A certa altura pergunta-se em Rebecca (1940), de Alfred Hitchcock, “Do you think the dead come back and watch the living?”, mas talvez a pergunta mais acertada devesse ser Achas que os vivos se vêem pelos olhos dos mortos que regressam? É exactamente sobre esta questão que me parece que se deve receber La película infinita (2018) de Leandro Listorti, filme que trabalha sobre o universo dos filmes perdidos do cinema argentino. Exercício de compilação de mais de uma dezena de títulos nunca terminados, todos rodados em suporte analógico, e correspondentes aos desaires dos últimos 50 anos, onde se incluem: El Eternauta (1968) de Hugo Gil, Zama (1984) de Nicolás Sarquís, Sistema español (1988) de Martín Rejtman, El ocio (1999) de Mariano Llinás e Agustín Mendilaharzu ou, mais recentemente – e de novo -, El eternauta (2009) de Lucrecia Martel.
No filme de Listorti, onde os materiais fílmicos vivos e mortos se bamboleiam entre a força criativa do artista e o poder thrillesco que a própria materialidade proporciona, creio que o trabalho sobre o arquivo cinematográfico se revela como um processo de restituição da benjaminiana aura a objectos que nunca a chegaram a ter (e que nunca o chegaram a ser). La película infinita possibilita aos autores desmemoriados dos filmes perdidos serem redescobertos pela perspectivação das suas obras; e permite também aos filmes inacabados serem reconstituídos, quais vasilhas fenícias que apesar de toscas e com pedaços em falta, revelam de algum modo, ainda que apenas parcialmente, a sua beleza original (exactamente através da necessária contemporaneidade da sua reconstrução). Um trabalho de re-união, onde os membros pobres e frágeis dos arquivos cinematográficos – os filmes que nunca conheceram uma forma final – se juntam para enfrentar a luz da visibilidade (todos unidos ganham força). Uma manta de retalhos de fortes contrastes, um frankenstein monstruosamente sinuoso, um pijama de sobremesas conventuais: La película infinita é um filme que encara os nados-mortos de uma cinematografia como o perfeito recheio das empadas da história de um país.
O filme será exibido, no âmbito do AR – 5º Festival de Cinema Argentino, no próximo dia 23 de Junho (Domingo) às 22h00, no Cinema São Jorge em Lisboa e depois, no Cinema Trindade no Porto, dia 28 (Sexta-feira), às 20h00. A entrevista que se segue, com o realizador, foi travada por correio electrónico graças à simpatia e facilitação de Maria João Machado.

Gosto bastante do primeiro plano o filme: ouve-se um tiro, ainda no escuro, e a primeira imagem que vemos é de um contorno de um corpo morto, a giz, no chão. Alguém cometeu um crime, mas agora temos apenas acesso aos vestígios do que aconteceu, das consequências de uma investigação: é a imagem de um corpo ausente. De certo modo, esta imagem traduz muito do que é o projecto de La película infinita. Vê-se como um realizador-investigador criminal?
O trabalho envolvido na pesquisa dos materiais que deram origem a este filme levou vários anos e envolveu muitas conversas com uma grande variedade de pessoas. Nesse sentido pode dizer-se que foi um trabalho muito parecido com o de uma investigação criminal: fazer perguntas, supor situações, imaginar relatos.
Como foi o processo de encontrar estes filmes perdidos? Estavam todos arquivados no Museo del Cine? Já haviam sido catalogados e preservados? Encontraram, no processo de pesquisa, novos materiais de filmes que eram, até então, completamente desconhecidos?
Apenas um dos filmes estava no Museo del Cine: Zama. Os restantes títulos encontravam-se dispersos por diferentes e muito variados lugares: casas, arquivos, escolas, lixeiras, etc.. Isso torna evidente que este tipo de material teve sempre muito pouca importância não só para as pessoas que os produziram como também para as instituições que se deveriam preocupar com a preservação do património audiovisual. E claro que se encontravam por identificar e catalogar, sem o mínimos cuidados que este tipo de suportes exige. A pesquisa por estes filmes inacabados seria provavelmente também infinita, uma vez que desde que demos por fechado o filme, já encontrámos materiais fílmicos de outros três filmes nunca terminados.
De certa forma La película infinita conta uma história (e a História) do cinema argentino que nunca existiu: uma História negativa. O que é que esta “história negativa” nos diz sobre o cinema argentino? Porque não foram estes filmes terminados? Foram falências, censura, mortes inesperadas…?
As razões principais para a interrupção das rodagens dos filmes que constam do nosso filme são essencialmente duas: a falta de dinheiro e a morte de algum dos responsáveis. Parece-me que estes são os motivos clássicos para que uma obra, que envolve tanta gente e tantos passos até se terminar, seja deixada incompleta. Se o considerarmos de uma perspectiva histórica estes filmes que nunca chegaram a existir dão-nos uma ideia dos vai-e-vens culturais de um país que se viu constantemente bloqueado por golpes militares e desastres económicos. Estou em crer que essa ideia da História negativa do cinema do argentino dá-nos, de uma forma indirecta, impressões de tudo isso.

No popular documentário sobre o famoso filme nunca terminado de Alejandro Jodorowsky, Jodorowsky’s Dune (2013), de Frank Pavich, os realizadores procuraram explicar de que modo este filme nunca feito teve, de facto, influência em todo o género da ficção científica que viria depois. É possível traçar a influência de alguns destes filmes inacabados de La película infinita nas produções subsequentes do cinema argentino?
O material que compõe La película infinita nunca tinha sido exibido e como tal nunca ninguém o havia visto. Alias, vários dos próprios realizadores nunca mais haviam voltado a ver o material que tinham rodado, e que tinha ficado esquecido em laboratórios ou outros lugares inacessíveis. No entanto, é evidente que os realizadores que puderam continuar a filmar encontraram nos seus filmes seguintes traços destes projectos inacabados (por exemplo, Martín Rejtman ou Mariano Llinás), e isso parece-me se encontra, de forma evidente, nos fragmentos que sobreviveram. Um pouco como se esses filmes tivessem sido os rascunhos de um estilo que ainda estava por vir.
No filme apenas se foca em projectos inacabados que foram rodados em película. A película como artefacto físico é igualmente evidente em La película infinita na forma como os materiais se apresentam degradados, riscados, envelhecidos pelo tempo, pelo uso, e pelas más condições de conservação (algo que nos abre a imaginação à história física destas cópias, por onde terão elas andado?). A fisicalidade do suporte é algo que lhe interessa (uma vez que trabalha e trabalhou com película, tanto como realizador, arquivista e programador de cinema)? E no entanto este filme é hoje possível apenas através de meios digitais…
Uma das premissas que tínhamos de forma clara desde o início da investigação era que apenas nos interessava concentrarmo-nos em filmes rodados em película. Exactamente por isso que referias: queríamos poder identificar, a partir dos próprios materiais, os efeitos do tempo e do abandono. O projecto começou com a pesquisa de todo o tipo de películas que conseguíssemos encontrar, uma vez que não sabíamos se íamos conseguir encontrar uma que fosse. Devo dizer, no entanto, que quase não encontrámos praticamente quaisquer materiais em suporte de vídeo magnético ou digital. Talvez porque se tratem de suportes que sobrevivem menos à passagem do tempo. O meu trabalho no Museo del Cine só surgiu já no fim da produção do filme, mas ainda assim creio que estas duas situações se retro-alimentaram entre si.
Considerou trabalhar com materiais não-fílmicos, como guiões, fotografias de casting ou repérage, etc.? Penso, por exemplo, noutro documentário sobre um filme inacabado famoso, L’Enfer (1964). Os realizadores desse filme [L’enfer d’Henri-Georges Clouzot (2009)], o conservador Serge Bromberg e Ruxandra Medrea, usaram todo o tipo de materiais que conseguiram encontrar sobre a produção falhada do filme. Até convidaram actores para ler algumas passagens do guião…
Desde o início da investigação procurámos reunir todos os elementos que conseguíssemos encontrar e que estivessem relacionados com estes filmes inacabados, sem saber ao certo se os íamos utilizar na forma final do filme. De algumas produções falhadas a única coisa que sobreviveu foi uma nota sobre a rodagem numa revista, um guião ou fotografias da fase da pesquisa de locais de rodagem. Queríamos ter connosco a maior quantidade possível de elementos aquando da hora da montagem do filme. Por sorte conseguimos muito material fílmico e nesses momentos compreendemos que o filme que começávamos a idealizar só admitiria imagens em movimento, pelo que tudo o resto que recolhemos acabou por ficar de fora. No entanto esses documentos são muito interessantes e variados. Estamos, neste momento, a trabalhar num livro que esperamos que possa ser publicado o quanto antes e que também possa abarcar vários outros filmes que não integraram a forma final do La película infinita.

Isso leva-me a outra questão, que se prende com a banda-sonora: La película infinita tem vários momentos em que ouvimos sons de ambiente, mas sem conhecer os diálogos. Imagino que as bandas-sonoras originais se tenham perdido (ou, sendo muitos destes filmes rodados sem som directo, nunca se tenha chegado à fase da produção do som). Mas certamente a leitura dos guiões ou a leitura dos lábios dos actores poderia permitir “dobrar” os materiais com novas vozes. Isto esteve, em algum momento, em cima da mesa? E inversamente, há um ou outro momento em que parece que apenas sobreviveu a banda de som, sem imagem…
Em 95% dos casos só encontrámos a banda de imagem, sem qualquer registo sonoro. Aquilo que, inicialmente, pareceu algo negativo converteu-se na possibilidade de utilizar a banda e som para “escrever” o argumento do filme: unificando cenas, criando climas, relacionando personagens e situações, etc.. Procurámos, a partir de um guião num dos casos, e da leitura dos lábios noutro, identificar o que era dito pelos actores nas imagens. Mas nunca batia exactamente certo e essa imprecisão era, finalmente, menos atractiva que o silêncio. Acredito que em muitos casos o silêncio ou a desincronia reforçam a ideia de que estamos a assistir a algo incompleto e obriga-nos a prestar mais atenção ao que se vê e ao que se escuta.
Os materiais com que trabalham já haviam sido parcialmente montados, ou eram as rushes, vindas directamente das rodagens? Algumas cenas de Le película infinita têm raccords perfeitos. De certo modo, montar deste modo continua aquilo que, provavelmente, eram as intenções originais dos realizadores. Mas noutros momentos, a montagem baralha diferentes filmes em cenas inventadas, com um unidade narrativa (através de raccords de cor, movimento, de contra-campos inventados…). E a certa altura surgem personagens recorrentes: um homem que desapareceu, uma mulher que o procura… Como chegaram a esta forma, como foi o processo de montagem?
Ao princípio tínhamos a vontade de ser o mais respeitosos possível com o material, de não lhe tocar ou modificar. Mas logo compreendemos que isso não era necessário nem proveitoso para o filme. Alguns dos materiais encontrados já haviam sido alvo de uma primeira fase de montagem, outros eram de facto as tomas do negativo original, directamente da câmara de filmar. Daí que tomámos a liberdade de seleccionar aquilo que necessitávamos de cada um dos projectos não terminados e montámo-los como melhor nos pareceu que funcionaria para o nosso filme. Desenvolvemos uma estrutura narrativa mínima que serviu como mote para organizamos todos este material tão dissemelhante. O nosso objectivo era juntar o máximo de fragmentos possíveis sem construir uma história de definida, para que isso fosse o trabalho do espectador.

No filme It’s All True: Based on an Unfinished Film by Orson Welles (1993), os realizadores [Richard Wilson, Bill Krohn e Myron Meisel] remontaram o material fílmico do projecto brasileiro que Welles nunca terminou. Procuraram dar-lhe uma forma finalizada. Já o restauro português, O Homem dos Olhos Tortos (1918 – 2007), limita-se a compilar narrativamente todo os takes rodados e conservados, na sua morosa repetição. Em La película infinita optou-se por não seguir nenhuma destas vias. Sentiu-se tentado a focar-se em apenas um dos filmes inacabados, que estivesse mais próximo de uma forma final, e “finalizá-lo”?
De facto não. Todos os materiais que encontrámos eram muito atraentes e abriam portas a mais histórias e ao desejo de saber mais sobre o seu devir e os seus processos de rodagem. Não houve um filme que se destacasse o suficiente para que se justificasse dedicarmos-lhe atenção exclusiva.
A forma de La película infinita é altamente fragmentada, uma linha narrativa muito solta que salta por diferentes géneros e estilos cinematográficos. Num ensaio sobre a figura da ruína no cinema, Dominque Païni sugere que a montagem típica da MTV nos anos 1990 influenciou a aproximação dos “bits and pieces” que algumas cinematecas iniciaram para poderem projectar filmes inacabados, fragmentários ou não identificados. Mas o seu filme recorda-me mais dos filmes de found footage de cineastas experimentais (em particular um título de Ken Jacobs, o Perfect Film [1986], ou, doutro modo bem diferente, o de Peter Delpeut, Lyrical Nitrate [1981]). Com este filme, considera-se mais um restaurador de cinema ou um realizador de found footage (uma vez que ambos partilham um mesmo desejo: dar visibilidade aos materiais com que trabalham)?
Acredito que sou um pouco de ambos: a minha formação tem mais que ver com a realização de cinema, já o meu trabalho como restaurador/conservador foi um desvio da minha primeira orientação. Como realizador sempre me interessaram as formas mais marginais de cinema (onde se poderá incluir o cinema found footage) e desde que, há um par de anos, comecei a trabalhar no Museo del Cine, tive a possibilidade de aprender e exercitar directamente com filmes que necessitavam de trabalhos de conservação. Na verdade, estas duas actividades relacionam-se a todo a hora e ambas se alimentam entre si. Aproveitar os conhecimentos específicos de cada uma delas, na outra, parece-me algo muito natural, uma vez que, em boa verdade, todos os realizadores e produtores de cinema (sobretudo de um certo cinema) deviam conhecer (ou estar a par d)as questões da preservação.
