Os walshianos Duarte Mata e Samuel Andrade foram, juntamente com o crítico Rui Alves de Sousa, membros do júri da crítica da 10ª edição do FESTin – Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa. Nele, viram, avaliaram e discutiram os 6 filmes da secção competitiva, tendo atribuído o prémio de melhor filme do júri da crítica a Ferrugem (2018) de Aly Muritiba e ainda uma menção honrosa a Boni Bonita (2018) de Daniel Barosa. Os textos que aqui se seguem constituem o balanço dos filmes vistos, os cinco primeiros da autoria de Duarte Mata e o último de Samuel Andrade.

Aos Teus Olhos (2017) de Carolina Jabor
É inevitável não pensar no Jagten (A Caça, 2012) de Vinterberg a propósito desta história, onde um professor de natação é acusado pela família de um aluno de beijá-lo nos lábios durante a aula, tornando-se alvo de um processo violento de histeria colectiva. Mas Jabor serve-se de uma zona mais reconhecível pelo espectador que a do filme dinamarquês, a do papel contemporâneo das redes sociais como ferramenta inquisitória, partindo de nada mais do que uma suspeita infundada para provocar um linchamento virtual que inevitavelmente se expande para lá dos ecrãs. Serve-se dela para retirar a audiência da sua zona de conforto, numa procura da identificação com a sua personagem que, independentemente do narcisismo e observações sexistas que solte, não deixa de nos confrontar com a nossa condição de algozes movidos pelo ódio, pelo medo, por uma falsa noção de justiça. É menos impetuoso que o filme de Vinterberg (não há aqui equivalente para aquela cena na igreja), mas mais disperso e ambíguo, oscilando entre o protagonista, a família da suposta vítima e a directora da piscina, indecisa no que toca à acção moralmente correcta a tomar, sem que nunca se saiba os factos como um todo.
Mas, mais do que a sua relevância sociológica actual, o que impressiona em Aos Teus Olhos é a forma como o espaço é tratado em composições severas, com toda a verticalidade arquitectónica e frieza cromática dos cenários a criarem uma sensação de opressão, de rigidez, de clausura, de uma ordem que não pode permitir perturbações. É por estas zonas austeras que chegamos ao final, felizmente deixado em aberto. Não interessa quem fala a verdade, não interessa se o protagonista é culpado ou inocente, a sua vida está irreversivelmente arruinada e sem possibilidades de uma reintegração social e profissional plena. Conhecemo-lo seguro, inabalável e admirado, deixamo-lo atemorizado, humilhado e ofendido. Uma queda que resulta em afogamento, tal qual como num longo e último mergulho.

O Olho e a Faca (2018) de Paulo Sacramento
Se é verdade que parecemos, no começo, ser colocados em terreno hawksiano – um ambiente profissionalmente perigoso (uma petrolífera marítima, neste caso), a exploração do etos masculino numa comunidade exclusivamente de homens com os seus laços de camaradagem – Paulo Sacramento parece, ao contrário do cineasta americano, incapaz de dedicar o tempo devido à exploração aprofundada de cada um destes aspectos, julgando que um jogo de matraquilhos é o suficiente para transmitir uma sensação de companheirismo, ao mesmo tempo que se recusa em observar com o mínimo de precisão, rigor ou entusiasmo que seja as actividades destes profissionais. Rapidamente o filme vai acumulando, entre terra e mar, os dramas pessoais do protagonista (um dos membros da equipa, recentemente promovido) em catadupa que suplicam pela nossa empatia (o acidente de trabalho que resulta no falecimento de um colega, a rebeldia do filho, a morte do pai…), também explorados de forma meramente superficial e apresentados numa realização que chama permanentemente para si a atenção em ralentis, travellings de 360º e outros efeitos na esperança de criar, miraculosamente, um qualquer efeito dramático. Não cria, e se o protagonista sorri no final como uma manifestação de transcendência pessoal (após um entediante diálogo motivacional com o fantasma do colega referido), ao espectador só resta mesmo suspirar de exasperação. O Olho e a Faca é, em suma, tão orgânico, tão cuidado e tão credível como o amadoríssimo corvo digital que lhe aparece no fim.

Ferrugem (2018) de Aly Muritiba
O primeiro plano de Ferrugem é o da uma cabeça de uma enguia. O segundo o do rosto da protagonista. Pela montagem, é óbvio que Aly Muritiba pretende estabelecer uma ligação entre os dois seres desde o começo, e se de imediato não parece evidente qual é ela, mais para a frente se dirá: a enguia acarreta uma postura passiva até ser provocada e libertar uma descarga eléctrica. Assim acontece com a protagonista do filme, uma adolescente calma, amistosa e aparentemente inofensiva, que ao ter um vídeo íntimo com o ex-namorado divulgado na internet sofre um processo de ostracização e humilhação escolar, o que acaba por conduzir à sua “descarga”, isto é, o suicídio em frente às câmaras de vigilância do estabelecimento.
É de exemplos assim que Ferrugem abunda, onde o meio cinematográfico se vê explorado a vários níveis (montagem, mise en scène, a magnífica fotografia de Rui Poças a variar entre a vivacidade de cores fortemente saturadas no começo, por vezes atravessada pela intimidade de piscinas de sombras, para a amargura de um azul-acinzentado diurno depois) para criar um subtexto, uma impressão visual que transmita imageticamente as características e transformações morais e psicológicas das personagens, assim como a complexidade das relações entre elas: o travelling que acompanha a mão da protagonista a bater nas grades da escola, como se estivesse numa prisão; a distância emocional entre um rapaz e o pai implicada visualmente pela forma como são colocadas a olharem-se entre portas e janelas abertas, num exímio trabalho da profundidade de campo em enquadramentos dentro de enquadramentos; um plano-sequência com uma discussão num carro à chuva, com toda a actividade humana e diálogos que envolve tornados mais realistas graças a essa escolha de realização; o plano onde duas personagens lutam à beira-mar, ocupando a metade direita do enquadramento enquanto a esquerda é preenchida pela calma oceânica, opondo a indiferença da Natureza face à violência humana; ou a cena do confronto final, um plano fechado com a confissão do culpado pela divulgação do vídeo à mãe da adolescente, sem contracampo, enquanto em plano de fundo se encontra a fotografia da rapariga numa moldura enorme, tornando o enquadramento um reflexo explícito do arrependimento dele pela forte presença coabitada de uma representação dela no mesmo espaço.
É, de facto, impressionante como Muritiba usa um fait diver para criar um filme atmosférico, imprevisível e que de sensacionalista nada tem [lembramo-nos do Elephant (Elefante, 2003) de van Sant na forma firme como a câmara persegue a adolescente nos corredores escolares, bem apontada à nuca e com uma iminente sensação de violência prestes a detonar], capaz de partir de temas como a misoginia e o bullying sofridos pela vítima para terminar com uma abordagem sobre o remorso e a impossibilidade de expiação do criminoso. “Impossibilidade”? Sim, porque deixamos este último após o perdão lhe ser negado, aquando a sua confissão sentida. Quando se leva uma mãe a fazer o acto contranatural de enterrar uma filha, forçando um lar a lidar precocemente com a ausência, não há qualquer redenção possível. Fica apenas um miúdo a acarretar às costas o peso de uma morte, um rapaz para sempre corroído pela culpa, um coração coberto de ferrugem.

Todas as Canções de Amor (2018) de Joana Mariani
Dois casais, um em desconstrução no passado e outro em construção no presente, o de quase separados e o de recém-casados, o que está a empacotar as malas e o que está a desfazê-las, o que precisa de dar um tempo e o que só quer ocupá-lo um com o outro, o que vive o desgaste de um namoro e o que expõe a sua intensidade, uma relação que poderá bem ser o futuro da outra, rimando com ela. 20 anos separam-lhes, um apartamento une-os. É ao descobrir neste uma cassete com canções românticas (Blitz, Chico Buarque, mas também covers de Velvet Underground e Jacques Brel) que o casal do presente imagina a provável história do casal do passado e baloiçamos neste vai-e-vem equilibrado entre os dois pares por uma montagem irrepreensível na forma como entrecorta cenas de dança, sexo e conversas na rua (um travelling em especial que usa os postes de candeeiros como motivos de corte), à procura dos momentos em que emocionalmente se entrecruzem.
É um filme, portanto, simultaneamente doce e amargo, ternurento e magoado. Simpatiza-se com a sua ausência de pretensiosismo, não tanto com a ocasional estética publicitária (aqueles contra-luzes à janela com a câmara a captar a textura da pele feminina, por exemplo), e ainda menos com a falta de subtileza do final, a sublinhar a traço grosso a possibilidade de superação de uma ruptura pelo uso da (e escolha mais preguicenta não haveria) I will survive. Mas se o espectador ficar a pensar, numa perspectiva pessoal, sobre que outros temas poderiam ser incluídos enquanto reflexos de toda a turbulência emocional e afectiva que um relacionamento envolve, então o filme foi bem-sucedido ao fazê-lo ir ao encontro da sua provável moral: a de que, por mais distintas que sejam as canções ouvidas por diferentes casais, uma relação amorosa é sempre a mesma cantiga.

Unicórnio (2017) de Eduardo Nunes
Avisaram-nos duas pessoas antes de termos visto este filme sobre a vida bucólica de uma rapariga e a sua mãe: “é Tarkovsky visto por um filtro de Instagram.” E, de facto, é a frase que melhor resume a estética de Unicórnio, longos planos-sequências letárgicos com a acção quase nula a decorrer em paisagens cor-de-mijo. Acumulam-se os símbolos, os rituais silenciosos, a “poesia” (ranger de dentes), o “tempo esculpido” (suspiro exasperado), tudo visto por uma correcção de cor berrante e um formato de uma largura bizantina (o 3.66:1) que faz o Cinemascope mais horizontal parecer o mais quadrado Academy ratio (o leitor imite o olhar semi-cerrado de Clint Eastwood e é mais ou menos assim que se vê o ecrã). São cenas atrás de cenas construídas num formalismo maçudo, solene e ostensivo, sem uma visão do mundo, das pessoas, do que quer que seja que faça do filme mais do que um enorme exercício oco que grita a plenos pulmões em todo o seu desejo de contemplação: “Isto é arte!”
Duarte Mata

Boni Bonita (2018) de Daniel Barosa
Boni Bonita até pode ir buscar o seu título a um delidoce tema pop, interpretado pelo baladeiro argentino Alberto Cortez, mas esse será o único apontamento realmente “sentimentalão” na primeira longa-metragem de ficção assinada por Daniel Barosa.
Pelo contrário, e desde o seu plano inicial, o filme define um contexto narrativo focado em dois protagonistas (ele, um músico mais determinado numa existência hedonista do que na composição artística; ela, uma adolescente de background turbulento e com propensão para a auto-mutilação), reunidos por uma atracção mútua que evolui do proibido para o irrealizável, e que se revela, no fim, como uma história de coming-of-age marcada por música, pela raiva dos sentimentos e pelos “prazeres desconhecidos” da vida.
Estes conflitos, íntimos e titubeantes, são sublimados pela opção estética de Daniel Barosa em filmar uma parte considerável de Boni Bonita em 16mm — um formato capaz de registar tanto o pormenor como o imenso. Desse modo, o picotado, “sujo” e maculado, da película aparenta reflectir o próprio frémito dos personagens, encerrados numa viagem emocional que conhecerá o seu expoente no magnífico plano-sequência que encerra aquele que é, sem grandes dúvidas, o meu filme preferido da Competição de ficção do FESTin 2019.
Samuel Andrade