, se tornando claro ou obscuro de acordo com o ambiente, se modificando plasticamente segundo a conveniência de uma outra presença, que sem abandonar esta de todo, no entanto, desaparece com método, arte tão francesa. É uma obra-prima que nos demonstra como mostra que o classicismo foi talvez a última arte na qual o homem e o mundo estiveram uma primeira e última vez num metro único, celebrando estes esponsais com a unção de um primeiro beijo namorado, que a Eternidade subsequente vai converter em efígie.
Luiz Soares Júnior
Se o cinema apenas requer “uma rapariga e um revólver”, tal como Godard um dia enunciou, então Jean-Claude Brisseau coloca-nos, desde os primeiros minutos de L’ange noir, em puro território cinematográfico. Nessa sequência inicial, a que o frame publicado se refere, Stephane (uma estonteante Sylvie Vartan) mata um homem, a sangue-frio e pelas costas, esvaziando a cartucheira da pistola no cadáver da sua vítima, para logo de seguida urdir uma suposta violação como fundamento para homicídio em legítima defesa. A partir desta introdução, L’ange noir move-se pelos mecanismos habituais de um polar: personagens definidas pelo seu passado vicioso, que ilustram uma narrativa descomplicada e linear, com “princípio, meio e fim”, durante a qual Brisseau ainda se permite a breves incursões de filosofia política e social e culminando no conceito da femme fatale que usa o (seu) sexo como arma de garantida eficácia.
Não obstante a modéstia dos seus preceitos, L’ange noir assume-se, em retrospectiva, como seminal “tubo de ensaio” para as fantasias eróticas que caracterizariam os últimos filmes de Jean-Claude Brisseau. Obra de um autor que se viu confrontado com acusações de abuso sexual por três actrizes que integraram os castings de Choses secrètes (Coisas Secretas, 2002), de perpetuar uma objectificação sexista da compleição feminina na Sétima Arte e de projectar um erotismo na raia da pornografia, não deixa de ser irónico a possibilidade de interpretar L’ange noir como elogio ao poder — tanto benigno como doloso — feminino. O filme, descendente do trabalho sensorial dos filmes de Jules Dassin, Alfred Hitchcock ou Claude Chabrol, invocando as insidiosas protagonistas de um romance epistolar de Choderlos de Laclos e, curiosamente, produzido numa década em que o neo-noir “adquiriu” personagens (Catherine Tramell em Basic Instinct, Bridget Gregory em The Last Seduction) de particular impacto e sensualidade, foi rotulado, à época da sua exibição, de banal exercício style over substance. Essa adjectivação, tanto no caso de L’ange noir como em grande parte da filmografia de Brisseau, não podia ser mais equívoca. Nada nos seus filmes era meramente superficial; a desumanidade e a violência social ombrearam sempre com o desejo e o prazer femininos, a provocação, o sobrenatural e a estimulação visual. Por isso, não será absurdo concluir que a figura de Stephane – anjo exterminador, motivado somente por um desejo inato de destruição – permanecerá como símbolo.
Samuel Andrade
A última vez que o vi foi neste banco de jardim. Apanhei À l’aventure (À Aventura, 2008) a dar na televisão, nas profundezas da madrugada, e não mais ele me largou. Deve ser dos filmes de Brisseau que ganham mais em ser revistos e, em certa medida, “reouvidos”. Porque naquele banco de jardim a personagem de Etienne Chicot dá reverberantes lições sobre os mistérios da vida e do universo. Há algumas personagens destas no cinema de Brisseau. Lembre-se o inquilino excêntrico, mas enternecedor por causa da sua solidão, no magnífico, e nem sempre lembrado, La vie comme ça (1978) ou o “tio Tonton”, igualmente só, que dedica o seu tempo desafiando com o exercício da meditação os limites do eixo espaço-tempo nessa brilhante “última gargalhada” chamada Que le diable nous emporte (Que o Diabo Nos Carregue, 2018). Estas personagens têm o seu quê de rohmerianas, o que nos lembra as raízes de Brisseau, um cineasta fundamentalmente romanesco que potenciou como poucos realizadores da sua geração a capacidade genuinamente dramatúrgica do cinema.
Mas naquele banco de jardim o conhecimento transforma-se em matéria sensual, enigmática e sedutora. O conhecimento é erótico nos filmes de Brisseau, que começou a sua carreira como professor – continuo a achar que, neste sentido, ele é o grande herdeiro no cinema de Georges Bataille. Os corpos teorizam, na sua acção (na sedução e no sexo), a possibilidade de uma transgressão absolutamente radical. De quê exactamente? De tabus, sim, mas também das estruturas cristalizadas da sociedade (a escada social, o mercado de trabalho ou as “certezas” da mentalidade mais positivista). Por isso, sim, Brisseau deve muito a Rohmer, mas ele também pediu de empréstimo as asas de um anjo exterminador chamado Luis Buñuel e o sentido muito materialista de sagrado de um Robert Bresson. Não se tratou nunca de mera citação ou homenagem embasbacada, mas de uma sublimação de todas estas elevadíssimas matérias fílmicas. Brisseau era o carrefour do melhor cinema de autor europeu.
Luís Mendonça
Nunca o tinha visto como o último porque tinha esperanças de que Brisseau ainda conseguiria ter acesso a meios de produção normais para, pelo menos, mais um filme. Não aconteceu. Felizmente, não foi isso que o impossibilitou de continuar a fazer belos trabalhos cinematográficos, recorrendo a meios mais modestos como o seu apartamento a servir de principal décor e uma equipa e elenco quantitativamente em torno do estritamente necessário. Foi o caso dessa pequena obra-prima chamada La fille de nulle part (A Rapariga de Parte Nenhuma, 2012) e daquela que se verá, daqui em diante, como a sua despedida ao meio que explorou de forma tão poética, Que le diable nous emporte (Que o Diabo Nos Carregue, 2018). Despedida que, recorde-se, termina uma carreira de uma melancolia lírica e profunda não com uma lágrima, nem com um aceno, mas sim com uma gargalhada.
A fúria suburbana percorrida pelas suas fantasias e fantasmas de De bruit et de fureur (1988), o erotismo em claro-escuro com uma dimensão diabólica de Les anges exterminateurs (Os Anjos Exterminadores, 2006), a aura crepuscular que serve de medula ao já referido La fille de nulle part, há várias razões que me fazem preferir outros Brisseaus a este. Mas se escolho aqui o seu derradeiro, filme cósmico, transcendentalmente lúbrico e assumidamente artesanal, é por uma razão tão simples quanto esta: a força que aquele riso ganha ao termos em mente a partida de quem o filmou. É uma imagem bonita e de uma imperturbabilidade desafiante, que passará a ser vista como a de alguém que estava na presença vizinha da morte e decidiu troçar dela. Dos vários atributos que podemos admirar na obra de Jean-Claude Brisseau, estimemos também este je m’en fous mofador diante da inexorável gadanha. Porque não há, verdadeiramente, muitos artistas de quem se possa dizer que fecharam a carreira a rir. Principalmente quando parecia já não haver razões nenhumas para fazê-lo.
Duarte Mata