Já temos os pés em Junho, mas a cabeça não saiu ainda de Maio. O mês passado é (re)visitado por estes walshianos, seguindo tendências ou colocando algumas reticências ao entusiasmo geral. Vamos das praias de um vagabundo renoiriano até “ao melhor filme da última edição do IndieLisboa”, passando por um serial killer mediático que é como “queijo e marmelada”.
O que mais me seduz em The Beach Bum (The Beach Bum: A Vida Numa Boa, 2019) é que todo o universo do filme nasce, eleva-se, ganha corpo, bebe umas cervejolas e fuma umas ganzas na pessoa de Moondog. Há todo um movimento centrifugador – extraordinariamente “empático” – baseado na velha verificação do Conde de Buffon de que “o estilo é o próprio homem”. No centro, portanto, está um Matthew McConaughey sem freios, que flutua na vida como num barco à deriva. Mas relaxem, porque não há stress: não veio do nada a convicção do protagonista de que, de facto, o mundo conspira para que este seja feliz.
O vagabundo rico e feliz, poeta embriagado com a vida, entre um Charles Baudelaire de havaianas e um Jean Renoir/Boudu MTV, é seguido pela câmara de Harmony Korine, e o filme é esta odisseia hedonista que vai ganhando forma de festa em festa até à grandiosa festa final (gargalhada que se ouve nos quatro cantos do mundo). A diversão é contagiante aqui, a única verdadeira droga. Uma alucinante e delirante viagem, uma espécie de hiper festivo – e maravilhosamente musicado – hang out movie, que retoma, nas cores e no ritmo, o anterior Spring Breakers (2012, Spring Breakers: Viagem de Finalista), fazendo seguir a obra de Korine por um caminho mil vezes mais interessante do que aquele que o trouxe até aos seus dois últimos filmes.
Luís Mendonça
Quem gosta de cinema sabe que muito, mas mesmo muito frequentemente, o vilão, o criminoso, é o grande sedutor. Como queijo e marmelada, o mal e a atracção sexual produzem o agridoce, a excitação, de uma suposta existência amena e desenxabida. Os casos dos serial killers com clubes de fãs e amantes (reais e platónicos) são apenas uma das declinações que vai variando de tom e que tanto abarca um Conde Drácula com um Cary Grant em Suspicion (Suspeita, 1941). Talvez por isso tenha sido tão evidente que o grande magnetismo sexual de uma vedeta de cinema como é hoje Zac Efron, só marmelada, tivesse tanto a ganhar ao juntar-lhe um queijinho bad boy. Neste caso, queijo da serra, sabor intenso, maldade “séria”, pois estamos a falar do assassino Ted Bundy que se crê ter violado e morto 35 mulheres. Este choque frontal entre estas duas realidades domina todo o trabalho do realizador Joe Berlinger, que, nos últimos anos tem feito vários documentários para televisão ligados à curiosidade mística que envolve a vida de muitos destes assassinos em série.
Zac Efron, com os seus piscares de olhos, lacinhos, olhares penetrantes, consegue apesar de tudo dar-nos uma ideia do que seria essa aura sedutora e comunicativa de um jovem que estudava direito e que a dada altura se defendeu em tribunal, reclamando sempre inocência, no primeiro julgamento televisionado nos Estados Unidos. O filme tem um conjunto de boas ideias mas nenhuma delas explorada de forma muito consistente: 1) o título do filme é um excerto da declaração final do juiz, o que tem o condão de expurgar a violência gráfica toda (ou quase toda) da obra para essa mesma dimensão verbal; 2) Berlinger filma a conversa e re-encontro na prisão de Bundy com uma ex-companheira (de quem esta virá a ter um filho) com um conjunto de travellings circulares como se a câmara pudesse mostrar tecnicamente o acto de seduzir e enredar alguém numa teia; 3) o aspecto mediático de todo o processo acaba por ser resolvido num conjunto de momentos de tribunal pouco marcantes e alguns planos de Lily Collins, a mulher que Bundy amava realmente, vendo o julgamento pela televisão. Como esta duplicidade entre a vedeta de cinema e a vedeta mediática parece ocupar todo o espaço, Extremely Wicked, Shockingly Evil and Vile (Extremamente Perverso, Escandalosamente Cruel e Vil, 2019) não é documentário reconstituído sobre os seus crimes, mas também não é eficaz do ponto de vista pessoal e familiar, onde as cenas superficiais se sucedem. De resto, o motivo da celebridade tem uma vida própria aqui, com os seus momentos videoclip e com a vontade de ir distinguindo as presenças famosas no ecrã: John Malkovich, Haley Joel Osment, Jim Parsons, James Hetfield…
Carlos Natálio
Como filmar uma beleza doente? Essa parece ser a questão que rege a câmara disfórica de Nadav Lapid. Talvez mais correctamente, como filmar uma demência deslumbrante? A questão é complexa, na medida em que o “doente” ou o “demente” tende a ser encarado como coisa vil e inestética. A resposta passa, necessariamente, por tentar preservar um estado de insanidade aberta ao deslumbre, através de um corpo e de um actor em estado de (des)graça gongórica. Posto doutro modo, para o realizador de origem israelita, o cerne deste seu filme está na perfeição de um físico greco-romano tomado por uma espécie de esquizofrenia performativa, entre o discurso recitativo e os estertores do bailado contemporâneo. Talvez a melhor cena de Synonymes (Sinónimos, 2019) seja logo uma das iniciais, quando o corpo nu de Tom Mercier percorre um vasto apartamento despojado de mobília, gritando e correndo entre as divisões, como se nesse momento, aquela pele molhada e aquele soalho flutuante fossem afinal de um bailarino em palco, coreografado (talvez) por Pina Bausch. No exercício de uma fisicalidade que ocupa o espaço e a banda sonora, num confronto com o despido dos corpos e das assoalhadas, o cinema de Lapid parece concretizar uma vontade de transcendência feita a partir do nada: apenas o contacto de um corpo com o que o rodeia. Percebe-se portanto o fascínio por este actor, descoberto no cinema com este filme, que desliza atabalhoadamente por cenas e linhas de texto como se o “Senhor Merda” de Leos Carax, fustigando as ruas impecavelmente correctas de Tóquio com o seu infecto cheiro, roupas rotas e atitudes desagradáveis. No fundo, Mercier partilha da mesma loucura de Denis Lavant, uma forma de abordar os personagens a partir de uma experiência xamânica em que o corpo é – literalmente – possuído por um espírito desregrado, o signo do caos.
E se faço referência ao desvario de Rogério Sganzerla, se cito o cinema de Carax e se escrevo com Andrzej Żuławski na ponta dos dedos, é porque de facto Synonymes se aproxima desse cinema de excessos, em que a literalidade é palavra de ordem e a força simbólica dos actos, dos ditos, das cores e dos lugares constrói um festival (ou melhor, um Carnaval) de signos perdidos, lançados no rebentar das ondas (e das bombas), no breu da incompreensão. Claro, que isso é o cinema desses realizadores, não o de Nadav Lapid. Se por um lado o realizador procura esse excesso, na vertigem do delírio, por outro, há sempre um desejo por aquele corpo perfeito, por aquele rosto recto, por aqueles músculos em tensão, pela fúria na avelã daqueles lindos olhos tristes e doentes. Lapid está encantado por uma ruína de um homem, e abre-nos então uma porta à destruição pelo olhar de um apaixonado. Não vemos a doença, não vemos a fúria, nem sequer a loucura, não sentimos a trepidação, nem o estouro do deslumbre. Para isso fazia falta que o amor que aquela lente transpira se rompesse, que a traça voasse em direcção à luz e nela ardesse. Lapid não é capaz de magoar a sua musa, de lhe quebrar o charme, nem sequer é capaz (e que seria muito mais fácil) de lhe tirar aquele casaco laranja que tão bem lhe assenta. Falta sujidade ao cinema de Lapid, falta a merda do Carax, falta o vinagre do Sganzerla, falta o sangue do Żuławski. Sem isso, resta-nos um ousado reclame de perfumes, quando podíamos ter algo como aquilo que houve entre John Cassavetes e Gena Rowlands.
Ricardo Vieira Lisboa
Habitualmente centro os meus textos sobre a questão da representação ética no cinema, porém evito canonizar qualquer tipo de fórmula para atingir tal desígnio. O motivo pelo qual me escuso a tamanho exercício, em primeiro lugar prende-se com o facto de ser impossível estabelecer uma qualquer fórmula que garanta um resultado eticamente válido. Em segundo lugar e não menos importante é o facto perverso a que esta lógica deu origem, porque são centenas os objectos bem intencionados que hoje se produzem, do feminismo ao queer, passando pelo clima à migração, contudo é importante não confundir que um objecto politicamente certo não o torna artisticamente válido. Em terceiro lugar, e resultante da negação dos anteriores princípios, a melhor de todas as éticas é saber estar à altura da situação, tal como nos relembrou Deleuze.
E é precisamente neste ponto que So Pretty (2019) se encontra, porque contrariamente à lógica programática e de quotas, ele é antes a captação de uma situação no qual a câmara, sem qualquer exotismo ou soberba do representado, constrói os seus personagens e situações em permanente fuga. É certo que muita verborreia contemporânea surgiu em torno do conceito de fluidez, mas é sobre o conceito que nos devemos deter. A importância da fluidez neste filme é essencial, porque é graças a este permanente fluxo que o representado nunca se deixa capturar. Só há género quando este é fixado: se aquele que é está em permanente trânsito, o ser é sempre outra coisa. Mas não é apenas o representado que traduz ou serve de conceito ao filme, a própria câmara incorporou o movimento de fuga. Através de um trabalho minucioso coreográfico, os seus personagens vão mutando os corpos através de enlaces e de desenlaces, porque o sexo não é apenas vivido em liberdade, ele é o garante dessa própria liberdade porque é o reconhecimento do outro e do seu desejo, da sua forma e da sua própria condição de mutabilidade. Mas tal como os corpos, os espaços tendem a transcender as contingências do presente. O exemplo mais visível é a cena em que as manifestações ocorrem, porque as vozes não se erguem especificamente contra Trump ou a investida policial não é acto isolado. A cena é antes a denúncia sobre um sistema sem face e atemporal que permitiu, permite e permitirá a sistemática manutenção da opressão sobre os corpos desviantes e sobre a impossibilidade de estes reclamarem da palavra no espaço público. Por todos estes motivos e sobretudo por uma delicadeza que sou incapaz de descrever sem arriscar a truncar a sua beleza imanente, este foi o mais belo filme da última edição do Indie Lisboa e certamente um dos mais interessantes deste ano.
Bernardo Vaz de Castro