Há quase dez anos que não tínhamos notícias do israelita Samuel Maoz. O seu último título, longa-metragem de estreia, era um “filme de dispositivo”, passado integralmente dentro de um tanque de guerra e que nos oferecia apenas a perspectiva desta máquina sepulcral pronta a disparar. O ambiente era claustrofóbico, mas a acção no ecrã era intensa e cativante. Passam quase dez anos e a guerra ainda é o assunto, só que, desta feita, começamos muito longe do campo de batalha: num hiper-confortável apartamento da classe alta israelita. Abre-se a porta para dizer “o seu filho pereceu na frente de combate”. E nós lá estamos enclausurados na perspectiva dos soldados-máquina que disparam contra o pai condolências e receitas à base de copos de água ingeridos de hora em hora. A câmara de Maoz parece que não saiu ainda da experiência traumática de Lebanon (Líbano, 2009). O começo tem a mesma capacidade de sequestro deste seu filme. Depois, o drama vai pretendendo uma espessura satírica e melodramática que não consegue comportar – com tanta areia na engrenagem, a máquina Foxtrot rapidamente começa a soçobrar.

A câmara de Maoz é o elemento inquietante nos primeiros minutos. Ela secciona com uma certa inteligência irónica o espaço da acção: proliferam os planos apertados e god’s eye views maquinais. Em poucos segundos, estamos dentro da história, a viver os instantes de choque e espanto do mais terrível dos lutos: um casal tenta aperceber-se de que o seu filho morreu. Mas enquanto somos puxados pela força do melodrama mais doloroso, há uma outra força que aqui e ali vai pontuando a acção, como um agente viral que se intromete no texto do filme para lançar a dúvida: “certo, a dor está estampada nos corpos, nos rostos, nas acções destas personagens, mas… será isto uma comédia?”
Maoz é extremamente engenhoso nesses minutos inicias, isto é, enquanto, nomeadamente pela câmara e ritmo de montagem, nos dá a sensação de estarmos em simultâneo num drama humano de brutais efeitos e numa delirante comédia burlesca (que habita o gesto e o rosto). O gag mais evidente é, sem dúvida, protagonizado pelo copo de água que os militares recomendam insistentemente que o pai beba de hora em hora – e este seguirá à risca a receita. Em suma, a situação é dramática, mas a pontuação das acções provém da comédia.
O espectador que se aperceba de todas as costuras do filme tem de aguentar a severa despromoção em termos de interesse, engenho e até inteligência da realização que começa sensivelmente na primeira trintena de minutos e culmina nos instantes finais.
Depois, Foxtrot (2017) descamba, perde o subtil balanceamento entre registos e é sugado pela comédia de absurdos que flirta com Jacques Tati, com Emir Kusturica ou – será mais pertinente citar – com Elia Suleiman. Mas não faz Yadon ilaheyya (Intervenção Divina, 2002) ou The Time That Remains (O Tempo Que Resta, 2009) quem quer. Maoz sucumbe a uma sátira, alusiva ao grande burlesco do cinema mudo, para desenhar a traço muito grosso o retrato do dia-a-dia de um grupo de militares israelita estacionado num checkpoint situado algures no deserto, em pleno “fim do mundo”. A passagem de um dromedário servirá de pêndulo entre a gargalhada e o sentimento de tédio e definhamento físico e moral acalentado pela guerra. Estamos no sítio onde tudo – tudo o que diz respeito ao luto inicial curado com copos de água – aconteceu ou acontecerá. Estávamos bem mais enclausurados, entretidos pela linguagem do choque – ainda “de tanque”… -, naquele apartamento de classe alta, alternando entre o riso e o grito. Agora tudo é claro como a água.
Depois da feliz conjugação, drama da “vida real” e comédia física do absurdo, os elementos são devidamente separados e destacados: vamos assistir a uma sátira bem identificada, “à moda de Suleiman”, para logo a seguir regressarmos em força ao registo do drama, desta feita sabendo que este veio with a vengeance (a música de Arvo Pärt é a cereja no topo do bolo da atitude “puxa-lágrima” subjacente aos minutos derradeiros). O exercício lúdico, entre registos, transforma-se num exemplar – exemplarmente reles, leia-se – exercício de manipulação emocional – algo que faz escola noutras paragens do cinema israelita, com Nadav Lapid à cabeça. Enfim, o espectador que se aperceba de todas as costuras do filme – da sua equação dramaticamente interesseira – tem de aguentar a severa despromoção em termos de interesse, engenho e até inteligência da realização que começa sensivelmente na primeira trintena de minutos e culmina nos instantes finais. E, grande chatice, acabamos por nunca chorar a bandeiras despregadas como Foxtrot prometia.