Um belo filme cerebral, de lenta combustão e de pequenos gestos-momentos que se propagam no tempo para ganhar uma outra dimensão, e um ritmo a contratempo da vida moderna acelerada, é a poderosa proposta de Chang-dong Lee com o seu mais recente filme, Beoning (Em Chamas, 2018). É também um encontro, primeiro sob o signo da curiosidade, depois em conflito disfarçado, entre dois mundos opostos: a tranquilidade aparentemente inocente de alguém de poucas posses e poucas ambições mas curioso em saber mais do mundo – quer afinal tornar-se um escritor – versus o conforto existencial de alguém que tem tudo o que quiser ao seu alcance, sem que isso pareça ser suficiente para substituir uma empatia em falta. Se juntarmos a este embate uma terceira pessoa sob a forma de uma charmosa rapariga que divide a atenção entre os dois protagonistas masculinos, temos o palco montado para um jogo de ilusões e decepções, especialmente quando a rapariga de que falamos tem pretensões a actriz e está disposta a jogar com a realidade.
Onde há fumo há fogo? É a primeira imagem do filme: fumo a sair por trás de uma porta e só depois vemos a entrada de Jong-su, a personagem principal. Pouco depois este encontra Hae-mi, uma antiga conhecida de infância, e uma dança leva a copo que leva a uma cama. Sob o pretexto de Jong-su tomar conta de um gato enquanto Hae-mi vai de viagem, esta convida-o ao seu apartamento. Hae-mi explica-lhe que o apartamento apenas recebe luz solar directa durante um breve momento, quando a luz reflecte numa torre à distância para dentro do quarto. Em pouco tempo os dois estão nus na cama, numa desajeitada íntima cena de sexo, e é precisamente no momento em que Jong-su penetra Hae-mi que a tal luz ilumina o quarto, criando assim uma memória-associação ardente que Jong-su irá perseguir nas visitas seguintes ao apartamento. É também uma transformação do mundano em algo sublime, na forma como um momento é elevado a algo transcendental, e é algo que o filme irá também perseguir.
Quando Hae-mi regressa vem acompanhada por Ben, um outro coreano que encontrou na viagem. À medida que os três passam tempo juntos, e que ficamos a conhecer o contraste social entre Jong-su e Ben, que Hae-mi desloca a sua atenção para este último, ou melhor, que Jong-su retrai-se perante o triângulo amoroso, fica também clara a forma como Jong-su encontra dificuldades em adaptar-se ao mundo à sua volta, desorientado perante uma nova realidade. As diferenças entre Jong-su, que vive numa quinta e conduz uma velha carrinha, solitário e invisível, e Ben, que vive num apartamento luxuoso e conduz um Porsche, rodeado de amigos e família, são também reflexo de uma sociedade dividida, entre o mundo velho e o novo.
Além de uma incisiva crítica social, Chang-dong Lee vai deixando pequenas pistas na construção de um puzzle enigmático, e qualquer detalhe pode ter um significado maior quando repensado perante mais informação.
Ao mesmo tempo, além de uma incisiva crítica social, Chang-dong Lee vai deixando pequenas pistas na construção de um puzzle enigmático, e qualquer detalhe pode ter um significado maior quando repensado perante mais informação. É a tal transformação do trivial ou mundano em algo que pode afinal ser definidor de um momento, das motivações de uma personagem, ancorado numa realidade imediata que pode afinal ampliar gestos, intenções e desamparo. Se esta construção metódica de um mistério – que também passa pela omissão de alguma informação – lembra um certo cinema de David Fincher [em particular Gone Girl (Em Parte Incerta, 2014) e Zodiac (2007)] e os jogos e perseguições psicológicas de Alfred Hitchcock, Chang-dong Lee usa de forma inteligente a divisão social para acrescentar uma nova dimensão à tentativa de discernimento do que é ilusão e do desenhar de uma fronteira entre o certo e o errado.
Será tudo da nossa cabeça? Será que estamos a encontrar diferentes significados em algo que é mais inócuo? Quando num encontro entre os três num café, Ben finge ler o futuro de Hae-mi na palma da sua mão através de um truque de magia, é uma simples brincadeira ou revelador de um comportamento manipulador? Quando Ben pergunta a Jong-su sobre o porquê de este ter Faulkner como escritor preferido, é simples curiosidade ou uma tentativa de expor a ignorância de Jong-su perante Hae-mi? Se ao ficarmos do lado de Jong-su e do modo como este vê o mundo, será que podemos confiar no nosso “narrador”, ou afinal ele não é assim tão inocente ou diferente de Ben na sua obsessão? No centro de tudo, a personagem de Hae-mi é um enigma, e não ajuda que as várias histórias que conta possam ser fantasia ou esconder alguma verdade. Numa delas, Hae-mi revela os seus dotes de pantomima, afirmando mesmo de forma premonitória “quando te convences a ti próprio que algo está lá, é difícil não acreditar que está mesmo lá”.
Há uma sequência que divide o filme a meio e o define, a partir do qual este conhece uma metamorfose. A certa altura, Ben e Hae-mi aparecem de surpresa na quinta de Jong-su, e os três comem, bebem vinho, fumam erva, e Hae-mi dança e depois adormece. No alpendre, Ben fala sobre o seu prazer secreto em incendiar estufas, um pequeno gesto de vandalismo com que preenche o tédio, e que está à procura de repetir em breve – será que tem outro significado? Em pouco tempo, esta aparente harmonia desaparece e fica patente o descontentamento existencial de cada um dos três. Se Ben fala sobre o seu gesto de vandalismo e falta de empatia, em Jong-su cresce o ressentimento perante a impunidade de Ben, quer desse pequeno crime, quer da sua posição social, quer da aproximação a Hae-mi e culpa também esta, em vez de a si próprio. E Hae-mi conta histórias sobre a “the great hunger”, a vontade em descobrir o sentido da vida, e reflecte alguém perdido, que tanto quer encontrar-se como desaparecer. E depois… Hae-mi desaparece sem deixar rasto. Apaga-se a luz que Jong-Su tinha descoberto.
A partir daqui, a paranoia cresce e os acontecimentos inócuos anteriores começam a fazer sentido ao serem vistos com outros olhos. No filme anterior de Chang-dong Lee, Shi (Poesia (2010), acompanhamos a história de uma senhora mais velha que com o avançar da idade começa a perder a memória e que através do interesse na poesia aprende a ver o mundo de uma forma nova… mas quando descobre que o neto é parte de um grupo de 6 rapazes que violou uma rapariga na escola durante meses até esta se suicidar, ela vê o chão a fugir-lhe dos pés. O mesmo acontece a Jong-Su: primeiro descobre a luz, uma nova forma de ver o mundo através de Hae-mi, e depois esta extingue-se, deixando-o como um nadador sem fôlego suficiente para regressar à superfície, ou como um alpinista em queda sem nada a que se agarrar.
Um dos temas centrais do filme pela forma como a informação é apresentada é a ambiguidade, que abre a porta à interpretação sobre diversos eventos. A metamorfose que o filme conhece faz lembrar um outro filme, Norte, hangganan ng kasaysayan (Norte, the End of History, 2013) de Lav Diaz, um outro retrato de masculinidade problemática, no qual a monotonia quotidiana acumula-se de forma insustentável até um gesto irremediável. Será que a história das estufas era afinal uma metáfora para algo mais grave (já tínhamos percebido que Jong-Su não era muito bom com elas), ou é apenas tudo resultado de uma mente ferida, convulsiva? Qualquer que seja a interpretação, a imagem final é assombrosa – é a nossa vez de vermos o chão a fugir.