[I]n every face I see I find a story. It doesn’t seem hard. The story is right there lying on top, easily visible. You can take it and make something real, vital out of it… By face I don’t mean face literally… I mean the characters in my story.
Frank Borzage
Sob um estonteante Technicolor, I’ve Always Loved You (Sempre Gostei de Ti, 1948) leva-nos para um mundo delicadíssimo e perturbado, bem alimentado pela música que o vai pontuar com rimas, temática e intimamente, dinamizando-o também na sua realidade formal. Um filme do génio do melodrama Frank Borzage, realizador com mão mestra para histórias trágicas, densas, ultra românticas, possuídas pelo amor, paixão; para narrativas profundamente ousadas, onde gravitam personagens feridas, frágeis, inadaptadas, apaixonadas e sempre imensamente tocantes.
Borzage foi uma extraordinária presença no cinema nos primórdios do século XX, começando uma carreira imparável com uma experiência enquanto actor, argumentista, montador, acessorista e realizador. Começa muito bem com crescente impacto no cinema mudo e logo depois, no sonoro, com filmes de gigante envergadura na intensidade dramática, no seu mais elevado sentido interno e na sua singular valoração formal. Uma invulgar força poética e humanista percorre os seus universos, e os seus filmes não se podem esquecer, marcados que estão, a ferro e fogo, pela dor e pelo amor – passionais, sociais e sentimentais, deixam uma impressiva marca. Os reconhecidos filmes mudos vêm, pois, traçar uma veia autoral que se reconhece pela tal força de “mão mestra”, exímia a projectar a sensação do sentimento no seu maior “ardor”, com a avassaladora marcha do destino a marcar o passo.
Vemos todas estas qualidades logo em The Seventh Heaven (A Hora Suprema, 1927), que recebeu os primeiros Óscares da Academia, obra que se volta para os desprotegidos amantes, maravilhosos seres que se unem no desespero da vida, na pobreza e nos maus tratos. Os actores Janet Gaynor e Charles Farrel formam o casal e brilham em alto fogo, e vão continuar a brilhar no não menos intenso Street Angel (O Anjo da Rua, 1928), onde a experiência da pobreza forma um casal e vai testá-lo até ao limite do ciúme para a redenção espiritual; Lucky Star (1929) reúne miséria, drama, guerra, inocência e, claro, amor, e liga de novo Janet-Charles, numa poética vertiginosa que os junta, separa e junta – e numa correria final pela neve, na qual o limite é o irrealismo de um milagre, temos um filme perfeito. É ainda impossível não assinalar The River (1928) e o fulgurante amour fou que o atravessa, tão amado pelos surrealistas, e não se esquece o rio, a mulher insinuante e o homem-corpo, com o erotismo no pico. E há Liliom (1930), tão belo e trágico, um carrossel a girar e um comboio em escala para o céu marcam um universo arrepiante e simbólico que deixa lágrimas nos olhos.
Mais, A Farewell to Arms (Adeus às Armas, 1932), Man’s Castle (A Vida é um Sonho, 1933), Little Man, What Now? (1934), Three Comrades (Três Camaradas, 1938), The Mortal Storm (Tempestade Mortal, 1940), e Moonrise (Consciência em Paz, 1948) são apenas algumas das obras que se implicam a fundo na guerra e no amor, na pobreza, na amizade e no amor cúmplice, no anti-fascismo, nas marcas traumáticas, na negrura humana, enfim, sempre para a redenção do amor, com a tão característica, em Bozage, vivência profunda entre a dimensão carnal e espiritual.
I’ve Always Loved You foi, em geral, um filme menos visto e menos conhecido, criticado na época (e agora, eventualmente, também o seria), pelo excesso plástico e os excessos de interpretação, pelo que perdeu reconhecimento. No entanto, ou por isso mesmo, eleva-se para alguns a sua raridade, valorizando-se enormemente como a súmula da arte de Borzage, colocando-se, deste modo, em posição de destaque. Falamos de João Bénard da Costa, que fala dele como um “filme extremo, extreme“, do “estremecente Borzage”, dos excessos que aqui vê, vão naturalmente contar a seu belo favor, falando por si na excelsa linguagem do melodrama; Martin Scorsese elege-o, também, e enfatiza a sua transcendência e os “grandiosos” movimentos de câmara; Luc Moullet descobre o filme nos anos 60 em Locarno, e fala em obra-prima, dizendo que “o excesso de afectação e de sentimentalismo ultrapassa todos os limites permitidos e aniquila o poder da crítica e da reflexão, para atingir a beleza pura”; Mário Jorge Torres coloca-o, igualmente, num operático lugar de distinção e elege-o como espécimen maior do melodrama.
O que interessa mais a Borzage é a fina linha quebradiça dos sentimentos, os seus estragos e proveitos, a imaterialidade das coisas que se sentem, a possível e telepática comunicação entre os seres (quando tudo parece falhar).
O título I’ve Always Loved You é logo sugestivo e afirma-se na sua singela “franqueza” emocional. O campo narrativo é esse, o das emoções conturbadas, alteradas e vividas no fulgor musical do talento dos protagonistas: músico e aspirante, mestre e discípula, amantes silenciados pelo orgulho dele e pela dependência dela, (à partida) movidos pela paixão da música que os agita e os atira para perto e para longe um do outro. Este enunciado, Sempre Gostei de Ti, sintetiza um elemento do drama que é logo assimilado: o incontornável “sentimento amoroso” – o amor, mais do que agir nos pretensos amantes, actua ainda na música que se projecta animicamente e desenvolve um elevado espaço para a comunicação amorosa, que se espraia durante os 117 minutos da duração do filme, de forma singular e também inesperada.
Depois, quem se deixar levar entrará pelas portas, bem abertas, do drama, enquadradas num universo cenicamente intocável, disposto por uma incrível patine de cores, formas e feitios, num décor ordenadíssimo, apetrechado por um conjunto de elementos que ostentam bem o verniz dos salões, jardins, lagos, vegetação luxuriante e quartos soberbos. E o verso do requinte citadino, tem na paisagem rural o seu par, onde um outro mundo se distende, qual fresco bucólico em paralela e igual plasticidade.
A história de I’ve Always Loved You vem da obra Concert, de Borden Chase, que também escreveu o argumento. As músicas são interpretadas (dobradas) pelo pianista Rubinstein (bem visível no genérico com a insígnia: “the world’s greatest pianist”). É uma produção de categoria A, da Republic Pictures, mais ligada a produções B. Depois de ter trabalhado com grandes produtoras, Metro Goldwyn Mayer e Fox, na sequência de um decréscimo de notoriedade e baixa de sucesso público e crítico, Borzage encontrou maior liberdade em produtoras menos mainstream, como foi este o caso.
Catherine McLeod e Philip Dorn são Myra Hassman e Leopold Goronoff, ela plena de talento como pianista iniciante, ele, um arrogante maestro, egóico, mulherengo, vivido e, claro, cheio de si. O encontro entre eles é ditado pelo destino de uma antiga amizade do pai de Myra pelo músico, e de uma audição aberta, em Filadélfia, para testar talentos, e oferecer quatro anos de ensino com o mestre. A câmara ágil move-se pelos salões numa entrada digna para ouvir os jovens demonstrarem as suas capacidades perante o crivo do mestre.
O talento de Myra é logo detectado e fica no maestro plantada a vontade de a ter por perto. A narrativa põe-se em linha nas suas naturais marcações, ou seja, no espaço propício da ideia do melodrama que pede elementos ao romanesco para exacerbar o conflito e a valores dicotómicos para provocar encontros, proximidades, faíscas e impasses .
Goronoff vai ao campo ter com ela, e logo a cumplicidade entre eles se estabelece iniciando um dueto ao piano, entretanto interrompido pelo tractor de George, filho da ama-seca de Myra e mãe do rapaz, outra nova cumplicidade.
João Bénard da Costa fala muito bem de uma “teia infinita de cumplicidades” – estamos no início e vai haver ainda mais, a juntarem-se umas às outras. O jovem George irrompe no décor campestre, fresca e sensualmente em tronco nu, a exibir vitalidade e alegria. Mais tarde, face aos olhares lançados ao rival Goronoff, percebe-se o ciúme: há aqui sentimento pela rapariga a agitar o rapaz. Uma ruiva virá solicitar o maestro e este fugirá pela mão de Myra para o “wishing room”, lugar privado envolto em vegetação, frente ao lago, onde ela se recolhe “para sonhar” – a envolvência dos décors é de uma irrealidade tocante.
A decisão vai ser de partir: Myra vai acompanhar o mestre, leva consigo um anel que George lhe coloca no dedo, gesto singelo e simbólico – ele quer estar perto dela. E a mise en scène é trabalhada com intenção: braços e mãos movimentam-se no quadro, tocam-se, e os amigos de infância, Myra e George separam-se. Ela vai prosseguir caminho.
A avó do músico, Babushka, papel interpretado pela incrível Maria Ouspenskaya, vai entrar em cena, personagem com força intuitiva e especial presença. Esta acompanhará o casal. Começam a digressão pela Europa, depois ao Rio de Janeiro, a aprendizagem de Myra vai fazendo-se, mulheres loiras e ruivas vão cruzar-se no caminho. Um xaile oferecido por Goronoff à jovem vai servir dramaticamente para amparar o mau humor do mestre perante o acesso de ciúmes de Myra do namoro do músico. São elementos que vêm saturar a narrativa como pontos que se activam para decompor os quadros perfeitos: a paixão silencia-se ou antes balbucia-se (como faz a jovem a certa altura). Goronoff faz transparecer a sua face misógina, afirmando que na música não há mulheres, vendo-se unicamente a si próprio, a seu bel-prazer, e assim as coisas do sentimento vão-lhe escapando.
Chega-se a um ponto alto da narrativa: o concerto em Carnegie Hall, em Nova Iorque. Myra já está preparada para tocar, e aqui abrem-se, bem abertas, as portas ao drama, ao inevitável: a superação do discípulo em relação ao mestre. A jovem interpreta o segundo concerto de Rachmaninoff e fá-lo muito bem, fá-lo passionalmente, entrega-se com uma impetuosa energia que prende a plateia que assiste rendida “à luta” musical entre os dois. O talento dela é exuberante face à prepotência de Goronoff, atingido como um raio por tanta qualidade. A câmara mostra a grandiosidade da sala, abre planos, aproxima, executa movimentos, fragmenta, mostra o público, “ouve”. A escala dos planos vai-se alterando, a mise en scène parece possuída pelo som, alguns comentam, estrategicamente, junto a George ou a Babushka. Na verdade, estão com Myra, com a força dela, contra a rigidez do mestre. Nos bastidores, o contrarregra e assistentes também querem ver quem confronta o mestre, quem lhe está a “dar uma lição”. A cena é longa, dura cerca de 20 minutos e no final é a ruptura – o mestre não suporta ser suplantado.
De volta ao campo, Myra acabará por casar com George. O tempo passará servido pelo engenho da elipse. Babushka irá ao campo em visita, a ver se aproxima o neto a Myra, mas desiste ao falar com George – é melhor não estragar este quadro de vida prometedor.
Aqui releva-se outro ponto alto da construção narrativa que faz com que este filme tenha o tal ‘’toque’’ especial e a força que dele emerge. Myra toca piano, e vemos em simultâneo também Goronoff a tocar – a montagem (“mística”) constrói o momento de cumplicidade. A fórmula telepática de comunicação (que Borzage gosta muito de usar) é aqui aplicada para juntar os dois seres, “num portentoso vaso comunicante”, como refere Bénard da Costa, nessa gigante “teia” cúmplice que vai fazendo o seu trabalho invisível, num sublimado labor afectivo que ultrapassa paredes e tempo. O que Borzage faz é muito “isto”: elevar o realismo à transcendência, permitir que o campo dramático se abra para novas dimensões.
O filme avança. Vai haver uma filha de Myra e George, Porky, que também tocará piano. Há um reencontro com o maestro, vai haver de novo Carnegie Hall – tudo a caminhar para um fim improvável, inesperado. Borzage tira-nos o tapete e remata esta história de amor impossível, unicamente para um lado – Mestre-Discípula – e possível para o outro – Myra-George – ninguém estava à espera disto. Há ainda espaço para apagar a misoginia de Goronoff, que neste percurso de aprendizagem (foi para ele, também, uma grande caminhada) conclui que a mulher tem um lugar na música. Há, do mesmo modo, uma vontade de coordenar as coisas dispersas, os fios perdidos, de fazer as boas correspondências e enlaçar a comunicação.
Grande é o melodramático Borzage, o iluminado, o afectivo, irreparável romântico, “irrealista transcendental”, o “cineasta místico”, autor do “drama psicológico social”, o que fez o “cinema of excess” (John Belton). Aquele que pode despentear Mary que vai tornar-se numa Lucky Star, fazer o Timothy sair da cadeira de rodas e andar, lançar o olhar para a sarjeta, admirar o céu no interior do casebre mais pobre, levar comboios ao céu; como percorrer salões impecáveis com músicos narcísicos e emproados, cobrir portas com papel rosa às flores, ajustar figurinos imaculados, desenhar bocas perfeitas de baton vermelho, fazer ouvir Rachmaminoff, Chopin, Wagner, Beethoven e Bach, fazer telepatia. Porque o que interessa mais a Borzage é a fina linha quebradiça dos sentimentos, os seus estragos e proveitos, a imaterialidade das coisas que se sentem, a possível e telepática comunicação entre os seres (quando tudo parece falhar), porque, enfim, lhe interessam mais ainda as pessoas, o mundo das pessoas, como um real humanista e um lírico dos sentimentos, correndo todos os riscos do piroso derramado.
I’ve Always Loved You passa hoje na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, às 18h, apresentado por Mário Jorge Torres no âmbito do ciclo por si programado “O Melodrama do Trágico e do Operático”.