O pretexto deste artigo está muito bem identificado e tem uma morada: a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Entre os dias 24 e 28 de Junho, Mário Jorge Torres visita a “casa-mãe do cinema” para falar de um dos seus assuntos de eleição: o melodrama. No âmbito da rubrica Histórias do Cinema, o crítico, professor universitário e devoto cinéfilo programou um ciclo, baptizado de “O Melodrama do Trágico ao Operático”, que tem tudo menos escolhas óbvias. Obras algo obscuras de Luchino Visconti, Max Ophüls, John Stahl e Frank Borzage compõem o banquete. A abrir, um clássico mais célebre: Magnificent Obsession (Sublime Expiação, 1954) de um dos mestres maiores do género, Douglas Sirk – a walshiana Carlota Gonçalves oferece a sua leitura do filme aqui.
O pretexto está identificado e serve este novo número da rubrica walshiana Recortes do Cinema. A actividade de crítico de Mário Jorge Torres ao longo de duas dezenas de anos (entre 1991 e 2011) para o jornal Público foi o campo onde fomos desenterrar passagens de alguns dos mais impactantes textos críticos que preencheram as páginas desse jornal. Reunimos um conjunto de leitores – Carlos Natálio, João Araújo, José Bértolo, José Oliveira, Ricardo Vieira Lisboa, Maria João Madeira, Vasco Câmara e, por fim, este redactor – e lançámos-lhes um desafio: escolherem um texto, que lhes foi particularmente marcante, saído da pena vibrante e intempestiva deste grande crítico português. Os excertos que aqui destaco são da minha inteira responsabilidade, servindo de trailer para a leitura completa susceptível de ser feita em link.
O nosso Carlos Natálio lembrou-se de um texto de 2009 em que Mário Jorge Torres analisa a edição em DVD pela Midas Filmes de dois filmes de Pedro Costa: O Sangue (1989) e Onde Jaz o Teu Sorriso? (2001). O entusiasmo do crítico pela obra de estreia, “obra-prima absoluta”, de Pedro Costa é contagiante. Não é de espantar, pois esta obra foi forjada entre as sombras do cinema, sob influência de F. W. Murnau, Jacques Tourneur e Charles Laughton.
Ver hoje O Sangue constitui não só um forte soco no estômago, mas também uma incrível redescoberta: um pesadelo acordado, um filme de mortos que respiram sob a terra, sob a humidade dos escombros de personagens lunáticas, jogando com as sombras, a convocação herética de uma herança cinéfila, para a transfigurar (a matar, como se “a morte do pai” se tornasse urgente), num lirismo convulso de contornos oníricos.
“A obra em negro”, Público, 24 de Setembro de 2009.
O walshiano João Araújo não saiu da noite do grande cinema, não já sob o signo de Pedro Costa, mas invocando outro monstro do – e pelo – cinema: John Carpenter. Uma crítica “5 estrelas” acerca de um western protagonizado por vampiros fazia o crítico clamar, no fim: ” O cinema clássico está morto? Viva o cinema clássico!”
O esplendor da série B expõe-se perante os nossos olhos desde as primeiras imagens: a fixação da câmara no protótipo da casa assombrada, a amplificação do objectivo nos olhos do caçador de vampiros (James Woods, rosto de imperturbável força, a recriar o anti-psicologismo dos heróis clássicos, de Bogart a John Wayne ou a Clint Eastwood), a mão amputada, o arpão na testa e no coração dos “monstros” e a magnífica explosão provocada pelo incêndio dos corpos dos vampiros à luz do dia, prolongada pela tétrica colecção de caveiras reminiscentes da exposição de escalpes nas ficções tradicionais do Oeste.
“Vampiros”, Público, 25 de Janeiro de 2001.
O camarada José Bértolo, que tem Mário Jorge Torres como uma referência tutelar no seu trabalho como escritor e académico, evoca mais um filme povoado pela noite, mas com “falsos brilhos de lantejoulas”: Morrer como um Homem (2009), de João Pedro Rodrigues, joga de tal modo nas fronteiras do melodrama, como diz o crítico, que mereceu um texto com um título alusivo a uma das obras-primas maiores de Douglas Sirk. Mário Jorge Torres embriaga-se com este melodrama lisboeta (dá-lhe 4 estrelas), a ponto de ensaiar uma “teoria geral” do género que tanto o apaixona e que aqui recorto.
O melodrama (ou seja, o drama com música) domina e manieta as personagens sem saída, nem visível solução. O travesti envelhecido, num mundo de feroz competição pela beleza do corpo, o amante drogado, dependente de uma protecção maternal (ou paternal?), o filho acossado pelas convenções, tudo aponta para a necessidade do escape para o reino do sonho, corporizado na viagem, nos planos falsamente idílicos da barragem, lago ilusório criado para formatar a paisagem.
“Tempo para amar, tempo para morrer”, Público, 14 de Outubro de 2009.
Avançamos para a escolha do realizador, também crítico e programador de cinema, José Oliveira – que entrevistámos aqui – e redescobrimos o melodrama através de uma multiplicidade de histórias, de um filme coral que marcou o final dos anos 90 do século passado: Magnolia (Magnólia, 1999). A crítica “5 estrelas” era curta, mas o entusiasmo – como sempre acontece em Mário Jorge Torres – é (ainda hoje) empolgante.
Contíguo aos mundos fragmentários de Raymond Carver ou do melhor Robert Altman (a importância histórica de Nashville revela-se cada vez mais incontornável), Magnólia possui um fôlego romanesco invulgar, alcançando a grandeza de um enorme fresco, a partir de minúsculas partículas de história, e vem provar que, no contexto do melhor moderno cinema americano, pouco sentido faz opor indústria a cinema independente, de tal modo se criou uma zona de contaminação e de permissão criativas, difícil de limitar. Uma obra-prima absoluta.
“Filme-mosaico”, Público, 25 de Janeiro de 2001.
Voltando ao cinema português e sem sair de todo um particular “fôlego romanesco” adveniente da prosa de Agustina Bessa-Luís, o nosso Ricardo Vieira Lisboa escolhe o texto que Mário Jorge Torres escreveu “em cima” ou “por dentro” de A Corte do Norte (2009) de João Botelho, obra “5 estrelas”. Aqui o crítico evidencia a sua erudição literária e operática. Nas entrelinhas, apercebemos-nos ainda da sua forte costela oliveiriana (Mário Joge Torres publicou em 2008 um livro sobre o realizador portuense, edição Cahiers du cinéma com o jornal Público).
Como em quase todos os seus filmes, de Conversa Acabada ou Tempos Difíceis até ao mais recente e mal entendido O Fatalista, Botelho interessa-se pelo “trompe l”oeil” que a matriz literária gera na matéria cinematográfica, levando-o numa outra direcção: um filme é um filme e os livros, os poetas ou a trama dramática desvanecem-se no desejo de simular alternativas, que dificilmente passam pela adaptação, pura e simples. Por isso, pouco conta saber se A Corte do Norte é, ou não, fiel (um filme não se reduz nunca a protocolos matrimoniais com o literário) ao romance que instrumentaliza – instrumentalizar é o termo adequado.
“Ternas guerreiras”, Público, 19 de Março de 2009.
Só Deus sabe quanto Mário Jorge Torres viu e amou uma das obras-primas maiores de Vincente Minnelli. Quando Some Came Running (Deus Sabe Quanto Amei, 1958) foi reposto em sala, havia um crítico, acima de todos os outros, apto a conduzir toda a tempestade de emoções gerada pelo filme para a escrita de uma crítica “5 estrelas” (naturalmente!). No centro deste texto – como do filme, de facto – está a comovente personagem interpretada por Shirley McLaine. O texto “Amores de Perdição” (mais uma referência a Oliveira) é uma escolha da programadora da Cinemateca Portuguesa, Maria João Madeira.
Só que o “palhacinho” apaixonado de MacLaine, com as mais pirosas farpelas do mundo e a inacreditável almofada de feira, que pediu a Sinatra, desequilibra o filme para o lado do burlesco, do patético sem remissão. Há uma forma masoquista de amar que comanda o seu passo de corrida para a perdição; quando Sinatra lhe pergunta (indignamente) se seria capaz de limpar a casa, MacLaine ilumina-se no “Posso?” e entrega-se à sua condição de demasiado humana para se aperceber da humilhação.
“Amores de Perdição”, Público, 5 de Setembro de 2002.
Vasco Câmara, parceiro de redacção de Mário Jorge Torres desde os primeiros anos, escolhe um artigo muito especial: uma das raras entrevistas que o crítico aceitou realizar. Não havia como não aceitar, pois tratava-se de um dos ícones maiores da Hollywood clássica e da melhor arte de acção (tantas vezes) melodramática sob os comandos de grandes mestres, tais como Josef von Sternberg, Allan Dwan, Howard Hawks e, acima de tudo, Raoul Walsh. Foi o Festival de Tróia que convidou a estrela para visitar Portugal. A oportunidade estava lançada.
Na impossibilidade de citar (parte de) o texto baseado nesse encontro, reproduzo parte do que me contou Vasco Câmara sobre o mesmo. Segundo o editor do Ípsilon, nesse artigo transparece a alegria e genuíno entusiasmo de um cinéfilo em face de uma das suas deusas: “a excitação quase ‘infantil’ dele (…) obviamente passou a pertencer ao texto.” Ora, não tenho uma transcrição do texto, mas um relato de Mário Jorge Torres sobre essa mesma conversa, publicado em jeito de homenagem a Jane Russell no ano da sua morte.
Bastou uma foto de The French Line (Lloyd Bacon, 1953), que levava para autografar, revelando que sabia tratar-se da estreia como figurante de outra das divas da década, Kim Novak, para quebrar o gelo e estabelecer uma curiosa cumplicidade com uma estrela que sabia gozar com o estereótipo que lhe fora colado, falando sem peias de quase tudo, incluindo a grande timidez e fragilidade de Marilyn: contou-me, então, pedindo-me na altura que o não revelasse, que um famoso anúncio a soutiens fora feito imediatamente depois da remoção de um dos seios por causa de cancro; falou da sua longa amizade com Clark Gable, por quem nutria verdadeira adoração; mostrou-se céptica em relação às suas capacidades como actriz; relatou como detestara trabalhar com Von Sternberg; falou dos equívocos da sua relação com o magnata Howard Hughes. Durante duas horas desfilou perante mim, ao vivo e a cores (o vermelho e o verde kitsch de um inacreditável fato de treino cintilante), uma fascinante e apaixonada visão sobre a Hollywood das décadas de 40 e 50.
Termina assim:
Deixa muitas saudades, porque nunca se levou inteiramente a sério e porque encarna um tempo, que não volta mais, de estrelas, de brilhos de peles e lantejoulas. Jamais esquecerei aquela manhã de Junho à beira do mar de Tróia, nem a sessão da Cinemateca em que infatigavelmente assinou autógrafos e me disse, piscando o olho: “Gostei da sua entrevista. Portou-se bem.” Lá no além, porte-se mal, Miss Russell, e prove que os anjos, como os homens, preferem as morenas.
“Comediante de mão-cheia, republicana e religiosa”, Público, 4 de Março de 2011.
Lembro-me de ficar “banzado” com a convicção deste veterano crítico que tão bem conhecia das páginas do Público. A minha maturidade cinéfila veio com a descoberta do cinema de um realizador então obscuro, nocturno e subterrâneo chamado Abel Ferrara. Uma obra com um título que parecia “graffitado”, ‘R Xmas (R Xmas – Nosso Natal, 2001), que tinha uma aparência duvidosa (o cartaz, o trailer…) e um elenco esdrúxulo (Ice-T!) levava o crítico erudito a afirmar, nos últimos dias de 2002, que estávamos perante “O melhor filme do ano”. Mário Jorge Torres não vacilava e a convicção era tanta que não podia deixar ninguém indiferente – muito menos um jovem que descobria, na mesma altura, um dos grandes cineastas do cinema americano recente. A surpresa foi grande, mas já nesta altura acreditava que a crítica também devia ser isso: uma virtuosa arte da escolha e da surpresa. Realizador maldito, Ferrara era, definitivamente, “one of the guys”.
Do filme de “gangsters” guarda sinais, do melodrama um tom surdo e incómodo de excessos não controlados. O resultado é deslumbrante: um grande filme “doente” e redentor em simultâneo.
“O melhor filme do ano”, Público, 19 de Dezembro de 2002.
Mário Jorge Torres a ser Mário Jorge Torres: crítico destemido, com o “coração na boca”, fiel à sua matriz operática (e melodramática) e no lado certo da História, ao lado dos melhores “guys” (e “girls”). Não vamos esconder: temos saudades. Matemo-las um pouco já este mês, na Cinemateca Portuguesa.
O À pala de Walsh agradece ao José Bértolo, ao José Oliveira, à Maria João Madeira e ao Vasco Câmara a participação nestes Recortes do Cinema.