Carlos Natálio, Ricardo Gross e Carlos Alberto Carrilho continuam a sua cobertura do IndieLisboa, que terminou no passado dia 12 de Maio, depois de um balanço inicial. O palmarés do festival pode ser consultado nesta ligação.
Alva (2019) de Ico Costa
Bastava comparar as sinopses, e agora o visionamento da primeira longa de Ico Costa confirma-o: Alva estende a um formato maior e a uma outra densidade aqueles que eram os impulsos ficcionais presentes nas suas curtas, Quatro horas descalço (2012) e Antero (2014). Um ambiente de ruralidade, personagens solitárias em fuga ou em busca de justiça, uma relação de comunhão mas, ou mesmo tempo, de superação dos elementos da natureza. Estamos portanto num mundo de parcas palavras, câmara à mão, trémula ante o desafio de tais elementos, um mundo de chuva, fogo, névoa, de ribanceiras íngremes, caminhos de cabras, arbustos de bagas silvestres, lagos. Ico Costa apresenta-nos o seu Henrique (Henrique Bonacho), olheiras fundas e cigarros fortes e toscos. Um homem fugido de um acto que não sabemos bem as causas nem as consequências.
Baseado em algumas histórias verídicas (é impossível não pensar na história de Manuel Palito), com influência no cinema do argentino Lisandro Alonso e de uma técnica imersiva de algum do novo cinema romeno, Alva parece ir mostrando ao espectador um progressivo e crescente despojamento. Filmado em 16 mm, imagem granulosa, o mundo de Henrique parece ir perdendo peças/pessoas, assim como a narrativa, depois de construir momentos de tensão ao longo da sua travessia, questiona precisamente as razões de todo esta odisseia de isolamento e sobrevivência. Mas há um lado b em todo este fascínio com o isolamento e a natureza. O filme exprime-o bem, a possibilidade de um realizador ter a exclusividade de mostrar esse espaço de esconderijo e catacumba, através da sua câmara. É ele que o vê a fazer a barba de olhos fechados, por exemplo. Ninguém sabe de Henrique mas a câmara sabe sempre, nessoutra dimensão de comunhão. E aqui Alva talvez esteja até mais próximo dos documentários de Wang Bing e das personagens de Cassavetes. Só que aqui, ao contrário do que acontece com o cineasta americano, as palavras são já adereço descartável. Uma boa surpresa na competição nacional deste ano.
Carlos Natálio
Se rokh (Três Rostos, 2018) de Jafar Panahi
Começa como um filme de investigação a um vídeo que parece dar conta de um suicídio. Faz o seu caminho de road movie, lembrando o cinema do conterrâneo Abbas Kiarostami. Lembra bastante mesmo. É um filme de encontros e do choque cultural entre a mundividência de quem vive na capital Teerão e os habitantes do Irão profundo, com as suas crenças, superstições, tradições que entre outras coisas mantêm a mulher subjugada ou ostracizada socialmente.
É neste olhar sobre a mulher, na denúncia inteligentíssima, na gestão dos indícios que se vão acumulando, num movimento de permanente revelação e ocultação que garante que cada personagem tenha no filme uma existência própria, independentemente do tempo da sua permanência na acção, que a marca do cinema de Jafar Panahi se torna reconhecível. O iraniano continua a dar a melhor resposta às proibições que lhe foram impostas. Se rokh faz a travessia para as raízes de um atavismo cultural e religioso que impede a liberdade do indivíduo, e fá-lo recorrendo a uma mise-en-scène que tem momentos notáveis.
Ricardo Gross
L’île au trésor (2018) de Guillaume Brac
Para uma criança, há dois meios para entrar no reino da aventura e excitação simbolizado pela “Ilha do Tesouro”: pagar a entrada e ser acompanhada por um adulto; ou recorrer a uma fenda na cerca e ser apanhado por vigilantes que a conduzem à saída. Nada é fácil neste mundo de diversões regido por uma lógica de lucro e condicionamento de índole capitalista. Com o director de fotografia Martin Rit, o director de som Nicolas Joly e a assistente de realização Fatima Kaci, o realizador Guillaume Brac passou dois meses na Île de loisirs de Cergy-Pontoise, centro recreativo localizado nos arredores de Paris, rodeado por um afluente do rio Sena, que proporciona atractivas actividades de natureza aquática. Num formato que lembra Aquele Querido Mês de Agosto (2008) de Miguel Gomes, Brac inspira-se em memórias de uma infância de que fez parte o centro recreativo. A partir de uma abordagem documental, filmou o maior número de cenas possíveis, sem recorrer a um guião preciso. Os planos são maioritariamente fixos, entre os enquadramentos médio e geral, numa lógica que remete para o cinema primitivo, criando espaço para a vida se desenvolver dentro da normalidade, sem grande interferência. Não falta o mapa para usufruir do “tesouro”, apresentado pela figura de autoridade e ordem, representada pela direcção do parque.
Primeiro vemos a chegada dos veraneantes que, por um dia, esquecem o trabalho e a rotina do quotidiano. O parque é um território delimitado em que indivíduos de diferentes idades procuram satisfazer diferentes necessidades e inventar possibilidades. Com medo de crescer e abandonar o mundo da infância, crianças exploram uma terra de aventuras em que possam brincar e fugir ao controlo dos adultos. Rapazes mais velhos seduzem raparigas para trocar números de telefone e marcar encontros virtuais na rede Snapchat ou na zona de mergulhos do parque, combinando jovialidade com um desejo de encontros e experiências. Adultos reavivam memórias e recolhem-se para zonas mais recatadas e escondidas, onde treinam movimentos e nadam no meio de elegantes cisnes. Para todos é uma terra de liberdade, a suspensão do horror do quotidiano, até a chegada da noite que transforma o parque num vale de sombras, entregue aos poucos aventureiros que constroem percursos alternativos aos trajectos dos seguranças nocturnos. Também o registo solar de se vai perdendo, emergindo a melancolia e a evocação da realidade suburbana, onde o parque está instalado. A incerteza nas condições de trabalho de empregados de bar é condicionada pela irregularidade das condições climatéricas e da condição sazonal do parque. A família afegã relembra episódios da guerra e a sua condição de refugiados, enquanto encontra semelhanças entre o parque e a terra natal da avó. Como A Ilha do Tesouro (1882) de Robert Louis Stevenson, L’île au trésor é uma ode à infância, uma história de aprendizagem e de desafio à autoridade. Um espaço que traduz o sonho de liberdade também é a imagem da vida em sociedade, condicionada por um contínuo de restrições ou limites.
Carlos Alberto Carrilho
Understory (2019) de Margarida Cardoso
Os fãs do cineasta alemão Werner Herzog sabem bem esta graça: a de que qualquer tópico ou conjunto de imagens, se narrada pelo inglês agressivo e marcado do autor, se podem tornar automaticamente interessantes. Não vale a pena chegar a tanto com a voz off de Margarida Cardoso nesta viagem pela travessia do cacau ao chocolate, mas o certo é que da serenidade e doçura do timbre da sua voz retiramos muitas coisas belas: dela desprende-se uma ideia de verdadeira familiaridade com o espaço africano (basta consultar vários dos seus filmes anteriores) como se esse passado fílmico habitasse, fosse o understory de Understory; a sua voz é também a bússola de uma viagem que é mais um fluir e uma fruição, onde o tempo vai apaziguando. Por exemplo, ao descer o rio Purus, no segmento do filme passado na Amazónia, Margarida diz: “da lancha voadora que se dirigia para este, podia ver pela primeira vez a vegetação cerrada da floresta amazónica. Talvez por já estarmos muito perto da noite tudo me parecia indistinto e misterioso. Imaginei como seria embrenhar-me na floresta não hoje, mas no tempo em que se sabia muito pouco sobre tudo e em que a terra era quadrada e plana. Imaginei os caçadores de plantas, naturalistas, botânicos e o seu espanto ao perceberem a espantosa diversidade no novo mundo. Um mundo que a seu olhos era virgem e complexo, criado unicamente pelas mutações caprichosas da natureza.”
Esta passagem ilustra também esta função de um voz off que funciona como manto de honestidade do projecto, um guia de uma curiosidade que transcende em muito aquilo que poderia ser o mais evidente num documentário de consciência social acerca da produção e comércio do cacau. Margarida Cardoso não se escusa a fazer o raccord entre o escravo de outrora e o escravo de hoje, os novos-empresários-pobres-para-sempre que apanham o cacau e nem sequer nunca se aproximaram de um aeroporto e suas gifts shops onde o chocolate será vendido a preços que nada têm a ver com o que recebem. Fá-lo, dizia, e de forma engenhosa, colocando lado a lado, em split screen, filmes coloniais portugueses de finais dos anos 20 e anos 30 e imagens de hoje. A história que se encolhe, que rima de forma empobrecedora. Mas depois há tudo o resto em Understory, um conjunto de coisas “indistintas e misteriosas” que a câmara de Margarida Cardoso intui terem tanta ou mais importância para compreender toda essa dinâmica da relação comercial em torno de um fruto colhido em São Tomé e em outras zonas delimitadas de África e América do Sul. Por debaixo da história estão as formigas em trocas mutualistas com outros bichos em busca de um pouco de açúcar do cacau, o cacaueiro que dá centenas de milhares de flores e só 0.1% de frutos, mas também um cão prestes a adormecer, um pássaro a debicar à chuva. É este olho atento aos detalhes que permite agigantar o espaço e o tema “oficial” do filme. Por extensão o espectador devém viajante numa travessia que apetece que não tenha fim. Um espectador que devém intemporal, curioso, em fusão com o cinema e com a abertura de espírito genuína e bela deUnderstory.
Carlos Natálio
Beoning (Em Chamas, 2018) de Chang-dong Lee
“Ela é adorável, não achas? Adormece em qualquer lado em 10 segundos.” Este lado adorável que o filme preserva, vem do conto de 20 páginas de Haruki Murakami que Chang-dong Lee estende num filme de mais de duas horas. Muito atmosférico, um biombo cultural (William Faulkner, Miles Davis) que leva demasiado tempo de sugestão em sugestão, revelando a cortina do exercício cinematográfico de base literária, que quando se resolve num momento de pura visceralidade, já a consciência do espectador se encontra pré-adormecida.
Tal como no L’avventura (A Aventura, 1960) de Michelangelo Antonioni, existe uma mulher que desaparece sem que seja dada qualquer explicação. É a tal mulher que adormecia em segundos e que terá entrado no sono eterno. Se houve crime nunca saberemos. Existem duas vias paralelas no filme. A do plano da realidade e a do plano da imaginação. O protagonista é um jovem que aspira a tornar-se escritor. Está a escrever um romance, diz ele. Chang-dong estará a fazer um filme e a fazer literatura. Um grandessíssimo “empata fogos”.
Ricardo Gross
In Fabric (2018) Peter Strickland
Nesta edição do IndieLisboa a secção “Boca do Inferno” encontra-se dividida em duas longas maratonas que se prolongam pela madrugada e algumas sessões extraordinárias dedicadas a títulos específicos. Numa destas sessões foi exibido In Fabric (2018), o muito aguardado novo filme de Peter Strickland, autor de um dos melhores filmes de terror da ultima década: Berberian Sound Studio (2012). Peter Strickland faz cinema de género com muito pouco sangue, explorando os mecanismos que codificam o cinema de terror. A acção de Berberian Sound Studio passa-se num estúdio em que actores fazem a dobragem e técnicos de efeitos especiais criam manualmente sons para um incerto filme de terror italiano, que o espectador não chega a ver. Numa homenagem ao softcore europeu das décadas de 1970 e 1980, The Duke of Burgundy (2014) reflecte sobre os rituais eróticos, entre uma mulher que estuda borboletas e traças e a sua amante. In Fabric apresenta um ponto de encontro entre estes dois filmes, propondo uma viagem pelo cinema de género europeu, com paragens no gótico inglês, no giallo italiano e o no erótico transnacional de Jess Franco.
Passado na década de 1990, de onde repesca, como matéria narrativa, a plataforma de encontros amorosos Lonely Hearts e os analógicos atendedores de chamadas, In Fabric segue o percurso de um vestido amaldiçoado. Enquanto o vestido muda de dono, trazendo consequências terríveis que acontecem sem qualquer julgamento ou lógica, o fundo é um tipo de loja de roupa entretanto extinto, durante um período intenso de vendas. Durante o dia, a equipa da loja induz clientes com um discurso rebuscado para traduzir as palavras simples das técnicas comerciais. À noite entrega-se a luxuriantes rituais eróticos. O cliente envolve-se nos rituais da compra e nas expectativas que lhe interessa cumprir, a partir do poder hipnótico e obsessivo do consumismo. Com In Fabric, Peter Strickland abandona os limites da construção de cenários interiores, mundos confinados e de grande controlo como o estúdio de som ou a casa senhorial, para se aventurar nas ruas de Londres que apresentam um maior desafio para o seu registo estilizado. Algo que combina com o desafio de apresentar a passagem do vestido para os últimos donos num formato que subtilmente evoca um certo realismo social de tradição inglesa e que parece questionar a anterior exímia construção formalista. Para o espectador que aceitar a proposta de equilíbrio entre dois mundos que, à partida, não se parecem tocar, In Fabric é uma aposta ganha.
Carlos Alberto Carrilho
Past Perfect (2019) de Jorge Jácome
Um dos elementos mais cativantes desta nova curta-metragem de Jorge Jácome é a forma delicada como gere a sua estrutura heterogénea. Baseada num peça de Pedro Penim, intitulada “Antes”, e adaptando um diálogo entre um psicanalista e um dinossauro, Past Perfect começa por ser um filme de natureza ensaística sobre esta ideia de que no passado era tudo melhor do que no presente. Sem personagens visíveis e em imagens tremeluzentes, desfocadas, duplicadas, o espaço surge-nos indefinido. Já o tempo é o de escavar e procurar por uma golden age, um “passado perfeito” que dê conteúdo a essa ânsia de olhar para o feito, o dito, o vivido, o filmado, como momentos de idílica completude. O diálogo mudo vai recuando ao longínquo ano de 2014, mas também ao início da 1ª Guerra Mundial, à reflexão de Benjamin sobre o progresso, à poesia de Schiller, etc.
A gestão de que falava acomoda esta dimensão ensaística e visualmente experimental, numa cadência que vai passando por diferentes estados: o sarcasmo, o drama existencial, a surpresa, os momentos de verdadeira/fake nostalgia, o apaziguamento vagamente romântico e doce acerca de uma ideia de fim com esqueletos aninhados para (quase) todo o sempre. Se recordarem o final de Flores (2017), curta premiada com o prémio novo talento na edição de 2017 do Indielisboa, ela terminava com um dos jovens filmados a dirigir-se à câmara e sentíamos uma certa reviravolta emocional que, de certa forma, unia com laço forte os momentos documentais, ficcionais, românticos que acabáramos de ver. Jácome revela semelhante talento em Past Perfect: a perfeita consciência do timing de comunicação emocional com espectador. Os planos a negro para pontuar o diálogo, a mudança de tempos, a pausa para a introdução do twist em torno de uma melodia bela e hipnotizadora, a filosofia da cultura abraçada ao karaoke, mesmo a forma como o efeito da cena final volta a laçar tudo num tom delico-doce. O que sentimos no cinema de Jácome é que uma vez “presos” nas suas imagens ficamos sujeitos às suas regras e isso é a maior liberdade que o espectador pode sentir diante de um artista que sabe o peso da responsabilidade. Nestes pouco mais de vinte minutos faz-nos caminhar pela terra, pelo início dos tempos, pelo osso, pela nostalgia, pela pura exaltação. It’s a cinematic party.
Carlos Natálio
Divino Amor (2019) de Gabriel Mascaro
Toda a vida é um milagre, o resto é burocracia. A frase não é retirada do filme de Gabriel Mascaro, é uma interpretação sintética do sentido do filme com base numa cena aparentemente sem importância de maior. A vizinha de Joana (Dira Paes) entrega-lhe uma caixa contendo uma ninhada de cachorros nascidos da cobrição indesejada do cão de Joana. A ironia desse momento também é marcante. Joana desespera por uma gravidez e vai largar a caixa à beira da estrada, depois de olhar os cachorrinhos um a um, sendo impossível ao espectador não ficar maravilhado com o milagre da vida traduzido naquelas pequenas criaturas. Toda a vida é um milagre, mas o homem até na fé vive preso a explicações, e na vida não se dá conta das suas distracções.
Mascaro filma o Brasil de 2027 em tons de cromoterapia, no qual a fé se tornou uma espécie de função pública que a todos atinge, onde existem drive-thrus para os automobilistas se encontrarem com o seu pastor para aconselhamento e oração, e onde os centros religiosos têm práticas que associamos a clubes de troca de casais, tudo em nome do casamento e da procriação endogâmica entre evangélicos. Mas o homem, como o seu semelhante de há dois mil anos, não acredita no milagre quando o milagre acontece. Este é um belo regresso aos filmes de Gabriel Mascaro, que olha para um futuro próximo e se atreve a filmar uma imaculada concepção.
Ricardo Gross
Leto (2018) de Kirill Serebrennikov
Na IndieMusic, secção que faz a ligação entre o cinema e a música, encontrámos Leto (Summer, 2018) de Kirill Serebrennikov, um ano depois de se estrear na Competição Oficial do Festival de Cannes, excelente retrato ficcionado, distante do modelo mais convencional de documentário que abunda neste recanto do festival. Leto desenha o universo musical na cidade de Leninegrado (actual São Petersburgo) em inícios da década de 1980, anos antes da chegada da Perestroïka. Numa União Soviética, em que impera um ambiente hostil à música rock e às manifestações ocidentais, os discos de ídolos de rock são contrabandeados, enquanto cresce o número de músicos e de bandas. Numa das primeiras cenas é apresentado um concerto em que o público, sentado numa plateia, é impedido de se levantar e expressar, controlado por seguranças. Num ficcionado retrato geracional, entre o musical e o biopic, Leto conta a história de um triângulo amoroso – Mike, a sua mulher Natacha e Viktor Tsoï -, tendo como cenário o clima histórico, social e político da época. Para Kirill Serebrennikov a utilização do preto e branco é a única forma de contar a história da rebeldia desta geração inocente e pura, pois a noção de cor surgiu mais tarde no inconsciente colectivo russo.
Leto desperta um paralelo perturbante entre a União Soviética comunista de Leonid Ilitch Brejnev e a Rússia democrática de Vladimir Putin. A rodagem, que aconteceu durante o Verão de 2017, foi interrompida pela deportação de Kirill Serebrennikov para Moscovo, em regime de prisão domiciliária, sob a acusação de fraude, considerada falsa por críticos do governo de Putin. Serebrennikov era director artístico do Centro Gogol, complexo multidisciplinar dedicado à produção de vanguarda, localizado em Moscovo. O contexto de pressão política do Centro Gogol não é muito distante do ambiente que vivia a comunidade retratada em Leto, o seu fogo interior, as suas motivações e os seus obstáculos. Leto tem estreia marcada para as salas portuguesas durante as próximas semanas.
Carlos Alberto Carrilho
Fordlândia Malaise (2019) de Susana de Sousa Dias
Um dos gestos que mais vem trabalhando Susana de Sousa Dias é o de problematizar e diversificar as formas pelas quais as imagens fixas de um arquivo podem ser negadas, acrescentadas, anotadas, ressuscitadas no seu movimento para um presente. E isto quer pelo trabalho sobre o som (vozes, comentários, mas não exclusivamente), quer pela modificação da imagem (os fades, as desacelerações). Nesta curta-metragem sobre Fordlândia, cidade criada pelo americano Henry Ford no centro da Amazónia, e hoje semi-abandonada, esse gesto de acordar o fantasma nas imagens torna-se explícito nos primeiros momentos. Visitamos aquele espaço, pela primeira vez, através dessa imobilidade, dessa cristalização-morte das fotografias de arquivo sobre a cidade à época, e é a aceleração, repetição e montagem ao tom de uma percussão dançante que Susana irá promover uma tentativa de dar vida, ressuscitar esse espaço. Sambar o arquivo, gesto audaz. Why not?
Poderíamos dizer que a essa “reanimação” sucede-se um filme acerca de uma comunidade fantasmática, planos de drone, calmos e apaziguados, um “western abandonado” em que as poucas pessoas vão passando, muito raramente, como formigas. Mas talvez interesse mais o mapa de um abandono, a genealogia de um “sonho que deu errado”, um duelo de aves que se cruza no céu. Uma das senhoras que ouvimos no filme diz: “você não vê ninguém, não tem um vivente (…) não tem um movimento para as pessoas se distraírem…”. Talvez este desabafo seja um bom comentário para olhar para esta bela obra de Susana de Sousa Dias. As pessoas ouvidas e nunca vistas (excepto numa adenda colorida), pelo seu movimento, nunca são distracções: ficamos a sós com o fantasma do espaço, com as casas, os espaços abertos, os caminhos pouco percorridos, as oficinas abandonadas. São estes espaços os habitat das narrativas míticas, de uma alma borboleta de passagem, de uma maldição, de uma câmara que se eleva, espreguiçando-se, ou de uma rádio que, misteriosamente, dá sinais de vida.
Carlos Natálio
Ich war zuhause, aber (2019) de Angela Schanelec
Observadas em separado, as qualidades do filme de Schanelec são indesmentíveis. A procura da expressividade pura das imagens, o rigor do quadro (e não existe um só plano banal em todo o filme), uma qualidade fotográfica que tira partido das fontes naturais de luz, tudo extremamente calculado, tal como calculados são os diálogos que por um lado problematizam a própria matéria intelectual do filme, confrontando verdade e fingimento, morte e teatro, e por outro abrem para leituras feitas a partir de uma dimensão de fantasia.
É um objecto que se apresenta fragmentado nas suas várias pistas. Reconhece-se nele a influência do cinema de Robert Bresson e até há um burro se preciso fosse tal sublinhado. Mas tantas pistas que são apenas pistas, servidas em tom hierático e lacónico, não compreendem um filme verdadeiramente satisfatório. Angela Schanelec pugna ainda por uma narrativa minimalista e a única porta de acesso ao mistério de Ich war zuhause, aber é ficar mesmo à porta, contemplando a frieza das suas imagens cristalinas. Ficamos no lugar do jumento, com que o filme abre e encerra.
Ricardo Gross
O Mar Enrola na Areia (2019) de Catarina Mourão
A nossa memória crê-mo-la drama intenso, romance mítico, filme de acção, mas quase sempre nos enganamos. A memória é filme experimental, faca de dois gumes, com a banda som e a banda imagem entre aquilo que achámos que era e que poderia ser; entre o que foi e o que filmámos com a nossa percepção; a percepção-película cujo tempo vai desgastando o registado; o grão a entrar nas histórias, a areia a enrolar-se no mar ou era o contrário…? Catarina Mourão quando fazia o seu filme anterior, A Toca do Lobo (2015), encontrou num filme familiar uns segundos de uma figura conhecida das praias portuguesas nos anos 50. Uma lembrança de um homem conhecido como “Catitinha” que vinha junto das crianças brincar com elas, contar-lhes histórias. Ninguém sabia muito bem quem era, de onde vinha, uns diziam que tinha perdido um filho num acidente e enlouquecera.
A partir daqui e com recurso a vários filmes balneares da época, Catarina expande, distorce, contamina, efabula essa memória de infância. Estamos de volta às praias de “crianças chilreantes” e “epidermes tostadas”, lado a lado com barraquinhas “invisíveis” e fechadas onde as freiras se banhavam nuas ao sol, as praias dos banhos compulsórios das crianças, dos rebanhos de meninos e meninas nas sestas obrigatórias. Estamos no tempo do cinema mudo com cartões que evocam um tempo e uma açcão (neste caso, uma memória), ao mesmo tempo que no gesto do arrêt sur l’archive. Idílio familiar e experimentalismo visual. Do lado de lá de cada memória inocente, esconde-se, latente, uma possibilidade perversa. A versão oficial dos arquivos de filmes familiares, oficiais, amadores, quando apanhados pelo gesto da manipulação sobre esse mesmo arquivo (o digital fez explodir esse gesto, mas daquele não é exclusivo, evidentemente) especulam sobre o que não é dado a ver: um apito aterrorizador, um toque no sítio errado, uma versão oficial e cândida dos tempos de relaxamento e férias, problematizada pelo poder ambíguo do cinema. Tudo isto trabalha e dá a ver este excelente filme de Catarina Mourão.
Carlos Natálio
Sophia Antipolis (2018) de Virgil Vernier
Numa clínica de cirurgia plástica, mulheres conversam com um técnico sobre padrões de beleza. Têm vontade de fazer uma operação de elevação dos seios, clinicamente conhecida como mastopexia, para os tornar firmes ou maiores. Reposicionando o mamilo e eliminando o excesso de pele, o resultado é o reposicionamento da mama numa posição aparentemente mais correcta e harmoniosa. São bastante jovens, quase adolescentes, e parece que ainda não sofreram as causas da flacidez do peito, como a idade, a amamentação, a menopausa ou as oscilações de peso. Um artigo de jornal anuncia o colóquio “Journées scientifiques”, que durante três dias acontece no centro de investigação Sophia Antipolis, numa oportunidade para os profissionais “evocarem um futuro conjunto”. Uma mulher anuncia, de porta em porta, a desordem do mundo, com o aumento da violência e da solidão. Para receber o fim do mundo, um grupo organiza sessões que advoga que das cinzas do velho mundo, uma nova era será construída. Em 1999, uma vietnamita viaja para França, com 18 anos. Uma amiga tinha-a inscrita num site de encontros para franceses que procuravam mulheres do Vietname, da Tailândia ou das Filipinas. O pretendente tinha o dobro da sua idade e morreu poucos anos depois, deixando um neto com quem ela passa todas as quartas-feiras. Do companheiro recebeu o apartamento e algum dinheiro, que não a obrigam a trabalhar. Mas sente-se sozinha, entre a vontade de regressar ao Vietname ou ficar num país que ainda sente como estranho. Uma adolescente abandona a casa da família sem deixar rastro. A mãe mantém esperança de que um dia ela regresse. Dois seguranças negros participam em acções de milícias populares que combatem a crescente insegurança urbana. Nos treinos, o discurso é racista, intolerante e populista.
Estas são algumas das histórias que povoam Sophia Antipolis (2018) de Virgil Vernier, realizador francês de ascendência romena, frequentador habitual dos festivais de cinema portugueses. Após uma anterior longa-metragem situada nos subúrbios parisienses, Mercuriales (2014), Virgil Vernier ruma em direcção ao Sul de França, até ao luxo e o sol da Côte d’Azur. Sophia Antipolis é o nome de um parque tecnológico, criado entre 1970 e 1984, que abriga empresas na área da investigação e centros de estudo. Dentro de Sophia Antipolis, existe uma comunidade residencial, servida por um centro comercial que oferece diferentes serviços. Um dos desafios que impulsionou a sua criação, foi a promoção do relacionamento entre as pessoas e de um sentido de comunidade. Na confluência entre os registos documental e ficcional, Virgil Vernier embrenhou-se nos círculos que pretende representar para escrever o argumento e recrutar os actores. Não está interessado na face mais reconhecível do parque tecnológico, mas de estabelecer um mosaico de histórias de personagens invisíveis que procuram respostas e eventualmente nunca se cruzarão. Sob o sol opressivo da Côte d’Azur, a solidão é o seu o único denominador comum.
Carlos Alberto Carrilho