If you have a message, call Western Union.
Samuel Goldwyn
The Sky Is Falling: How Vampires, Zombies, Androids, and Superheroes Made America Great for Extremism (2018), o novo livro de Peter Biskind, autor do incontornável Easy Riders, Raging Bulls: How the Sex-drugs-and Rock ‘n’ Roll Generation Changed Hollywood (1998), oferece pistas que confrontam o universo de The Dead Don’t Die (Os Mortos Não Morrem, 2019) de Jim Jarmusch, filme de zombies que assume como matriz o terror moderno de George A. Romero, Tobe Hooper ou Herschell Gordon Lewis. Partindo de um paralelismo entre o período desde o final da Segunda Guerra Mundial (1945) até meados da década de 1960 e o momento actual, Peter Biskind questiona a noção de extremismo no seio da cultura popular norte-americana. Após a Segunda Guerra Mundial, quem questionava a ideia prevalecente do excepcionalismo americano – special, better, greater – era acusado de extremismo, tanto os lunáticos de direita como os traidores de esquerda. A América vivia entre o optimismo da nova cultura consumista e as ansiedades levantadas pela Guerra Fria. Actualmente, embora se possam procurar antecedentes até ao governo de Ronald Reagan, na chegada de Donald Trump à Casa Branca, que conduz a presidência como se fosse um reality show, o extremismo tornou-se na nova maioria, podendo ser associado aos termos “divisivo” e “controverso”, mas também a ousadia e excitação, ao que é novo, diferente e refrescante, como as versões “extreme” de produtos clássicos e de canais televisivos convencionais.
No campo do cinema, com a decadência das vendas do formato DVD e o desafio levantado pelas novas plataformas de consumo aos tradicionais canais de distribuição, os mercados internacionais, nomeadamente o chinês, ganharam importância como fonte de receitas para os estúdios americanos. Um filme de acção exporta-se melhor que o desenho cuidado de personagens num especifico contexto americano. Os blockbusters de super-heróis inspirados em comic books são a melhor forma de os estúdios protegerem os investimentos galopantes. Apostas de risco controlável são traduzidas em marcas reconhecíveis, em sequelas e prequelas, e na substituição de super-estrelas por actores menos apelativos, escondidos debaixo de máscaras. As sagas tornam-se complexas e interconectadas, de modo que a audiência não tem de esperar muito tempo para assistir ao desenvolvimento de um determinado aspecto da narrativa. Como Peter Biskind conclui, estas gigantescas cadeias narrativas assemelham-se mais a séries televisivas do que a filmes convencionais. À medida que a diferença entre filmes e séries televisivas se desvanece, reduzindo-se a uma questão de duração, os filmes parecem séries truncadas, enquanto a ficção para televisão obtém as características de filmes longos.
Tanto os filmes de super-heróis, como os de vampiros e de zombies, sugerem uma cultura apocalíptica e extremista. É com o anúncio do apocalipse que são tomadas e consentidas as medidas mais extremas, como a suspensão do processo democrático, o silenciamento da imprensa ou a prática da tortura. “Democracy Dies in Darkness” não é a tagline de um filme de super-heróis ou apocalíptico, mas o slogan que o prestigiado jornal Washington Post adoptou em 2017. Ainda na década de 1950, quando furiosamente perseguia os focos de comunismo na indústria do cinema, o macarthismo encarregava-se de demonstrar que o poderoso produtor Samuel Goldwyn não tinha razão quando desconsiderou a existência de mensagens nos filmes. São os filmes de género que, à partida, parecem mais inocentes em termos de consciência política, que apresentam as mais poderosas e extremas mensagens, sejam dos campos políticos de direita, centro ou esquerda. Nas décadas do período pós-Segunda Guerra Mundial, estes filmes passaram da margem para o centro da indústria, escalando para o topo das tabelas de orçamentos e de receitas. Como pode o filme de zombies de Jim Jarmusch dialogar com uma paisagem ideológica tão povoada e explosiva?
Para a encenação do apocalipse, Jim Jarmusch, o autor, declara-se morto numa das lápides do cemitério. Depois, convoca um conjunto impressivo de caras conhecidas para a matança final, como carne para canhão: Bill Murray, Tom Waits, Adam Driver, Chloë Sevigny, Steve Buscemi, RZA, Tilda Swinton, Danny Glover, Larry Fessenden, Rosie Perez ou Selena Gomez, muitos deles colaboradores regulares do realizador. O palco é Centerville, uma pequena cidade do interior, onde todos os habitantes se conhecem e comentam as novidades do quotidiano numa das cafetarias locais. Um dos clientes habituais, Farmer Miller (Steve Buscemi), usa um boné com a inscrição “Make America White Again”, uma referência à extrema direita norte-americana que se inspira no slogan “Make America Great Again” popularizado por Donald Trump. O xerife Cliff Robertson (Bill Murray) e o ajudante Ronnie Peterson (Adam Driver) investigam o desaparecimento de uma galinha pertencente a Farmer Miller, que acusou o eremita Hermit Bob (Tom Waits) pela ocorrência, quando os relógios e os telemóveis deixam de funcionar, os animais de estimação desaparecem ou têm comportamentos agressivos e a noite tarda a cair. Na televisão, uma jornalista (Rosie Perez) anuncia a alteração na rotação da Terra provocada pelo fracturamento hidráulico nas zonas dos Polos. Quando, finalmente, anoitece, dois mortos (Iggy Pop, Sara Driver) emergem da terra no cemitério e dirigem-se à cafetaria para esventrar e degustar as vísceras de dois corpos, terminando com uma boa dose de café, que engolem com satisfação.
Como as posteriores cenas do filme confirmam, Jim Jarmusch convida-nos para uma viagem, entre a política e a cultura popular, tomando a ironia e a irrisão como guias. A herança de George A. Romero é suficientemente clara, já que Jarmusch a declara quando uma personagem nota que o automóvel, pertencente ao grupo de jovens liderado por Selena Gomez, lhe lembra Romero. Os jovens perguntam quem é Romero, que ao pairar sobre The Dead Don’t Die apela à memória de um público conhecedor da história da sétima arte. Na primeira cena é lançado o mote, quando o automóvel da policia passa junto ao cemitério, rimando com o começo de Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968) – alegoria política impulsionada pela Guerra do Vietname e pela contracultura hippie –, em que a bandeira americana demarca o território, esvoaçando sobre as campas. Mais à frente, The Dead Don’t Die convoca Dawn of the Dead (Zombie: A Maldição dos Mortos-Vivos, 1978), uma crítica feroz ao consumismo, com os zombies a invadirem um centro comercial deserto, vagueando pelos corredores, entre a passividade dos manequins e dos lagos artificiais. Uma personagem considera este comportamento resultado do instinto e da memória de como habitualmente agiam, que seria uma parte importante das suas vidas. Em The Dead Don’t Die também os zombies que abandonam o cemitério sofrem uma espécie de humanização, o que matiza a habitual imbecilidade e falta de vontade própria, procurando os saudosos sítios e elementos que lhes poderiam trazer memórias felizes, como a cafetaria, o café ou o vinho Chardonnay, mesmo que continuem a não resistir ao “canibalismo” (teoricamente teriam de estar vivos para serem canibais). Distante de outros exemplos actuais que radicalizam conceitos, em The Dead Don’t Die a morte é apenas a continuação da vida, ambas operando dentro desta relação inquebrável.
Insistindo no desvanecimento da quarta parede, Jarmusch desafia a alienação do espectador por meio da artificialidade de um divertido exercício reflexivo, reconhecendo o cinema como meio privilegiado de produção cultural e ideológica.
Num pequeno bloco narrativo, com poucos desenvolvimentos mas significativo, Zoe (Selena Gomez) e os seus companheiros de viagem, Jack (Austin Butler) e Zach (Luka Sabbat), param na estação de serviço de Bobby (Caleb Landry Jones) para abastecer a viatura de combustível e comprar “The Dead Don’t Die”, álbum da autoria de Sturgill Simpson, de onde foi retirado o principal tema musical do filme. Seguem para o Moonlight Motel, propriedade de Danny (Larry Fessenden), onde acabarão esventrados sem conhecermos os detalhes. Raramente, Jim Jarmusch usa a elipse ou o fora de campo, não deixando de expor cruamente o exercício da violência. Neste caso, apenas vemos o efeito desse exercício, num último plano em que o filme termina para este grupo de personagens. Por um lado, no uso da elipse, o cinéfilo Jarmusch aproxima-se do poder da sugestão ou do fora de campo dos filmes produzidos por Val Lewton para a RKO Pictures, incluindo um dos melhores exemplos da exploração da mitologia dos zombies durante o período clássico: I Walked with a Zombie (Zombie, 1943) de Jacques Tourneur. Por outro lado, no plano final do grupo, Jarmusch deixa cair a cortina e revela o que as convenções sociais mantiveram longe do olhar até à década de 1960, ou seja a exibição do sangue e do gore, como era entendida no trabalho precursor de Herschell Gordon Lewis. Simbolicamente, a chegada do grupo à pequena cidade do interior, numa colisão entre um espaço urbano, jovem e aventureiro (no pior dos casos, amnésico), e o espaço rural, envelhecido e apegado às tradições, representa a entrada em cena da adolescência urbana em colisão com uma América primitiva de casas adornadas por esculturas de ossos e penas, que Tobe Hooper explorou em The Texas Chain Saw Massacre (Massacre no Texas, 1974).
Um filme que reúne e cola outro material, formando um exército de referências, facilmente se transformaria num produto derivativo na forma de um pastiche que grita falta de criatividade. Jim Jarmusch questiona a originalidade, acreditando que é limitado o número de histórias que se podem contar. No entanto, são ilimitados os modos em que a mesma história pode ser contada. Neste exercício de adaptações, ou variações, em que os materiais originais são suficientemente (re)conhecidos, existe a tentação de estabelecer paralelos com o material recriado, procurando pontos de continuidade ou ruptura. Mesmo construindo uma atmosfera comprometida, o trabalho de decifração do espectador é sabotado por Jarmusch, que coloca as próprias personagens a comentar a narrativa e as suas condições de produção. Para além dos exemplos já mencionados, a certo ponto, as personagens de Bill Murray e Adam Driver referem a familiaridade da canção “The Dead Don’t Die”, emitida pela telefonia do carro, concluindo que é a música que dá o título ao filme. Noutra cena, durante uma viagem de reconhecimento, discutem o que os espera no final do filme. Nem falta uma brincadeira com Adam Driver e a saga Star Wars (Guerra das Estrelas, 1977-2019), onde o actor interpreta a personagem Kylo Ren. Insistindo no desvanecimento da quarta parede, Jarmusch desafia a alienação do espectador por meio da artificialidade de um divertido exercício reflexivo, reconhecendo o cinema como meio privilegiado de produção cultural e ideológica.