Eis algo bastante singular de se imaginar: um Orson Welles de 16 anos a percorrer a Irlanda sozinho, numa carroça puxada por um burrito, levando consigo os quadros que pintava ao longo do caminho. Apesar de esta imagem revelar já o espírito aventureiro e independente do futuro cineasta, apesar de ter sido aqui a primeira vez que Welles tenha tentado fazer algo próximo a uma carreira (só pouco tempo depois iniciou-se a do teatro), e apesar de ter continuado a desenhar durante décadas, as referências sobre o seu trabalho enquanto pintor e desenhador escasseiam. É esse o aspecto mais valorizável do novo documentário de Mark Cousins, The Eyes of Orson Welles (Os Olhos de Orson Welles, 2018): o de, mais do que nos dar a ver alguns dos frutos do seu trabalho debuxante, tomar como ponto de partida o Welles-desenhista para falar do Welles-cineasta, naquela que é, possivelmente, a mais importante referência que há até hoje dos seus esboços, sarrabiscos e pinturas. Trata-se este de um filme que, como o seu registo epistolar deixa bem saliente, pretende ser uma carta de amor ao realizador.
De facto, Cousins é astuto em estabelecer essas ligações visuais que revelam um olhar crítico autorista bastante atento: as “luzes totalitárias” que são apontadas num pequeno bosquejo para um filme nunca concretizado sobre Júlio César com as que transmitem a sensação de opressão de K. em The Trial (O Processo, 1962); a verticalidade tirânica dos feixes luminosos dos desfiles de Nuremberga presente, simultaneamente, na adaptação teatral moderna Caesar (no que pretendeu ser uma alegoria à ascensão do nazismo, partindo da peça de Shakespeare) com as lanças dos soldados do Príncipe Hal em Campanadas a medianoche (As Badaladas da Meia-Noite, 1956); a forma como a identidade visual de Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) é reforçada como sendo de Welles a partir de esboços que tinha feito para o filme, onde já era identificável parte do seu memorável barroquismo (desmentindo a opinião de alguns detractores de ser da autoria exclusiva de Gregg Toland). É isto que traz frescura ao já muito que sabemos e ouvimos sobre o cineasta: este vaivém entre artes que ora analisa a estética wellesiana, ora estabelece associações curiosas entre a sua vida, obra e opiniões políticas.
Falta a The Eyes of Orson Welles uma estrutura mais compacta e menos sinuosa, uma “linha levada a passear” (a frase de Paul Klee é aqui citada) de forma simples, directa e bem definida.
Por estranho que pareça, é um prazer raro no cinema ouvir alguém discutir cuidadosamente ângulos, lentes, linhas, enfim, tudo o que contribui para a composição de um enquadramento, para a força gráfica de um plano, para o impacto imagético na construção de uma cena. Resumidamente, alguém analisar o “pensamento visual” (termo usado várias vezes por Cousins) que percorre um filme ou, neste caso, boa parte da obra de um cineasta, que tem aqui o acrescento de se expandir para áreas transversais. Cousins fá-lo de forma notável, tal como é notável o modo como visita alguns dos locais onde Welles alcançou os seus triunfos de carreira, comparando-os com o seu estado actual (o Lafayette Theatre, onde ocorreu a sua adaptação de Macbeth com actores afro-americanos e situada numa ilha das Caraíbas fictícia, entretanto demolido e substituído por apartamentos), numa tentativa de preservar a memória do trajecto do realizador e do significado histórico dos fantasmas daqueles espaços; de fazer do cinema, em suma, arma contra o esquecimento.
Por outro lado, dá a impressão a certa altura de que Cousins, numa narração mais gárrula do que cativante, está a tentar apenas arranjar material que chegue para duas horas, criando um filme desnecessariamente longo e ensebado. Esgota-se o entusiasmo inicial na forma como o documentário vai acumulando apartes demasiado pessoais (a associação entre Welles e o Príncipe Hal a partir da transitoriedade dos vários casos amorosos do primeiro), especulações cor-de-rosa (atracções homossexuais reprimidas) ou meras curiosidades (as transformações nos debuxos do Pai Natal), material que não se deixa de sentir supérfluo quando comparado com o conhecimento académico que Cousins demonstra.
Chega-se à redundância na frequente repetição de algumas ideias (o autoritarismo no seu cinema), instala-se um ligeiro aborrecimento diante do ponto de estagnação analista atingido, e ficamos a pensar se, apesar dos vários capítulos em que está dividido, até que ponto o filme não se encontra desorganizado como um todo, se não estará em falta incisividade e capacidade de síntese por parte do seu realizador. Falta a The Eyes of Orson Welles uma estrutura mais compacta e menos sinuosa, uma “linha levada a passear” (a frase de Paul Klee é aqui citada) de forma simples, directa e bem definida, ao invés de vários traços que ora se entrecruzam, ora se afastam, ora se atropelam, criando um desenho final onde está em falta a coesão.
O resultado não deixa de ser interessante, mas continuamos à espera do grande documentário que faça definitivamente justiça ao homem e à sua obra. Enquanto não chega, o melhor continua a ser conhecê-lo pelas suas próprias palavras em This is Orson Welles.