This was to tell America about a China which they had never before been told about truthfully and completely
Joris Ivens, The Camera and I (1969), p. 141
The 400 Million (1939), de Joris Ivens, é um documento histórico – da Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945) e da história do cinema documental. Exemplo paradigmático de expressão artística de solidariedade transnacional, este filme atesta, a números níveis, as possibilidades e limitações desta, bem como o visionarismo de Ivens. A Cinemateca passa-o dia 27 de Maio.
Joris Ivens (1898-1989) é um dos mais importantes documentaristas do século XX, um século cujas esperanças e tragédias ele filmou um pouco por todo o mundo. Nascido na Holanda, educado aqui e na Alemanha, viveu nos Estados Unidos e na Europa nos dois lados da Cortina de Ferro. Trabalhou neste continente, na Ásia, na América Latina e em África. Foi pela primeira vez à China em 1938 – para filmar o que viria a ser The 400 Million – e acabou por voltar várias vezes ao longo da sua longa carreira.
Depois de The Spanish Earth (1937) sobre a Guerra Civil de Espanha, Joris Ivens virou as atenções para a invasão japonesa da China. Uma brutal guerra não declarada começara em Julho de 1937, e vários dos que haviam acompanhado o que se passara (e ainda se estava a passar) em Espanha voltaram as atenções para a Ásia. Entre eles estavam Ivens e colaboradores seus – também eles europeus trotamundos, nomeadamente John Fernhout (creditado como John Ferno), director de fotografia e realizador, e o fotógrafo Robert Capa, que Ivens recrutou para o seu trabalho na China em parte para que a distância atenuasse a dor pela perda da sua companheira, a fotógrafa Gerda Taro que morrera em Madrid durante a guerra. Capa, aliás, permaneceria na China por mais tempo que Ivens. O filme deixa claro, desde a abertura, que a o conflito que se travava na China era relevante muito para além das suas fronteiras: estabelecendo uma ligação com o que se passava em Espanha, é explicado especificamente que as “massas pacíficas da humanidade” – um quinto dela – ali travavam uma “guerra de defesa” contra o fascismo. O adversário, é também clarificado, não era o povo japonês, mas sim a “loucura militarista” do país vizinho.
O filme foi um projecto transnacional desde o início. Nos Estados Unidos, Ivens garantiu financiamento através de uma série de contactos. Um deles foi Luise Rainer, actriz nascida na Alemanha que protagonizara The Good Earth (1937), adaptação do romance de Pearl Buck. Crucial foi o contributo de chineses americanos que angariaram fundos. A embaixada chinesa em Washington também apoiou o projecto. Além da equipa internacional que acompanhou Ivens na rodagem, importa notar, igualmente, a presença de imagens de Xangai captadas pelo fotojornalista chinês H. S. Wong. Após as filmagens, a banda sonora foi assegurada por Hanns Eisler, compositor austríaco exilado nos Estados Unidos, colaborador de Brecht e mais tarde autor do hino da RDA. A montagem esteve a cargo de Helen van Dongen, compatriota e colaboradora de longa data de Ivens. A narração foi escrita pelo americano Dudley Nichols, que, no mesmo ano, assinou o argumento de Stagecoah (1939) de John Ford. A audiência alvo era, acima de tudo, norte-americana; o filme mostra o que se passava nos Estados Unidos perante o conflito asiático: por um lado, a exportação de aço para o Japão, denunciada como estando a contribuir para atacar civis chineses; por outro, a mobilização da sociedade civil em campanhas públicas de angariação de fundos para a resistência chinesa. Ivens está claramente de um dos lados – isto não é um filme neutral, é uma expressão de solidariedade e resistência.
Ivens está claramente de um dos lados – isto não é um filme neutral, é uma expressão de solidariedade e resistência.
O realizador não tinha uma ideia fixa sobre o que o filme deveria ser, embora tivesse imaginado algumas hipóteses, incluindo uma estrutura tripartida que incluiria uma primeira parte sobre contexto político e económico, uma segunda com cenas de batalha, nomeadamente da vitória chinesa em Tai’erzhuang, e uma última parte centrada num caso individual de resistência – um jovem ou um casal. Vendo o produto final, parece óbvio que as duas primeiras partes estão de facto presentes, mas o retrato humano é mais elusivo e raras vezes individualizado ao nível da não-elite.
Ivens passou cerca de seis meses na China filmando a então capital temporária, Hankou (parte de Wuhan) – para onde se transferiu o governo nacionalista devido à ocupação japonesa de Nanjing, antes de mudar para Chongqing, onde permaneceu até ao final da guerra -; a frente de batalha em Tai’erzhuang; Zhengzhou; Xi’an e os bombardeamentos em Guangzhou. À ida e no regresso, escalas na então colónia britânica de Hong Kong permitiram importantes contactos organizativos, incluindo o acesso a Soong Ching-ling [Song Qingling]. Soong Ching-ling era a viúva de Sun Yat-sen, o venerado “pai fundador” da República da China cuja visão de uma China plenamente soberana, unida, e moderna são mencionados – por palavras ou imagens – em The 400 Million. Ligada a círculos democráticos e anti-imperialistas e não partilhando da hostilidade da elite nacionalista para com os comunistas, Ching-ling era irmã de Soong May-ling [Song Meiling], a mulher de Chiang Kai-shek, o líder dos Partido Nacionalista (Kuomintang) e figura máxima do governo chinês na época. Conseguir contactos a este alto nível garantiu a Ivens apoio institucional suficiente para poder filmar na China. Mas talvez o apoio tenha ido além do que o realizador pretendia.
Os escritos de Ivens sobre a rodagem de The 400 Million contêm várias passagens exprimindo a sua frustração com o controlo rigoroso que as autoridades nacionalistas impuseram ao seu trabalho. Por vezes, Ivens reconhece que o excesso de zelo quanto à imagem que seria transmitida da China tinha alguma justificação, dada a torrente de retratos discriminatórios e desrespeitadores que prevaleciam nas produções audiovisuais de ficção e documentário sobre o país (e a Ásia em geral). O apoio internacional à China era, naquela altura, ou velado ou inexistente – mudar isso era boa parte do objectivo do filme. Mas Ivens parece ter menos paciência para com a relutância das autoridades chinesas em deixarem um estrangeiro filmar na linha da frente, algo compreensível tendo em conta o que poderia vir a ser a repercussão internacional se lhe acontecesse algo de mal.
Tal interferência estava também ligada às tensões da Segunda Frente Unida, a aliança frágil entre Nacionalistas e Comunistas para fazer frente às forças japonesas. No entanto, os seus desentendimentos não estavam muito longe da superfície. Que Ivens se sentia próximo dos comunistas não seria novidade para os Nacionalistas e explica parte das elaboradas – e largamente bem sucedidas – manobras que efectuaram para o impedir de chegar à maior base comunista ou de dar crédito aberto a figuras conhecidas do partido. Uma das manobras é contada por Ivens e várias vezes citadas em obras sobre o seu cinema: o realizador solicitou autorização para filmar a Grande Muralha pois sabia que as guerrilhas comunistas do Noroeste operavam perto. Os seus guias concordaram, mas levaram-no a outra secção da muralha, onde havia mais ruínas do que comunistas. A ideia de filmar Mao a jogar basquetebol não se materializou mas, apesar das restrições, um observador mais atento não deixará de distinguir claramente várias figuras ilustres do PCC em The 400 Million: Zhou Enlai – não identificado –, que viria a ser o primeiro Primeiro-Ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China (RPC) depois da sua fundação em 1949; o comandante militar Zhu De; ou o escritor Guo Moruo discursando para uma multidão. Numa das cenas em que a voz off fala na bandeira nacional, o que se ouve a acompanhar é a Marcha dos Voluntários, tema composto para um filme de resistência que viria a ser o hino da RPC.
Antes de deixar a China, Ivens arranjou maneira de passar a sua câmara a um membro das forças comunistas, para que chegasse à sua principal base durante a guerra, sediada em Yan’an. O receptor era nada mais que Wu Yinxian, fotógrafo chinês que trabalhou como director de fotografia em importantes “filmes de esquerda” chineses nos anos 1930 e viria, décadas depois, a ter uma posição cimeira na Beijing Film Academy.
O retrato humano pode não ter sido construído com o pormenor individualizante que Ivens queria, mas é impossível ver o filme e não ver ali precisamente um louvor à resiliência e resistência dos cidadãos chineses face à agressão do seu país. A ideia de uma nação unida que pôs em segundo plano rivalidades e divisões em nome de um combate comum é evidente na alternância de cenas filmadas em que se vêem altos escalões políticos e militares com outras captadas em fábricas, frentes de batalha ou em plena rua. Ainda assim, importa salientar que há uma dimensão de encenação em algumas das imagens que talvez escape ao espectador menos informado. Por exemplo, nas suas memórias, Ivens refere que tentou filmar uma manifestação espontânea em Xi’an, durante a qual quatro estudantes, entoando canções de resistência, juntaram uma pequena multidão, mas os representantes que as autoridades destacaram para o acompanhar impediram-no de o fazer, ao ponto de um dos “censores” lhe ter tapado a lente com a mão. Disseram-lhe que essas imagens transmitiriam uma ideia das massas populares chinesas como sujas e desorganizadas. Na manhã seguinte, uma manifestação muito maior foi orquestrada para que Ivens e a sua e equipa filmassem à vontade. O realizador incluiu as imagens no filme, mas manifestou a sua oposição ao entrecortá-las com grandes planos de Soong Ching-ling, subtil personalização de uma China alternativa. Contudo, o exemplo da manifestação supostamente convocada “para estrangeiro filmar” pode também ser lida de outra forma, como prova da capacidade de os Nacionalistas forjarem a sua própria imagem do que uma China moderna deveria ser. Aliás, a combinação de referências constantes aos feitos de uma longa e contínua civilização chinesa, com planos da sua industrialização e expansão de redes de transporte e infraestruturas, não destoa nada do que era a visão dos Nacionalistas. Basta referir que um dos escoltas que Madame Chiang Kai-shek designou para a equipa de Ivens, e que teve uma influência considerável no que o filme veio a ser era o general Huang Renlin, secretário-geral do War Area Service Corps do Conselho Militar Nacional, também ligado ao Movimento Nova Vida que os Nacionalistas promoviam desde meados dos anos 1930.
Ivens queria filmar guerrilhas em acção, de certa maneira procurando na China o que vira em Espanha. O controlo a que o seu itinerário esteve sujeito fez com que tal não fosse possível. Ainda assim, a ideia de mobilização total para a resistência está bem patente no filme. Vemos, por exemplo, trabalhadores dos campos a pegar em armas para combater. A violência da guerra afectava, indiscriminadamente, velhos e novos, pessoas e animais, paisagens naturais e edificadas. Por isso, a resistência que Ivens mostra era também transversal, envolvendo não apenas homens, mas também mulheres; não só adultos, como jovens e até crianças; não somente soldados e operários como intelectuais. Não apenas chineses, mas também estrangeiros solidários como Ivens.
O público não acorreu a The 400 Million como Ivens esperava. Na primavera de 1939, a guerra na Ásia foi relegada para segundo plano pelas audiências americanas e europeias, mais interessadas na invasão nazi da Checoslováquia. A comunidade sino-americana encheu a sala na estreia em Nova Iorque, mas a exibição do filme na Europa enfrentou várias dificuldades. Na Holanda natal de Ivens, o filme só foi aprovado sem cortes no final da guerra, em 1945. O cineasta lamentou nas suas memórias de 1969: “O público não se apercebeu que aquela era a mesma guerra que o nosso filme mostrava – ou não quis perceber”. The 400 Million não foi o primeiro nem seria o último documentário transnacional sobre o conflito sino-japonês. Um dos mais famosos, The Battle for China (1944) – parte de Why We Fight (1942-1945), de Frank Capra – viria mesmo a reutilizar imagens de Ivens. É interessante notar aqui não só a relevância do filme como obra de solidariedade transnacional no seu propósito e produção, mas como exemplo paradigmático de como se filma um teatro da Segunda Guerra Mundial de uma perspectiva global, quando a guerra na China não era vista como tal.
The 400 Million passa na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema numa double bill com The City (1939) de Ralph Steiner, dia 27 de Maio às 18h30.