Uma das histórias que Orson Welles mais gostava de contar era a do dia em que conheceu Ernest Hemingway. Decorria o ano de 1937, Welles (na altura, 22 anos), já com uma dose considerável de sucessos radiofónicos e teatrais no currículo, tinha sido contratado para ler a narração do documentário de Joris Ivens sobre a Guerra Civil Espanhola, The Spanish Earth (1937), escrita pelo autor americano. Quando o dia chegou, Welles entrou no estúdio e, sob o olhar atento de Hemingway, recebeu o argumento ao qual teria de emprestar a sua voz. O futuro cineasta, ao deparar-se com um texto que, segundo ele, era prolixo, sugeriu reduzir o peso literário que o filme levaria ao deixar, ocasionalmente, as imagens falarem exclusivamente por si. O escritor, após ouvir as sugestões de Welles, respondeu-lhe, “Vocês, mariconços do teatro, acham que podem chegar aqui e ensinar-me a escrever narrações.” Welles ficou espantado com a insolência desta resposta e decidiu que, se era um homossexual que o escritor queria, ele iria dar-lhe um. Replicou-lhe então com uma voz efeminada: “Ó senhor Hemingway, você acha que por ser tão grande e forte e por ter tantos pêlos no peito me pode intimidar?” O resultado? Hemingway pegou numa cadeira, Welles pegou noutra, e à frente das imagens daquelas pessoas a morrerem, dois dos génios mais talentosos do século XX andaram à luta.
Com este pequeno episódio em mente, não deixa de ser curioso observar o protagonista do muito adiado The Other Side of the Wind (O Outro Lado do Vento, 2018), filme que Welles disse que pretendia ser “an attack on machoism”. O realizador Jake Hannaford (John Huston), afinal, acarreta uma postura viril assumidamente inspirada na do escritor: mulherengo, alcoólico, amigo de touradas, praticante da caça grossa e com um gosto irresponsável pela aventura e pelo risco. Mas esta masculinidade não acaba por ser mais do que uma máscara para a sua homossexualidade reprimida que, quando revelada e mostrada como incapaz de se ver sexualmente satisfeita, acaba por conduzi-lo à auto-aniquilação.
O primeiro aspecto que salta à vista no filme de Welles é a forma saracoteada como as várias câmaras registam o decorrer da data de aniversário de Hannaford (“o 2 de Julho, a data de suicídio de Hemingway” como apontado por Joseph McBride em What Ever Happened to Orson Welles), divergente do seu reconhecível estilo visual. Apesar da crítica autorista da época o ter idolatrado, Welles tinha apreensões quanto à política dos autores, tendo dito numa entrevista aos Cahiers du Cinéma que, como reacção a ela, estava conscientemente a tentar-se desviar do que era esperado dele a nível estético a partir de F for Fake (1973). Comecemos por aí, por aquilo que define imageticamente Welles como um autor: a forte presença arquitectural dos cenários com os seus adereços, as iluminações dramáticas, os contra-picados que encurralam as personagens contra tectos, a já muito discutida grande profundidade de campo, toda esta componente plástica filmada em grande angular, que caracteriza o seu cinema como “barroco”. Em The Other Side…, o espaço e a luz são menos reflectidos, a grande angular é abnegada pelo uso de lentes zoom, predominam aqui os planos fechados ao nível dos olhos, filmados em diversos formatos (Super 8, 16 mm, 35 mm e stills, “uma babel de linguagens cinematográficas”, como James Naremore definiu em The Magic World of Orson Welles) dados numa montagem célere, cinética, convulsa nos seus planos curtos e raccords inesperados, no que parece ser uma progressão mais radical e desafiante da faceta avant-garde presente em F for Fake.
Goste-se ou não, o facto de se ver The Other Side… numa forma terminada que não desrespeita as intenções do Welles (…) é nada menos que um evento pelo qual devemos estar gratos em presenciar.
Ora, mas se esta abordagem volátil de formatos alternados em cortes aleatórios e sem motivação poderia parecer na época revolucionária, há que apontar que hoje, com cineastas como Oliver Stone – que viu uma rough cut de The Other Side… que bem pode ter sido a principal inspiração para os seus filmes da década de 90 – e a influência da MTV na montagem, perdeu até certo ponto a sua frescura. E tal como nos filmes de Stone, esta necessidade enérgica de assimilar instantaneamente a informação visual e sonora, assim como a da câmara em recordar permanentemente a sua presença, provam-se factores capazes de alienar alguns espectadores.
Mas talvez as maiores complicações surjam ao nível do argumento, alterado durante a rodagem pelas várias improvisações que Welles fez com o elenco. Escreve McBride, que trabalhou no filme em registo de auto-paródia (é ele que coloca a inolvidável pergunta, “A câmara é um falo?”), no já referido livro: “Não percebi por muitos anos que a maioria dos problemas de The Other Side… podiam ser rastreados (…) até ao seu argumento. (…) Achei o diálogo demasiado arqueado, elíptico e engraçado. Estar apto a trabalhar com Welles na reescrita das minhas próprias cenas ajudou-me a acalmar as minhas preocupações. Ainda assim, a apresentação das personagens, até mesmo as principais, recaía para o superficial. A estrutura às vezes parecia arbitrária, caótica, ou simplesmente não pensada, com muitos problemas de história e transições a serem resolvidos na fase de montagem.”
“Estrutura” é justamente o que parece estar mais debilitado em The Other Side… Motivado pelo aspecto satírico à Nova Hollywood que o seu filme acarretaria nas diversas intervenções de personagens reminiscentes de algumas das personalidades mais marcantes da altura (Pauline Kael, Robert Evans…), em entrevistas e discussões espontâneas com outras das próprias (Dennis Hopper, Paul Mazursky…) e até mesmo na inserção de fragmentos do filme dentro do filme [estilizado com base no cinema de Antonioni, principalmente Zabriskie Point (Deserto de Almas, 1970), fazendo uso de características como o erotismo, o simbolismo, o rock ‘n roll, a violência, a ausência de diálogos e o uso de espaços abertos desérticos], Welles (que só editou 40 minutos do filme final) abnegou a procura antecipada de uma estrutura cuidadosa que progredisse de forma lógica e subtil os seus elementos mais dramáticos. Como tal, a vertente homossexual de Hannaford e a amizade entre este e o realizador novato em ascensão (Peter Bogdanovich) estão, até certo ponto, narrativamente subdesenvolvidos ao serem abordados, maioritariamente, de forma esporádica, rápida e abrupta, no meio de um leque excessivo e “superficial” de personagens. Resulta, portanto, um filme buliçoso, confuso, sinuoso, caleidoscópico, que não deixa de ter os seus momentos cinematograficamente inspirados [aquela cena de sexo num carro com Oja Kodar é qualquer coisa como o equivalente lúbrico da batalha de Shrewsbury em Campanadas a medianoche (As Badaladas da Meia-Noite, 1965)].
No entanto, se Welles se quis afastar visualmente do que caracterizava o seu universo, repare-se como aquilo que o define temática e narrativamente é retomado: o início dado com a morte ou a informação da morte de uma personagem [Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941), Othello (Otelo, 1951), Mr. Arkadin (Relatório Confidencial, 1955)]; o efeito da idade e do progresso na destruição do protagonista, com a sua queda a representar sempre o fim de um mundo e dos seus valores [a chegada da industrialização em The Magnificent Ambersons (O Quarto Mandamento, 1942), o fim da Merry England em Campanadas a medianoche, aqui a Nova Hollywood a destruir a clássica mostrada pela rejeição – financeira e amorosa – de Hannaford e o consequente acidente provocado]; e aquele que é o tema central da obra wellesiana: a ruptura de uma amizade masculina (Kane e Leland, Quinlan e Menzies, Falstaff e o Príncipe Hal), aqui a separação entre o realizador de Bogdanovich e Hannaford no final. Sobre este último ponto, é necessário salientar como entre eles é estabelecida uma relação de dependência mútua (“Claro que vocês são próximos. Têm de sê-lo.”, diz-se deles a certo momento): Hannaford alimenta-se do sucesso emergente do seu protégé para sobreviver no sistema, enquanto que o outro da reputação histórica do mais velho, o que ecoa em parte a própria relação de Welles com Bogdanovich.
Goste-se ou não, o facto de se ver The Other Side… numa forma terminada que não desrespeita as intenções do Welles [contrariamente por exemplo, ao espúrio e lamentável Don Quijote de Orson Welles (Dom Quixote de Orson Welles, 1992)], que demorou mais de 40 anos a deixar de estar privado ao acesso público, e que envolveu o trabalho de centenas de pessoas (das quais boa parte já não chegará a vê-lo), é nada menos que um evento pelo qual devemos estar gratos em presenciar. E para responder a eventuais questões sobre o que teria sido o filme se Welles estivesse vivo, vale a pena reiterar que, para Welles, um filme era mais importante do que quem o assinava. Como era aquele monólogo que ele soltava em F for Fake? “‘Sejam de bom coração’, gritam os artistas mortos do passado vivo. ‘As nossas canções serão silenciadas, mas e daí? Continuem a cantar.’ Talvez um nome de um homem não importe assim tanto.”